Segunda Leitura

O inquérito das fake news no STF e sua relação com o sistema de Justiça

Autor

  • Vladimir Passos de Freitas

    é professor de Direito no PPGD (mestrado/doutorado) da Pontifícia Universidade Católica do Paraná pós-doutor pela FSP/USP mestre e doutor em Direito pela UFPR desembargador federal aposentado ex-presidente do Tribunal Regional Federal da 4ª Região. Foi secretário Nacional de Justiça promotor de Justiça em SP e PR e presidente da International Association for Courts Administration (Iaca) da Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe) e do Instituto Brasileiro de Administração do Sistema Judiciário (Ibrajus).

27 de novembro de 2022, 8h02

Em 14 de março de 2019, o Supremo Tribunal Federal instaurou um inquérito, que tomou o número 4.781, destinado a “investigar a existência de notícias falsas, denunciações caluniosas, ameaças e roubos de publicação sem os devidos direitos autorais, infrações que podem configurar calúnia, difamação e injúria contra os membros da Suprema Corte e seus familiares”,[i] tendo sido designado para presidi-lo o ministro Alexandre de Moraes.

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O que aqui se fará é uma análise da referida investigação, sob o ponto de vista de sua relação com o sistema de Justiça brasileiro. Portanto, não se tratará das implicações políticas do referido inquérito, muito embora a ninguém passem despercebidos os inseparáveis reflexos entre um e outro. Mas o aspecto político interessa aos políticos, e eu não sou um deles. Fico, pois, exclusivamente dentro do círculo destinado ao Direito.

O inquérito tem por fundamento jurídico o artigo 43 do Regimento Interno do STF, que diz:

Art. 43. Ocorrendo infração à lei penal na sede ou dependência do Tribunal, o Presidente instaurará inquérito, se envolver autoridade ou pessoa sujeita à sua jurisdição, ou delegará esta atribuição a outro Ministro.

Referido artigo pressupõe um fato criminoso dentro das dependências da própria Corte, atribuindo-lhe a função de investigar porque, em tese, é a maior interessada em desvendar a ação delituosa e a conhecedora mais próxima dos fatos. Pelas dúvidas que suscita, já que a investigação criminal cabe à Polícia Judiciária e, excepcionalmente, ao Ministério Público, referido artigo sempre foi utilizado com parcimônia.

No regimento interno dos demais tribunais do país, do sul ao norte há previsões assemelhadas. O Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul no seu regimento interno prevê uma Comissão de Segurança, à qual cabe qualquer medida relacionada com o assunto (por exemplo, magistrados em situação de risco), devendo agir de forma articulada com órgãos policiais.[ii] No oposto geográfico, o Tribunal de Justiça do Amapá, no artigo 73 do regimento interno, dispõe que “o presidente instaurará inquérito, se envolver autoridade ou pessoa sujeita à sua jurisdição, ou delegará esta atribuição ao corregedor”.[iii]

Pois bem, no STF, instaurado o inquérito em 2019 em razão de uma publicação que afetaria a honra de determinado ministro, as investigações seguiram no tempo, alcançando fatos diversos, como quebra de sigilo bancário e fiscal de empresários suspeitos de financiar notícias falsas, prisão de um deputado federal, suspensão de participação de pessoas nas redes sociais e outras tantas providências que uma visita ao Google bem esclarecerá.

O fundamento das investigações, que já duram três anos e oito meses, basicamente é a ameaça ao STF, aos seus ministros e, mais além, ao próprio estado de Direito e à democracia. Ninguém seria ingênuo ao ponto de supor que inexistem no inquérito motivos para a investigação de fatos graves. Razões certamente existem, pois, afinal, foi e continua sendo aprovado pelos demais ministros da Corte.

Contudo, daí a adotar-se a tese de que tudo é permitido na defesa do Estado, será adotar-se a conclusão de Maquiavel a quem razões de Estado justificariam qualquer conduta. O risco que se assume quando se adota tal posição é o de que os fins justificam os meios e, consequentemente, a partir daí tudo é permitido. Práticas como a tortura, as mortes que o Esquadrão da Morte decretava nos anos 1960 ou até mesmo um míssil com uma ogiva nuclear passam a ser aceitas.

