Opinião

Eventos, fatos e narrativas: sobre o que realmente decidem os juízes (parte 2)

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4 de outubro de 2022, 6h09

Continua parte 1

1 – Introdução
No texto anterior, apresentamos a diferença entre eventos, fatos e narrativas, e concluímos que os juízes, através da atribuição de sentido à realidade, são construtores da verdade, não mero julgadores de uma verdade preexistente e fixa.

Vimos que o mundo dos eventos ou acontecimentos é muito mais complexo do que os fatos podem retratar e que as narrativas, que são conjuntos de fatos, são disputadas pelos envolvidos no grande jogo de construção da verdade, do qual o processo judicial é apenas uma parte.

Agora, nosso objetivo é entender como essa realidade é compreendida no interior da decisão judicial e qual o papel da linguagem, das provas e dos advogados neste processo de construção da verdade.

De saída, uma observação: se a realidade é construída pelo juiz, então a verdade, que é expressão perfeita da realidade, também o é [1].

E se a verdade é apenas uma narrativa possível acerca da realidade, então, no processo judicial, assim como na vida social e política, o que é ocorre é: uma disputa de narrativas. Mas como isso se dá? É o que tentaremos concluir agora nesta segunda parte do texto.

Antes de iniciarmos a jornada, contudo, é importante lembrar que o evento é um acontecimento em seu estado bruto, antes de qualquer interpretação ou qualificação que se possa dar a ele.

Os fatos, por sua vez, são descrições dos eventos, que são feitas na medida das possibilidades de cada um e de acordo com a visão de mundo de cada pessoa.

O fato jurídico, a seu turno, pode ser definido em sentido amplo e em sentido estrito. Em sentido amplo, "é qualquer enunciado, em linguagem jurídica, que relate a ocorrência de um evento e que produza efeitos na ordem jurídica", mas sem o poder de instituir direito e obrigações individualizados. Em sentido estrito, "é o relato do evento em linguagem jurídica, um enunciado linguístico pertencente ao sistema do direito posto, capaz de nele produzir efeito", ou seja, "é o relato em linguagem competente, de um acontecimento passado, capaz de produzir efeitos na ordem do direito" [2].

É fato jurídico em sentido amplo, portanto, a descrição de eventos feita em linguagem jurídica, ou seja, aquela cujos fatos são qualificados juridicamente de acordo com as hipóteses gerais e abstratas (conotativas) presentes nos enunciados normativos, mas que não necessariamente geram efeitos jurídicos. São exemplos desses fatos jurídicos aqueles descritos em petições protocoladas em processos administrativos ou judiciais, bem como aqueles descritos através dos meios de prova.

Por sua vez, é fato jurídico em sentido estrito [3] aquele que, necessariamente, gera efeitos na ordem jurídica, como aqueles que são tomados, pela autoridade competente, como antecedentes de alguma norma jurídica individual e concreta.

São exemplos de fatos jurídicos em sentido estrito os eventos descritos em sentença judicial, os eventos descritos em declarações dirigidas a autoridades tributárias e que têm capacidade de gerar direitos e deveres, os eventos descritos aos notários e registradores e levados em consideração por eles para a confecção de certidões de óbito, casamento e nascimento etc.

2 – Sobre o que decidem os juízes
Nas decisões judiciais, o objeto de julgamento do juiz são os eventos [4] referidos pelas partes, bem como os fatos sociais e os fatos jurídicos descritos por elas em suas narrativas.

Essas narrativas ocorrem através dos textos escritos nas peças jurídicas que as partes apresentam, como a petição inicial, a contestação, os recursos etc., como também ocorrem através das provas produzidas.

As provas são pedaços de narrativas. Através delas, se busca demonstrar a força da narrativa construída na petição inicial, na contestação e nos recursos. Digo que são pedaços de narrativas, porque o discurso que elas contêm não é necessariamente linear nem posto de forma sequencial. Por exemplo: uma fotografia conta uma parte da narrativa, enquanto uma nota fiscal conta outra parte; uma testemunha conta uma parte, enquanto uma perícia outra parte e assim por diante. As petições e provas de um processo trazem a grande narrativa das partes.

