Licitações e contratos

Lei 14.133/21: passos contra o direcionamento de licitações e contratos

Autor

  • Jonas Lima

    é sócio de Jonas Lima Advocacia especialista em Direito Público pelo IDP especialista em compliance regulatório pela Universidade da Pensilvânia ex-assessor da Presidência da República (CGU).

    View all posts

7 de outubro de 2022, 9h39

A nova Lei de Licitações e Contratos trouxe regras da etapa de planejamento da contratação que ajudarão no combate ao direcionamento de marcas e modelos de produtos e até de serviços.

Spacca
Desde o artigo 37, inciso XXI, da Constituição, já havia o mandamento de que edital de licitação somente deve conter "exigências de qualificação técnica e econômica indispensáveis à garantia do cumprimento das obrigações", mas isso não impedia, na prática, o direcionamento de características de produtos, marcas e modelos, uma vez que sempre foi comum a alegação de discricionariedade da Administração Pública para definição de objeto e suas características.

Para tratar de tais questões com mais foco, o Congresso, regulamentando o dispositivo constitucional, fez incluir na Lei nº 8.666/93 disposições que merecem destaque:

"Art. 7º …
(…)
§ 5º É vedada a realização de licitação cujo objeto inclua bens e serviços sem similaridade ou de marcas, características e especificações exclusivas, salvo nos casos em que for tecnicamente justificável, ou ainda quando o fornecimento de tais materiais e serviços for feito sob o regime de administração contratada, previsto e discriminado no ato convocatório.
(…)
§ 7º Nas compras deverão ser observadas, ainda:
I – a especificação completa do bem a ser adquirido sem indicação de marca;
(…)
Art. 25.  É inexigível a licitação quando houver inviabilidade de competição, em especial:
I – para aquisição de materiais, equipamentos, ou gêneros que só possam ser fornecidos por produtor, empresa ou representante comercial exclusivo, vedada a preferência de marca…".

Mas os efeitos práticos de tais normas foram limitados, diante da alegada discricionariedade do ente público, do rótulo de mérito de ato administrativo e suposições de que, por determinadas razões técnicas, somente certa marca ou modelo específico serviriam para o atendimento da demanda concreta.

Regras similares foram incluídas na Lei nº 14.133/2021, com disposições adicionais:

“Art. 40…
(…)
§ 3º O parcelamento não será adotado quando:
(…)
III – o processo de padronização ou de escolha de marca levar a fornecedor exclusivo.
(…)
Art. 41. No caso de licitação que envolva o fornecimento de bens, a Administração poderá excepcionalmente:
I – indicar uma ou mais marcas ou modelos, desde que formalmente justificado, nas seguintes hipóteses:
a) em decorrência da necessidade de padronização do objeto;
b) em decorrência da necessidade de manter a compatibilidade com plataformas e padrões já adotados pela Administração;
c) quando determinada marca ou modelo comercializados por mais de um fornecedor forem os únicos capazes de atender às necessidades do contratante;
d) quando a descrição do objeto a ser licitado puder ser mais bem compreendida pela identificação de determinada marca ou determinado modelo aptos a servir apenas como referência;
II – exigir amostra ou prova de conceito do bem no procedimento de pré-qualificação permanente, na fase de julgamento das propostas ou de lances, ou no período de vigência do contrato ou da ata de registro de preços, desde que previsto no edital da licitação e justificada a necessidade de sua apresentação;
III – vedar a contratação de marca ou produto, quando, mediante processo administrativo, restar comprovado que produtos adquiridos e utilizados anteriormente pela Administração não atendem a requisitos indispensáveis ao pleno adimplemento da obrigação contratual;
IV – solicitar, motivadamente, carta de solidariedade emitida pelo fabricante, que assegure a execução do contrato, no caso de licitante revendedor ou distribuidor.
Parágrafo único. A exigência prevista no inciso II do caput deste artigo restringir-se-á ao licitante provisoriamente vencedor quando realizada na fase de julgamento das propostas ou de lances.
Art. 42. A prova de qualidade de produto apresentado pelos proponentes como similar ao das marcas eventualmente indicadas no edital será admitida por qualquer um dos seguintes meios:
I – comprovação de que o produto está de acordo com as normas técnicas determinadas pelos órgãos oficiais competentes, pela Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT) ou por outra entidade credenciada pelo Inmetro;
II – declaração de atendimento satisfatório emitida por outro órgão ou entidade de nível federativo equivalente ou superior que tenha adquirido o produto;
III – certificação, certificado, laudo laboratorial ou documento similar que possibilite a aferição da qualidade e da conformidade do produto ou do processo de fabricação, inclusive sob o aspecto ambiental, emitido por instituição oficial competente ou por entidade credenciada.
(…)
Art. 74. É inexigível a licitação quando inviável a competição, em especial nos casos de:
I – aquisição de materiais, de equipamentos ou de gêneros ou contratação de serviços que só possam ser fornecidos por produtor, empresa ou representante comercial exclusivos;
(…)
§ 1º Para fins do disposto no inciso I do caput deste artigo, a Administração deverá demonstrar a inviabilidade de competição mediante atestado de exclusividade, contrato de exclusividade, declaração do fabricante ou outro documento idôneo capaz de comprovar que o objeto é fornecido ou prestado por produtor, empresa ou representante comercial exclusivos, vedada a preferência por marca específica."

Mas o que chama atenção na nova lei está, em mais evidência, além desses dispositivos.

Trata-se da imposição, para todos os entes federais, distritais, estaduais e municipais, do que se conhece como "estudo técnico preliminar" (ETP), que muitos processos licitatórios e de contratações diretas até hoje não possuem, sob a alegação de estar a matéria tratada apenas em normas administrativas federais.