Cabe registrar que a ameaça ao Estado sempre foi uma preocupação no Brasil. Nos tempos da colônia, as Ordenações Filipinas, no capítulo V, título VI, previam o crime de lesa majestade e, no título VII, previam aos que falassem mal do rei que nos casos mais graves a pena poderia ser de morte.[iv] Era o tempo das devassas, procedimentos sem forma ou figura de juízo, muitas vezes sem um alvo certo.[v]

Após a proclamação da Independência e a Constituição de 1824, o Código Criminal de 1930, no artigo 68, previa para o caso de crime contra a independência ou integridade do Império, que a pena poderia ser de prisão perpétua.[vi] Na República, o Código Criminal de 1890 especificou grande quantidade de crimes contra o Estado, sendo que no artigo 111 estipulou pena de 2 a 4 anos de reclusão aos que se opusessem ao Poder Judiciário.[vii]

Em 1933, na era Vargas, foi criada a Polícia Política,[viii] sob o comando do temido Filinto Muller, reprimindo com extrema severidade integralistas e comunistas e reportando-se ao temido Tribunal de Segurança Nacional, típico tribunal de exceção, sobre o qual escrevi nesta revista eletrônica.[ix]

Restabelecida a democracia em 1946, uma nova fase de repressão sobreveio em 1964, sob o regime militar que se instalou. Em 1967, foi editado o Decreto-lei 343, criando novas regras para a chamada Segurança Nacional. Em 1968, sobreveio a fase mais dura, editado o AI 5 em 13 de dezembro, que permitia a prisão de suspeitos de crimes políticos sem direito ao uso de Habeas Corpus, decretar perda de cargo público, apreender recursos dos cidadãos e outras medidas de força.

Em setembro de 1969, entrou em vigor o Decreto-Lei 898, definindo uma série de crimes contra a segurança nacional punidos severamente e criando regras processuais com a do artigo 59, que permitia ao encarregado do inquérito decretar a prisão do suspeito por 30 dias, comunicando a autoridade judiciária.[x]

O DL 898 foi revogado pela Lei 6.620/1978, inspirada na distensão política, e esta pela Lei 7.170/1983, às vésperas da democratização do país. Este estatuto, finalmente, foi revogado pela Lei 14.197/2021, que abandonou o título segurança nacional, introduzindo o de crimes contra o Estado Democrático de Direito, inserindo no artigo 359 do Código Penal diversos fatos típicos destinados à proteção do Estado.

Esta é, em breves linhas, a evolução histórica da legislação que trata da proteção do Estado contra investidas de terceiros. Inequivocamente, todos os países necessitam e têm este tipo de proteção jurídica. Mais ainda agora, face a insurreições das mais diversas ordens e origens, com comunicação facilitada pelas redes sociais, algumas, inclusive, sem direção certa, como retratado pelo diretor Todd Phillips no filme O Coringa.[xi]

Vejamos, agora, a posição do inquérito das fake news frente ao ordenamento jurídico nacional, que traz consigo peculiaridades inusitadas.

A primeira delas é não contar esta investigação com o apoio do Ministério Público, órgão que requereu o arquivamento dos autos mais de uma vez, a primeira delas em abril de 2019. Portanto, fica a dúvida sobre a utilidade de uma investigação que, ao final, poderá ser arquivada pelo MPF, ou seja, ser um nada. É verdade que se ela se estender até setembro de 2023, um novo procurador-geral da República poderá ser empossado e pensar de forma diversa. Mas isto significará algo totalmente fora do sistema de Justiça, ou seja, um inquérito judicial de ofício, com quatro anos e meio de duração. Isto vai de encontro ao artigo 10 do Código de Processo Penal, que estabelece 30 dias para a conclusão dos inquéritos, ainda que tal prazo possa ser dilatado.

A segunda observação é a de que, no inquérito, o ministro Alexandre de Moraes tem determinado várias medidas coercitivas, de plano e sem ouvir a parte interessada. Não se desconhece que determinadas providências, por vezes, podem tornar-se ineficazes se não forem tomadas de imediato. Mas será que isto vem ocorrendo em todos os casos apurados? Se a resposta for negativa, estaremos diante de uma ofensa aos direitos fundamentais da ampla defesa e do devido processo legal, previstos no artigo 5º, incisos LIV e LV da Constituição.

Carlos Alberto Di Franco afirma que “os advogados dos investigados no inquérito das fake news, do STF, e em alguns de seus desdobramentos, como os inquéritos dos atos antidemocráticos e das mídias digitais, completaram dois anos sem vistas e sem acesso à íntegra dos autos destes processos”.[xii]

Terceiro registro diz respeito à ausência de informações públicas à sociedade, a respeito do que está sendo apurado. É razoável a existência de sigilo para que investigações possam ter sucesso ou nos casos em que ele seja imprescindível à segurança da sociedade e do Estado. Porém, não é razoável que medidas coercitivas se exerçam por tempo indeterminado e não sejam conhecidas as circunstâncias que as tornem necessárias. E da mesma forma, quais as provas existentes. Afinal, o princípio da transparência, adotado pela Constituição Federal no artigo 5º, inciso XXXIII, é um dos grandes avanços na consolidação da cidadania.