Então, se as provas, que são pedaços de narrativas, apresentam relatos que coincidem com a grande narrativa apresentada na petição inicial ou na contestação, bem como nos recursos, elas reforçarão a pretensão da parte que a apresenta. A força que cada prova terá, evidentemente, depende de uma série de fatores que serão analisados a tempo e modo. Porém, basicamente, a força da prova está em demonstrar que a grande narrativa apresentada pelos advogados já foi, em momento anterior, adotada por outras pessoas: o perito, a testemunha, o contrato, a nota fiscal, o vídeo e assim por diante. Por isso, a função das provas é a seguinte: dizer ao juiz que acolha a narrativa que os advogados apresentaram, pois várias outras pessoas já apresentaram essa mesma narrativa, ou seja, várias outras pessoas construíram os mesmos fatos que a parte afirma ser a verdade.

Quanto maior a credibilidade de quem fala na prova e quanto mais clara é a mensagem, maior é a força que ela tem. Por exemplo: o perito é um especialista e a testemunha presenciou os acontecimentos. A parte que se contrapuser vai dizer em contrário: o perito se enganou, a testemunha está confusa ou tem interesse na causa.

Aqui é importante perceber que também os eventos serão objeto de julgamento pelo juiz. O leitor agora pode-se indagar: mas como, se os eventos são irrepetíveis. Verdade!

Mas é importante lembrar que o juiz pode ter acesso aos fatos sociais e jurídicos a ele alusivos através de outras fontes que não sejam as petições e provas apresentadas e produzidas pelas partes e, assim, construir sua própria narrativa acerca do evento e dos fatos sociais, na forma de fato jurídico, de forma mais rica do que ocorreria acaso se ativesse apenas à narrativa que lhe fora trazidas aos autos.

Por exemplo: o desastre ambiental consistente no rompimento de uma barragem. É uma evento. Jamais se repetirá. Porém, o juiz ao se debruçar sobre ele, não precisa se ater à narrativa trazida pelas partes, através de suas petições e provas. Pode tentar reconstruir esse evento por meio de outras narrativas, que podem ser encontradas em fontes que ele mesmo pode pesquisar de forma independente: reportagens, pesquisas, opiniões não trazidas aos autos, mas com as quais ele trava contato. Todos esses fatores poderão influenciar a construção da narrativa pelo magistrado, mesmo que ele não se dê conta e mesmo que não utilize essas fontes em sua argumentação. Aliás, a própria utilização de fonte não encontrada nos autos é questionável. Porém, inegavelmente, ela ocorre. E de forma até mais frequente do que se imagina.

Nesses termos, deve ser observado ainda que, entre o evento e os fatos sociais, entre estes e os fatos jurídicos em sentido amplo apresentados pelas partes, bem como entre todos estes e o fato jurídico em sentido estrito reconhecido pelo magistrado na sentença, há um complexo processo de significação da realidade através da linguagem.

Esse processo, naturalmente, é sujeito a falhas que podem comprometer o resultado da demanda de maneira radical, fazendo com que sejam reconhecidos fatos alusivos a eventos que nunca existiram ou que existiram sem as características presentes na narrativa do fato social.

Por exemplo: a) alguém pode ser condenado por homicídio que nunca cometeu ou b) alguém, embriagado e dirigindo veículo automotor em alta velocidade, pode ser absolvido do crime de homicídio, em razão de ter sido acolhida a narrativa de que dirigia sóbrio e em velocidade regular.

Estas falhas ou assimetrias fazem parte da atividade forense e elas ocorrem porque os eventos jamais poderão ser fielmente descritos pela linguagem comum, pois eles são, em sua realidade, muito mais complexos do que a narrativa que a linguagem permite construir.

Além disso, há a manipulação dessa construção que, por vezes, é feita em nome do agir estratégico dos advogados e das partes, de suas deficiências culturais e da dificuldade da linguagem com que a prova é produzida, fazendo com que o magistrado tenha acesso a relatos muitas vezes distorcidos ou parciais [5].

