Opinião

O que é isto: a discricionariedade judicial? Um prefácio à obra de Guilherme Pupe

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13 de outubro de 2022, 12h01

Foi com grande satisfação que recebi o convite para prefaciar a obra "O direito em suas entranhas: a discricionariedade judicial no Brasil, entre a estratégia e o arbítrio", contribuição acadêmica de Guilherme Pupe da Nóbrega, colunista da ConJur.

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Por meio de sofisticado argumento, o autor enfrenta pontos sensíveis relacionados a nossa frágil democracia, debruçando esforços sobre um tema complexo: a discricionariedade judicial. Mas, afinal, o que é isto — a discricionariedade? Seria uma espécie de fundamento? Ou, correndo paralelamente, uma inafastável estratégia, como mesmo uma espécie de ideologia?

Para enfrentar essas questões estritamente no contexto brasileiro, Guilherme Pupe da Nóbrega começa justamente por aquilo que compreendo ser o coração do problema: as mais variadas formas de positivismo jurídico. E faz todo sentido: a principal característica desta postura metodológica — o positivismo jurídico — de pretensões tipicamente descritivistas, é justamente a discricionariedade, em todas as suas versões.

Daí que, revolvendo o chão linguístico a partir desse intrincado contexto — o dos muitos positivismos —, Pupe vai assentar um inarredável posicionamento sobre a discricionariedade judicial. Digo "inarredável" porque constrange — no bom sentido do termo que tiro de Bernd Rüthers — de forma contundente posicionamentos contrários ou, no limite, pessimistas: discricionariedade é nada mais que um poder arbitrário delegado, antidemocraticamente, em favor do juiz para que se torne uma espécie de "legislador intersticial", preenchendo espaços decorrentes de zonas de penumbras e/ou espaços "construídos" retoricamente pelo intérprete. Isto é, Pupe não esquece que esse mesmo espaço pode muito bem ser produto — como invariavelmente é — da construção ideológica — política, econômica e moral — do próprio julgador.

Como já se pôde antever destas breves linhas, a discricionariedade – na obra em questão — vai se colocar mesmo como um verdadeiro estratagema discursivo, predando não apenas a autonomia do Direito como, no mais, desvirtuando-o. Claro. Se é "estratégia" e, por isso, não tem autonomia, o Direito não é mais a civilizacional contenção ao poder que o caracteriza. Ao contrário, é seu próprio instrumento, eis que, como bem vai pontuar o autor, essa mesma discricionariedade pode tanto impulsionar mudanças sociais quanto travá-las, espelhando não mais que particularíssimas visões de mundo e de justiça. Nada, portanto, menos democrático.

O caldo que se extrai dessas circunstâncias todas é grave e evidentemente incompatível com o Estado democrático de Direito. Mas o ponto (mais) crítico de tudo isso é que — para além do problema em si — a discricionariedade judicial, compreendida mesmo como "fundamento", vem crescendo. É o que bem demonstra o apanhado de dados empiricamente colhidos, em cinco Tribunais Regionais, no Supremo Tribunal Federal e no Superior Tribunal de Justiça, entre 1966 e 2019. Pupe demonstra o que está dizendo. E isso não preço.

Mas, afinal, é possível sustentar esse indesejável "fundamento", arbitrário que é, em um intersubjetivo chão republicano? A discricionariedade, que quase sempre é arbitrariedade, é compatível com a democracia? Certamente, a resposta é negativa e pode ser assentada sob diferentes enfoques. É o que o leitor interessado nesse complexo tema terá em mãos.

Manejando diferentes chaves explicativas, Guilherme Pupe da Nóbrega vai bem observar que "decidir não é escolher" — na linha em que defendo de há muito em livros como Verdade e Consenso e Dicionário de Hermenêutica — a partir de uma (ousada) perspectiva neurojurídica. Aqui, a discricionariedade é percebida como parte de um julgamento moral sociointuicionista.

Já em uma perspectiva semiótica, o autor observa que "significar não é escolher". Afinal, como bem recorda, conceitos, mesmo abertos, não projetam ou ampliam, senão, antes, limitam possibilidades — assim como os "princípios", em uma abordagem filosófico-hermenêutica. Nela — como não poderia ser diferente — ele conclui que "interpretar não é escolher". E, por fim, sob uma perspectiva sistêmica, a conclusão é no sentido de que combater a discricionariedade é, igualmente, combater a degeneração da própria autonomia do Direito. Ou seja, não há espaço para legitimar a discricionariedade, para além de uma impositiva sobreposição de vontades e distintos posicionamentos, em um ambiente que se propõe "democrático".

Não por outra razão, diante destas breves reflexões, é que "O direito em suas entranhas: a discricionariedade judicial no Brasil, entre a estratégia e o arbítrio", a partir da exitosa análise a que se propõe, oferece oportuna leitura a todos aqueles preocupados não apenas com as atualíssimas discussões envolvendo essa horizontalizada forma de vida, a democracia, mas, na especificidade de seu argumento, com sua própria condição de possibilidade, o Direito.

Trata-se de uma obra que, além de sofisticada, mostra a coragem do autor. Em um país em que se normalizou o realismo jurídico por meio de uma dogmática jurídica positivista (portanto, que aposta na discricionariedade), contestar dogmas é o primeiro passo de uma adequada doutrina que respeita a Autonomia do Direito e luta contra os seus predadores.

Escrito na Dacha de São José do Herval, no início do inverno de 2022, cercada de todos os lados por um denso nevoeiro, cujas nuvens esfregam as costas nas largas vidraças do miradouro.

Com votos de ótima leitura.

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