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Alexandre Callou: Teoria menor da desconsideração da PJ

28 de novembro de 2022, 18h18

Por Alexandre Callou

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A desconsideração da personalidade é tema bastante instigante e sensível. Resultado da influência do common law (disregard doctrine, lifting the corporate veil), o instituto tem como forças motrizes a proteção e reforço da própria autonomia patrimonial da pessoa jurídica. Embora possa parecer inicialmente um contrassenso, a bem da verdade é que tal medida — extrema e concisa — emerge da necessidade de proteção de fraude ou abuso de direito, por parte da pessoa coletiva. Explica-se:

A partir da possibilidade de materialização da desconsideração da personalidade jurídica, os sócios e administradores são reforçados — ainda que indiretamente — a empenharem-se voltados para o bem comum da sociedade empresária, de forma a preservar a função social (propósito) desta. Ao fim e ao cabo, reprime-se a possibilidade de manipulação da pessoa jurídica capaz de fraudar credores.

No ponto, Fábio Ulhôa Coelho é cirúrgico:

"[a] teoria da desconsideração da personalidade jurídica não é contrária à personalização das sociedades empresárias e à sua autonomia em relação aos sócios. Ao contrário, seu objetivo é preservar o instituto, coibindo práticas fraudulentas e abusivas que dele se utilizam" [1].

Na perspectiva do ordenamento jurídico brasileiro, a desconsideração da personalidade jurídica constitui a via adequada para que — exauridas as tentativas de localização e constrição de bens da empresa — ultrapasse-se os limites do patrimônio da pessoa jurídica, recaindo a medida processual de execução sobre os sócios e/ou administradores da empresa.

O procedimento da medida é regulado no Código de Processo Civil de 2015, a partir de capítulo próprio (capítulo IV), nos moldes legais dos artigos 133 a 137. O Código Civil, a seu turno, estabelece no artigo 50 que, "[e]m caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade ou pela confusão patrimonial" torna-se possível a desconsideração da autonomia patrimonial da pessoa jurídica (artigo 49-A do mesmo diploma), para que "os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares de administradores ou de sócios da pessoa jurídica beneficiados direta ou indiretamente pelo abuso". Observa-se que o CC estabelece determinados requisitos necessários à configuração do instituto, devendo existir — no caso — o 1) abuso da personalidade jurídica, que pode ser caracterizado pelo i.1) desvio de finalidade ou i.2) pela confusão patrimonial da sociedade. Inobstante, deve-se ter presente que a comprovação de um desses fatores é imprescindível para que o magistrado tenha a possibilidade de dar espaço ao incidente. Essas disposições enquadram a chamada "Teoria Maior da Desconsideração da Personalidade Jurídica".

Por outro lado, o Código de Defesa do Consumidor disciplinou o instituto, nos termos do artigo 28, caput e parágrafo 5º:

"Art. 28. O juiz poderá desconsiderar a personalidade jurídica da sociedade quando, em detrimento do consumidor, houver abuso de direito, excesso de poder, infração da lei, fato ou ato ilícito ou violação dos estatutos ou contrato social. A desconsideração também será efetivada quando houver falência, estado de insolvência, encerramento ou inatividade da pessoa jurídica provocados por má administração.
§ 5°. Também poderá ser desconsiderada a pessoa jurídica sempre que sua personalidade for, de alguma forma, obstáculo ao ressarcimento de prejuízos causados aos consumidores."

A diferença do tratamento concedido ao instituto pelos Código Civil e Código de Defesa do Consumidor é considerável e inequívoca: veja-se que o CC (Teoria Maior) aborda a matéria com higidez, exigindo a existência e comprovação de requisitos indispensáveis para o acolhimento da medida; diversamente, o CDC (nomeadamente na disposição do parágrafo 5º) estabeleceu a matéria de modo mais brando, genérico e objetivo, cuja justificativa da adoção da medida gravita em torno da insolvência do devedor. Com efeito, poder-se-á desconsiderar a personalidade da pessoa jurídica, sempre que tal personalidade revele-se obstáculo ao ressarcimento de prejuízos causados aos consumidores. Tal tratamento deu origem à denominada "Teoria Menor da Desconsideração da Personalidade Jurídica".

No ponto, recai uma questão importante: qual a relação existente entre a Teoria Menor prevista no CDC e a pessoa do administrador não sócio da pessoa jurídica? Dito de outro modo: a Teoria Menor da desconsideração da personalidade jurídica incide/é válida no âmbito da autonomia patrimonial do administrador não integrante do quadro societário da empresa?

O Superior Tribunal de Justiça debateu acerca do tema em diversas oportunidades, estabelecendo diretrizes firmes e aptas à construção de uma resposta sólida:

De acordo com a 4ª Turma do STJ (REsp. 1.860.333), é inviável a aplicação extensiva do artigo 28, parágrafo 5º do CDC, na relação com administradores não sócios da pessoa jurídica em execução. No voto, o relator ministro Marco Buzzi destacou que a flexibilidade característica da Teoria Menor não é aplicável para o administrador não constituído no quadro societário da pessoa jurídica, pois trata de sujeito não albergado expressamente no enunciado normativo do parágrafo 5º do artigo 28.

Com efeito, apenas a Teoria Maior mostra-se passível de aplicação no tocante a estes agentes, a partir da qual deve-se, inexoravelmente, comprovar a existência de algum ilícito (v.g. abuso de direito, excesso de poder etc.). Na mesma linha, vale destacar os posicionamentos da 3ª Turma do Tribunal da Cidadania no REsp 1.862.557 e no REsp 1.658.648, que adotaram a impossibilidade de responsabilização pessoal do administrador não-sócio.


[1] COELHO, Fabio Ulhôa. Curso de direito comercial: direito de empresa, p. 61.