Em suma, mostra-se necessário aclarar-se as razões do inquérito instaurado, para o resguardo da imagem do STF e a segurança jurídica. Se nada for esclarecido e o inquérito prosseguir sem prazo de conclusão, a própria estrutura do sistema de Justiça será posta em dúvida, criando uma insegurança sobre qual direcionamento deve ser seguido. Tal dúvida retirará dos profissionais do Direito a segurança jurídica para o exercício de suas funções, ainda mais que é inconciliável a coexistência entre decisões garantistas, que seguidamente reconhecem direitos fundamentais e anulam processos, e um inquérito que contraria aquilo que o sistema de Justiça adota.

Mas este não é o único risco. Acima dele está o fato de que, no futuro, sob a justificativa de razões de Estado, outras medidas extremas poderão ser tomadas por quem estiver no exercício do poder. E os atingidos poderão ser desta ou daquela orientação política, bastará que estejam do lado oposto.

O único meio disto ser evitado é a obediência às normas, ainda que, por vezes, se revelem ineficientes, não sendo aceitável a incoerência que ora proíbe, ora permite. No mais, sempre é bom lembrar a frase de Churchill: “A democracia é a pior forma de governo, com exceção de todas as demais”.

[i] Wikepedia, Inquérito das Fake News, apud Nota do Gabinete do Ministro Alexandre de Moraes, Supremo Tribunal Federal. 27 de maio de 2020. Disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Inqu%C3%A9rito_das_Fake_News. Acesso em 23 nov. 2022.

[ii] RIO GRANDE DO SUL. Regimento Interno do Tribunal de Justiça, pp. 47-48. Disponível em: http:/www.tjrs.jus.br. Acesso em 23 nov. 2022.

[iii] AMAPÁ, Regimento Interno do Tribunal de Justiça, p. 63. Disponível em: https://old.tjap.jus.br/portal/images/SGPE/regimentointerno/REGIMENTO_INTERNO_TJAP-ATUALAT_RES1528-2022-TJAP.pdf. Acesso em 23 nov. 2022.

[iv] Ordenações Filipinas. Disponível em: http://www1.ci.uc.pt/ihti/proj/filipinas/l5p1158.htm. Acesso em 23 nov. 2022.

[v] MARTINS, Lucas Moraes. UMA GENEALOGIA DAS DEVASSAS NA HISTÓRIA DO BRASIL. Disponível em: http://www.publicadireito.com.br/conpedi/manaus/arquivos/anais/fortaleza/3245.pdf. Acesso em 24 nov. 2022.

[vi] Código Criminal do Império. Disponível em: https://www.bing.com/search?q=Código+Criminal+de+1930&form=ANSPH1&refig=55c14b1e56104fc199b987f7bdc644c5&pc=U531. Acesso em 25 nov. 2022.

[vii] Código Penal de 1890. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1851-1899/d847.htm#:~:text=DECRETO%20N%C2%BA%20847%2C%20DE%2011%20DE%20OUTUBRO%20DE%201890.&text=Promulga%20o%20Codigo%20Penal.&text=Art.,que%20n%C3%A3o%20estejam%20previamente%20estabelecidas.Acesso em 24 de nov. de 2022.

[viii] PACHECO, Thiago da Silva. INTELIGÊNCIA, SEGURANÇA E POLÍCIA POLÍTICA NO ESTADO NOVO E NA REPÚBLICA DE 1946, p. 88. Disponível em: C:/Users/Usuario/Downloads/15650-53824-1-PB.pdf. Acesso em 24 nov. 2022.

[ix] FREITAS, Vladimir Passos de.

[x] Decreto Lei 898, de 1969. Disponível em: https://www2.camara.leg.br/legin/fed/declei/1960-1969/decreto-lei-898-29-setembro-1969-377568-publicacaooriginal-1-pe.html. Acesso em 24 nov. 2022.

[xi] O Coringa, Diretor Todd Phillips, atores com Joaquin Phoenix, Robert De Niro, 2019.

[xii] FRANCO, Carlos Alberto Di. STF – abuso e insegurança jurídica. O Estado de São Paulo, 19 set. 2022, A5.

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    é professor de Direito no PPGD (mestrado/doutorado) da Pontifícia Universidade Católica do Paraná; pós-doutor pela FSP/USP, mestre e doutor em Direito pela UFPR; desembargador Federal aposentado, ex-Presidente do Tribunal Regional Federal da 4ª. Região. Foi Secretário Nacional de Justiça, Promotor de Justiça em SP e PR, presidente da International Association for Courts Administration (Iaca), da Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe) e do Instituto Brasileiro de Administração do Sistema Judiciário (Ibrajus).

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