O controle dessas falhas, contudo, mesmo diante das dificuldades, deve ser permanente, daí a importância da fundamentação das decisões judiciais, através do processo hermenêutico de atribuição de sentido à linguagem, bem como da justificação das decisões judiciais, através do processo argumentativo que busca convencer as partes acerca do acerto da fundamentação levada a termo pelo juiz, permitindo que as partes entendam o raciocínio do magistrado e possam seguir debatendo o caso em outras instâncias, se porventura detectarem falhas no processo de significação processual.

Sobre a diferença interpretação e argumentação, leia artigo publicado aqui na ConJur.

5 – Conclusões
Após tudo quanto exposto antes, pode-se concluir nos seguintes termos:

a) O evento é um acontecimento, que pode ser natural, como uma chuva, ou não, como uma passeata, um comício, o julgamento em um tribunal, o tráfego de automóveis etc.

b) O evento, portanto, é um acontecimento em seu estado bruto, antes de qualquer interpretação ou qualificação que se possa dar a ele.

c) Os eventos nunca se repetem.

d) Os fatos são descrições dos eventos, que são feitas na medida das possibilidades de cada um e de acordo com a visão de mundo de cada pessoa.

e) Para cada evento, existe uma quantidade indefinida de fatos possíveis.

f) Os fatos só existem enquanto falamos neles.

g) O conjunto de determinados fatos é uma narrativa.

h) Quando a narrativa se torna predominantemente aceita, diz-se que ela é o relato vencedor.

i) O relato vencedor é o que chamos constantemente de verdade.

j) A verdade é disputada ferozmente em várias arenas sociais, políticas e jurídicas.

k) Os fatos podem ser construídos com base na linguagem do senso comum ou em linguagem jornalística, jurídica, econômica etc.

l) Os fatos, quando construídos e qualificados com base na lei, são chamados fatos jurídicos.

m) Os fatos jurídicos compõem o antecedente da norma jurídica, enquanto a relação jurídica resulta do consequente da norma.

n) Juízes e tribunais são construtores de fatos jurídicos em sentido estrito e definidores de relações jurídicas e suas consequências: e nisso consiste a atividade de julgar.

o) Os advogados têm o papel de selecionar e modelar as informações, os fatos e as narrativas, com o objetivo de fazer prevalecer determinado relato, ou seja, a verdade.


[1] STRECK, Lenio Luiz. Verdade e consenso: constituição, hermenêutica e teorias discursivas. São Paulo: Saraiva, 2012.

[2] CARVALHO, Aurora Tomazini de. Curso de teoria geral do direito: o construtivismo lógico-semântico. São Paulo: Noeses, 2014, p. 536.

[3] CARVALHO, Paulo de Barros. Direito tributário, linguagem e método. Noeses: São Paulo, 2013.

[4] Desde que os eventos referidos tenham continuidade no tempo e estejam ainda ocorrendo após o ajuizamento da demanda, como a invasão de uma propriedade rural, um dano ambiental persistente etc. Do contrário, o juiz somente tem acesso aos fatos, nunca aos eventos.

[5] Na tradição da filosofia, existem, pelos menos, três tipos de verdades: a) a verdade por exata correspondência entre a realidade e a narrativa que a expressa; esse tipo de verdade é adotada por aqueles que acreditam que os eventos possuem uma única realidade e que, portanto, ela não é construída pela linguagem, mas apenas expressa por ela, de maneira que eventuais divergências entre a narrativa e a verdade, que se acredita ser única, é um problema de mau uso da linguagem, com ou sem má-fé; b) a verdade por coerência lógica é expressa através da narrativa coerente a respeito de determinado evento, demonstrando, de forma convincente, que teriam ocorrido da forma como descrito; neste caso, já se compreende que a linguagem cria a realidade, mas se dá ênfase à função da linguagem justificadora, não da linguagem que fundamenta a criação através de processos interpretativos; c) por fim, a ideia de verdade por consenso, segundo a qual a verdade é o produto do acordo entre várias visões e versões dos eventos que se examina, também já compreende a linguagem como criadora da realidade, mas seus defensores são céticos com relação à possibilidade de que a realidade assim criada possa conduzir ao acordo, já que pessoas diferentes podem, através da linguagem, chegar a conclusões diferentes acerca da realidade, de maneira que somente o consenso é capaz de produzir única visão ou visões convergentes.

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