E o fato é que a Lei nº 14.133/2021 trouxe as seguintes inovações, para todos os entes públicos:

"Art. 6º Para os fins desta Lei, consideram-se:
(…)
XX – estudo técnico preliminar: documento constitutivo da primeira etapa do planejamento de uma contratação que caracteriza o interesse público envolvido e a sua melhor solução e dá base ao anteprojeto, ao termo de referência ou ao projeto básico a serem elaborados caso se conclua pela viabilidade da contratação;
(…)
XXIII – termo de referência: documento necessário para a contratação de bens e serviços, que deve conter os seguintes parâmetros e elementos descritivos:
(…)
b) fundamentação da contratação, que consiste na referência aos estudos técnicos preliminares correspondentes ou, quando não for possível divulgar esses estudos, no extrato das partes que não contiverem informações sigilosas;
(…)
XXIV – anteprojeto: peça técnica com todos os subsídios necessários à elaboração do projeto básico, que deve conter, no mínimo, os seguintes elementos:
(…)
g) projetos anteriores ou estudos preliminares que embasaram a concepção proposta;
(…)
XXV – projeto básico: conjunto de elementos necessários e suficientes, com nível de precisão adequado para definir e dimensionar a obra ou o serviço, ou o complexo de obras ou de serviços objeto da licitação, elaborado com base nas indicações dos estudos técnicos preliminares, que assegure a viabilidade técnica e o adequado tratamento do impacto ambiental do empreendimento e que possibilite a avaliação do custo da obra e a definição dos métodos e do prazo de execução, devendo conter os seguintes elementos:
(…)
Art. 18. A fase preparatória do processo licitatório é caracterizada pelo planejamento e deve compatibilizar-se com o plano de contratações anual de que trata o inciso VII do caput do art. 12 desta Lei, sempre que elaborado, e com as leis orçamentárias, bem como abordar todas as considerações técnicas, mercadológicas e de gestão que podem interferir na contratação, compreendidos:
I – a descrição da necessidade da contratação fundamentada em estudo técnico preliminar que caracterize o interesse público envolvido;
(…)
§ 1º O estudo técnico preliminar a que se refere o inciso I do caput deste artigo deverá evidenciar o problema a ser resolvido e a sua melhor solução, de modo a permitir a avaliação da viabilidade técnica e econômica da contratação, e conterá os seguintes elementos:
(…)
V – levantamento de mercado, que consiste na análise das alternativas possíveis, e justificativa técnica e econômica da escolha do tipo de solução a contratar;
(…)”. (os grifos não são do original)

Evidentemente, o ETP vem antes de documentos que eram considerados como primeiros sobre questões de definição de objeto e que, em muitos casos, já chegavam com especificações prontas desde a origem, seguidas de pesquisas de preços direcionadas para aquele objeto que já estava escolhido ou direcionado.

Extremamente reprovável, aliás, a prática de se iniciarem processos de contratações, licitadas ou por inexigibilidade, já com completas descrições técnicas ou específicas de marcas ou modelos e alegações de que não se encontrou no mercado produtos com aquelas características prontas.

A nova lei colocou em ponto de partida, antes de se tratar de características, marcas, modelos e especificações de objeto, o estudo em face da demanda e possibilidades existentes no mercado para o seu atendimento.

Não se admite mais processo iniciado com base em e-mails com cotações e outros documentos fora dos autos, cotações de preços prontas e termo de referência já como primeiro documento do processo a trazer características de um objeto a ser contratado (direcionamento na origem).

Não se admite mais alegação de que certa especificação é necessária em face da contratação anterior de mesmo produto ou serviço naquele ente público ou que não foram localizadas licitações similares anteriores para aquele objeto já "escolhido".

Não se admite mais como ponto de partida o objeto "pretendido", porque o estudo técnico sobre as possibilidades do mercado para solução da demanda específica está agora como marco inicial.

Isso vale para decidir entre fazer atualizações ou substituições completas de equipamentos de tecnologia (incluindo avaliação de compra em comparação com locação), armamentos mais modernos (não apenas com base no que se tinha em compra anterior e nem apenas de compras do Brasil), dispositivos médicos de diagnóstico por imagem (não mais limitados a antigas formas ou funcionalidades para se chegar aos resultados dos exames) e tantas outras situações que podem ser exemplificadas no dia a dia.

Conclusão: não se aceita mais o termo de referência que nasce pronto e como documento criado de forma autônoma, nem pesquisas de preços prontas para objeto já escolhido desde o início.

Pois se o documento denominado "Estudo Técnico Preliminar" não constar como o primeiro passo, com uma efetiva análise de possibilidades, o processo já estará em nulidade insanável.

O que foi criado em jurisprudência de tribunais de contas e constava de normas administrativas federais agora é lei federal, geral e com aplicação nacional, em todas as esferas.

Assim, antes de tratar de especificações e preços, o gestor público precisará partir em busca de compreensão realista e ampla de mercado e suas possibilidades para melhor solução em face da demanda a ser atendida.

De outro lado, licitantes vão requerer cópias completas dos processos, já em momento seguinte à publicação do edital, caso não venha, desde logo, em anexo, o ETP de origem daquele edital, e aquele documento atendendo requisitos que a nova lei estabelece.

Por fim, o controle de contratação direta por inexigibilidade de licitação passará, também, pela verificação do mesmo documento dentro dos autos do processo e com os mesmos requisitos.

O Brasil dá passos mais efetivos contra o direcionamento de contratações e as cartas marcadas.

Autores

  • é advogado especialista em licitações e contratos, pós-graduado em Direito Público pelo IDP e Compliance Regulatório pela Universidade da Pensilvânia e sócio do escritório Jonas Lima Sociedade de Advocacia.

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!