Consultor Jurídico

A função social da recuperação judicial

28 de novembro de 2022, 12h21

Por Murilo Rezende dos Santos

imprimir

No século 20, descortinou-se na doutrina de Direito Privado a percepção de que os institutos jurídicos devem observar uma função social ou, em alguns casos, uma função econômico-social. Assim, passou-se a falar em função social do contrato, função social da propriedade e função social da empresa.

Francisco Amaral (2018, p. 140) observa que "(…) atribuir ao direito uma função social significa considerar que os interesses da sociedade se sobrepõem aos interesses do indivíduo, sem que isso implique necessariamente a anulação da pessoa humana justificando-se a ação do Estado pela necessidade de acabar com as injustiças sociais".

Em outras palavras, a exigência de se observar sempre uma "função social" atende ao correr normal da vida real, onde as coisas acontecem. Conforme bem adverte Pedro Pais de Vasconcelos (2010, p. 31): "O Direito não vive apenas nos livros e nas leis. Participa da realidade que o envolve, que influencia e que ele também influencia".

Miguel Reale, em texto clássico intitulado "Visão Geral do Novo Código Civil", explicou que a comissão elaboradora do Código Civil de 2002 orientou-se na projeção do diploma civil por três princípios básicos: eticidade, socialidade e operabilidade. Embora tenham sido concebidos para a elaboração do Código Civil, tais princípios irradiam-se por todo o Direito Privado, de modo a afastar a vetusta ideia de que tal ramo estaria pautado apenas na proteção de interesses individuais, para ver no Direito Privado também a preocupação com o interesse social.

A função social do contrato, da empresa e da propriedade não afasta, mas mitiga, a autonomia da vontade, de modo a garantir que os interesses individuais não se sobreponham aos interesses sociais, de modo a promover uma saudável e equilibrada limitação. Na atividade empresarial, no cumprimento de contratos e no uso e gozo da propriedade, a pessoa não pode ter liberdade plena, mas precisa respeitar as balizas colocadas pelo próprio ordenamento jurídico, que são a lei, a ordem pública e os bons costumes.

O ministro Eros Roberto Grau (2010, p. 250) bem resumiu ao dizer:

O que mais releva enfatizar, entretanto, é o fato de que o princípio da função social da propriedade impõe ao proprietário — ou a quem detém o poder de controle, na empresa — do dever de exercê-lo em benefício de outrem e não, apenas, de não o exercer, em prejuízo de outrem. Isso significa que a função social da propriedade atua como fonte da imposição de comportamentos positivos — prestação de fazer, portanto, e não, meramente, de não fazer — ao detentor do poder que deflui da propriedade. Vinculação inteiramente distinta, pois daquela que lhe é imposta mercê de concreção do poder de polícia.

Aliás a Constituição Federal é clara ao determinar em seu artigo 3º, I, que "constitui objetivo fundamental da República Federativa do Brasil a construção de uma sociedade livre justa e solidária".

Além disso, ao tratar especificamente da ordem econômica, no artigo 170, caput, deixa claro que a atividade empresarial "tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social", ressaltando ainda no inciso III do mesmo artigo a necessidade de observância do princípio da função social da propriedade.

Portanto, como lecionam Rosa Maria de Andrade Nery e Nelson Nery Junior (2015, p. 557):

Seja como for, tratando-se do contrato, da propriedade, da empresa etc., a função social deve ser tomada como estrutura fundamental, seja do negócio jurídico, seja da situação jurídica de direito real, estrutura essa que deve estar em consonância com a realidade social, para que possa ter o poder de imprimir naqueles institutos destinação útil, de forma que possam cumprir a função econômico-social de que se reveste o próprio direito.

A crise da empresa implica grandes prejuízos não só para os empreendedores que nela empregaram seu capital, mas vai muito além, alcançando invariavelmente outros agentes econômicos, por conseguinte refletindo na vida social como um todo e assim podendo comprometer a "existência digna conforme os ditames da justiça social".

Fábio Ulhoa Coelho (2021, p. 52) diz com perfeição que:

"A crise fatal de uma grande empresa significa o fim de postos de trabalho, desabastecimento de produtos ou serviços, diminuição na arrecadação de impostos e, dependendo das circunstâncias, paralisação de atividades satélites e problemas sérios para a economia local, regional ou, até mesmo, nacional.  Por isso, muitas vezes o direito se ocupa em criar mecanismos jurídicos e judiciais de recuperação da empresa".

Logo, sendo certo que as empresas exercem papel fundamental na economia e que, por vezes, sofrem devido a circunstâncias e dificuldades variadas, é mesmo de fundamental importância a existência de mecanismos legais para possibilitar a correção de rumos e o salvamento da atividade.

Há quem entenda que a recuperação judicial seria um instituto injusto por proteger o empresário que administrou mal a empresa. Todavia, como observa Marcelo Sacramone (2021, p. 26):

"Como o empreendimento, caso fosse próspero, provocaria efeitos benéficos a toda a coletividade, a Lei assegurou que, para a hipótese de a atividade empresarial não ter sido bem-sucedida, os efeitos maléficos deveriam também ser repartidos por todos. Essa socialização das perdas é um benefício legal ao empresário, por meio da falência e da recuperação, de modo a garantir incentivo para que esse empresário continue a empreender e a arriscar o seu capital".                   

O que prepondera acima de tudo é a certeza de que os direitos têm custos. Por conseguinte, como bem dizem Stephen Holmes e Cass R. Sunstein (2019, p. 13): "Afirmar que um direito tem um certo custo é confessar que temos de renunciar a algo para adquiri-lo ou para garanti-lo. Ignorar os custos é deixar certas trocas dolorosas fora do nosso campo de visão".

