Senso Incomum

Fundamentamos ou ornamentamos? Um velho/novo problema!

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13 de outubro de 2022, 8h00

Resumo: Responda a pergunta: Por que não se exige análise pormenorizada de cada prova ou alegação das partes e também não se exige que sejam corretos os seus fundamentos?

Spacca
O tema já é batido. Mas recorrente. E uma decisão recente me permite voltar à carga.

Bem recentemente, o STJ, por sua Corte Especial (AgInt no RE nos EDcl no AgInt no Agravo em Recurso Especial nº 1.730.036/SP), reafirmou o Tema 339 do STF, repetindo sua "tese" e parte de seu acórdão: "embora as decisões judiciais devam ser fundamentadas, ainda que de forma sucinta, não se exige, no entanto, análise pormenorizada de cada prova ou alegação das partes, nem que sejam corretos os seus fundamentos".

Façamos uma anamnese da tese. Se tirarmos as adversativas ("embora" e "no entanto"), fica:

"(i) não se exige análise pormenorizada de cada prova
(ii) ou da alegação das partes
(iii) e nem se exige que sejam corretos os seus fundamentos."  

Não é um pronunciamento qualquer: é o do órgão máximo do Tribunal da Cidadania.

Voltemos algumas casas. Não é preciso investigar muito para compreender que, de há muito, o Supremo Tribunal Federal redefiniu o conteúdo do artigo 93, IX, da Constituição. Reescreveu o dispositivo. E o STJ seguiu a decisão do STF. Resultado: ambos os tribunais fragilizaram a dicção do inciso IV do artigo 489, parágrafo 1º. do CPC.

Pergunta-se: cabe aos tribunais reescreverem um artigo da Constituição? Ou do CPC?

Comecemos pelo menor dos problemas: a dispensa de que os fundamentos sejam corretos. Parece estranho. A formulação da "tese" do Supremo já é problemática. Sim, os fundamentos precisam ser corretos. Ou isto, ou se quer dizer que basta fazer um enfrentamento pro forma e estará concluída a tarefa de fundamentar. Ou não foi isso que o Tribunal quis dizer?

Se entendi bem, considera-se fundamentada uma decisão mesmo que os fundamentos estejam equivocados. Mas qual é o ponto? O ponto é que o Tribunal aceita que não é necessário investigar para saber se são ou não corretos.

Mas o que é um fundamento equivocado? Vale qualquer coisa? E como vou saber se não é necessário investigar acerca do acerto ou erro?

Por exemplo, vale uma decisão "fundamentada" pelo "livre convencimento motivado", por exemplo, em uma decisão em que o livre convencimento refere o Tema 339 de forma tautológica? Seria considerada uma decisão motivada? Algo como "decido por que assim penso e, portanto, não necessito explicar porque assim penso".

Ou algo como: "a parte alega que os fundamentos da decisão são incorretos, porém, com base no tema 339 do STF e decisão do STJ, é dispensável que os fundamentos sejam corretos". Quando a CF e o CPC estabelecem a obrigatoriedade da fundamentação, teria sido isso que os legisladores pensaram?

Mas entendo as razões pelas quais esse problema existe. Ele decorre da ausência de uma discussão teórica sobre critérios de decisão. O direito brasileiro, amparado por uma dogmática criterialista que se resume a reprodução de um subjetivismo que se mistura com realismo jurídico (tese inegavelmente dominante nas práticas jurídicas e aceita pela doutrina), parece que abriu mão de qualquer possibilidade de que se discuta e exija uma ideia de objetividade epistemológica sobre respostas adequadas ou inadequadas.

Ao contrário: mesmo diante da exigência legal de exame dos fundamentos alegados pelas partes (artigo 489, parágrafo 1º, I-VI), os Tribunais redefinem a dicção original do dispositivo e dispensam tal exame, tornando desimportante se a parte aponta incorreção da decisão.

Mas sigo. Porque é ainda mais grave.

Por qual razão não se exige análise pormenorizada dos argumentos das partes? Por qual razão os Tribunais dispensam aquilo que é exigido pela lei e CF?

Somemos isso ao crônico problema do livre convencimento, ao esquecimento deliberado por parte dos tribunais quanto às exigências do artigo 489 — para não mencionar a exigência, igualmente de direito positivo, por coerência e integridade nas decisões (artigo 926, CPC) —, e está feita a bagunça: juízes e tribunais podem decidir de acordo com suas concepções subjetivas, independentemente daquilo que as partes possam vir a trazer. Porque já não importa. Afinal, uma "análise pormenorizada" é despicienda. O STF e o STJ autorizam assim. Poderia dizer isso do seguinte modo: o "pormenorizada" fica de acordo com o critério daquele que não decide pormenorizadamente…

Digo isso inserido no mundo real, das práticas cotidianas, da sangria do mundo forense, em que está difícil até mesmo exigir que simples desacordos empíricos (erros materiais) nas sentenças e acórdãos sejam corrigidos por via de embargos. Porque a resposta pode ser "o tema 339 do STF desobriga…". Tente de novo e receberá uma multa. Ou não é assim?

E nem se pergunte se um "tema" pode valer mais do que uma lei.

Já de há muito precisamos falar sobre a fundamentação das decisões. Porque fundamentação não é mera formalidade. Ou mera faculdade. Tampouco é ornamentação.

Post scriptum: uma (des)necessária retranca epistêmico-processual

É evidente que, com o que escrevi acima, não sustento — e penso que ninguém da doutrina diz isso — que sandices e terraplanismos jurídicos eventualmente alegados pelas partes mereçam o exame de que tratam os artigos 489 (CPC) e 315 (CPP). Registro a ressalva apenas porque no Brasil o óbvio e o evidente se escondem.

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