De fato, na lição de Carlos Antonio Luque (2019, p. 137):

"Todas as ações caracterizadas pela escassez envolverão necessariamente uma escolha. E esse processo de escolha, por mais claro e transparente que possa ser, sempre deixará de lado ou sacrificará alguém ou alguma ação. Essa consequência não é fácil de ser avaliada. Infelizmente não existem soluções fáceis. Certamente, o estabelecimento de alguns critérios pode elencar algumas prioridades e auxiliar o critério de escolha. Mas dependendo da área onde essas escolhas são efetuadas, saúde é um bom exemplo, sempre deixará situações sem muitas explicações plausíveis, pois, pessoas estarão sendo sacrificadas".

No caso da recuperação judicial de empresas, os critérios prevalecentes estão bem elencados no artigo 47 da Lei nº 11.101, de 09.02.2005, preservado sem alterações pela Lei nº 14.112, de 24.12.2020:

"Artigo 47. A recuperação judicial tem por objetivo viabilizar a superação da situação de crise econômico-financeira do devedor, a fim de permitir a manutenção da fonte produtora, do emprego dos trabalhadores e dos interesses dos credores, promovendo, assim, a preservação da empresa, sua função social e o estímulo à atividade econômica".

Então, na verdade, a lei não visa propriamente a proteger apenas os interesses dos empresários, mas principalmente a preservar a manutenção da fonte produtora, do emprego dos trabalhadores e o interesse dos credores. Como resta claro, a recuperação judicial serve antes de tudo à manutenção da empresa, que precisa ser recuperada para garantir a conservação dos empregos dos trabalhadores e atender na maior medida possível a satisfação dos créditos dos credores, de modo a proteger o interesse social.

O instituto da recuperação judicial tem amplo campo, dele podendo fazer uso atividades econômicas empresariais, como por exemplo hospitais e empresas de transportes urbanos, cuja importância e repercussão social são manifestas e graves, pois a paralisação da atividade atinge grande número de cidadãos, e também atividades econômicas não empresariais, como por exemplo universidades, associações e clubes de futebol, uma vez que nestas igualmente há interesse social.

Ao discorrer sobre a preservação da empresa e sua função social, Marcelo Sacramone (2021, p. 150) ressalta o objetivo primordial do instituto da recuperação, que é o de proteger a atividade e seus benefícios sociais e econômicos. Ou em suas próprias palavras:

"Sua preservação é pretendida pela LREF como um modo de se conciliar os diversos interesses afetados com o seu desenvolvimento. Como fonte geradora de bem-estar, a função social da atividade empresarial é justamente se desenvolver e circular riquezas, de modo a permitir a distribuição de dividendos a sócios, mas também de promover a oferta de bens e serviços aos consumidores, aumentar a concorrência entre os agentes econômicos, gerar oferta de postos de trabalho e o desenvolvimento econômico nacional".

De tudo resulta evidente o interesse (ou função) social da recuperação judicial de empresas, lembrando, por fim, que o conteúdo dessa função social não é absoluto e vai além de "um critério de sadia gestão econômica", pois acima de tudo serve à efetiva realização de situações existenciais, na medida em que, como diz Pietro Perlingieri (2008, p. 939), "a produção, a empresa e seu incremento não representam os fins, mas os meios para realizar interesses não avaliáveis patrimonialmente".

Acima dos meros interesses econômicos estão outros muito maiores e facilmente verificáveis nos "objetivos fundamentais" da República Federativa do Brasil (artigo 3º, CF), que precisam ser cumpridos para que se consiga construir uma sociedade livre, justa e solidária (inciso I); garantir do desenvolvimento nacional (inciso II); erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais (inciso III); promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação (inciso IV).

 

Bibliografia

AMARAL, Francisco. Direito Civil: introdução. 10.ed. São Paulo: Saraiva, 2018.

COELHO, Fábio Ulhoa. Lei de Falências e de Recuperação de Empresas. 15. ed. São Paulo: RT, 2021.

GRAU, Eros. Roberto. A Ordem Econômica na Constituição de 1988. 14. ed. São Paulo: Malheiros, 2010.

HOLMES, Stephen Holmes; SUNSTEIN, Cass R. O custo dos direitos. Trad. p/ Marcelo Brandão Cipolla. São Paulo: Martins Fontes, 2019.

LUQUE, Carlos Antonio. Em busca da solução de conflitos: lógica econômica x direito. In: MARTINS, Ives Gandra da Silva; CHALITA, Gabriel; NALINI, José Renato. Consequencialismo no Poder Judiciário. Coord. p/.  Indaiatuba-SP: Foco, 2019.

NERY, Rosa Maria de Andrade; NERY JUNIOR, Nelson. Instituições de Direito Civil. São Paulo: RT, 2015, v. I, t. I.

PIERLINGIERI, Pietro. O Direito Civil na Legalidade Constitucional. Trad. p/ Maria Cristina de Cicco. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p. 939.

REALE, Miguel. Anais do "EMERJ debate o Novo Código Civil". Disponível em: https://www.emerj.tjrj.jus.br/revistaemerj_online/edicoes/anais_onovocodigocivil/anais_especial_1/Anais_Parte_I_revistaemerj_38.pdf. Acesso em 20.11.2022.

SACRAMONE, Marcelo. Comentários à lei de recuperação de empresas e falências. 2.ed. São Paulo: Saraiva, 2021.

VASCONCELOS. Pedro Pais de. Teoria Geral do Direito Civil. 6. ed. Coimbra: Almedina, 2010.