Opinião

A censura do Arquivo Nacional

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25 de novembro de 2022, 7h02

"Arquivo Nacional afasta servidor por texto histórico sobre o artigo 142 [1] [2]" foi notícia recente no meio político e jurídico.

No caso, o servidor republicou em uma página do Arquivo Nacional artigo de nossa coautoria em conjunto com o professor Saulo Emmanuel Rocha de Medeiros, publicado aqui na ConJur no último dia 3 de novembro, e que teve como título "Artigo 142 é para impedir movimento golpista, não apoiá-lo" [3].

Entretanto, o servidor responsável pela publicação foi afastado de suas funções e a direção do órgão público do governo federal determinou que o arquivo fosse retirado da página oficial.

A dúvida que fica é: a referida conduta foi legal? É o que se pretende demonstrar, por meio de uma metodologia exploratória e descritiva, neste artigo.

Da existência de censura
A justificativa para a retirada do artigo deu sob o argumento de que "o texto publicado no site do Arquivo Nacional não é uma matéria institucional, ao contrário, é um artigo" e "dessa forma, foi retirado do ar pela instituição por não ser um conteúdo original, além de ter sido retirado de um site privado e se tratar de um conteúdo eminentemente opinativo [4]".

Entretanto, o servidor em questão republicou o artigo objeto da controvérsia na página do Arquivo Nacional intitulada "Memórias Reveladas" [5], que tem como função justamente contar a verdade sobre a ditadura militar, tal como fazia o referido trabalho acadêmico, ou seja: havia total pertinência entre o conteúdo da página e o artigo publicado.

Outrossim, importante frisar que o artigo em questão se tornou público a partir do momento no qual foi publicado na rede mundial de computadores, sendo perfeitamente possível a sua republicação em qualquer lugar desde que, tal como foi o caso, fosse citada a fonte.

No mais, ainda que publicado na seção de Opinião da ConJur, o artigo em questão tem um viés acadêmico, é escrito por dois professores e pesquisadores da rede pública federal, possuindo metodologia, citação das fontes e referências. Além disso, a ConJur é uma revista jurídica respeitada, com conselho editorial [6] e com ISSN desde 2006 [7].

Desse modo, não havia justificativa para a retirada do artigo do site do Arquivo Nacional a não ser a prática de censura, que, segundo José Afonso da Silva, pode ser prévia ou posterior [8], tal como aconteceu no presente caso.

Frise-se que a presente situação não se assemelha, por exemplo, com os casos das contas de políticos em redes sociais suspensas ou canceladas devido ao uso para a prática de crimes ou para a difusão de fake news, uma vez que as pessoas devem responder pelos danos causados quando abusam do direito de liberdade de expressão, sendo por essa razão que nossa Constituição veda o anonimato [9].

No caso do Arquivo Nacional, por outro lado, o servidor não praticou nenhum crime nem publicou qualquer inverdade, mas sim agiu em consonância com a preservação do direito à verdade e o direito à memória, que são essenciais para a busca de uma justiça de transição correspondente à passagem de um regime ditatorial para um regime democrático [10].

Assim, aos buscar divulgar a verdade por meio da republicação de um artigo escrito por pesquisadores, o servidor agiu dentro das suas atribuições legais e deveria ter recebido uma nota de aplauso, e não uma espécie de punição, conforme será aprofundado no tópico seguinte.

Da ilegalidade o afastamento
Conforme divulgado, o servidor do Arquivo Nacional foi afastado da sua função, mas continua trabalhando no órgão [11]. Assim, não houve demissão ou exoneração, até mesmo porque se trata de um servidor público efetivo e estável [12], ou seja, ele não poderia ser livremente exonerado de suas funções e só poderia ser demitido ao final de um processo administrativo disciplinar no qual fosse assegurado ampla defesa e contraditório justamente para se evitar "arbitrariedade e perseguições [13]".

Desse modo, o que aconteceu foi uma mudança de função dentro do mesmo órgão, como forma de evitar novas republicações de artigos com o mesmo teor do censurado.

De fato, não existe nenhuma ilegalidade em um superior hierárquico, em prol do interesse público, mudar a função de um servidor, desde que sejam respeitadas as atribuições do cargo, sendo o princípio da supremacia do interesse público um "pressuposto lógico do convívio social" [14].

Entretanto, neste caso, claramente o afastamento do servidor público do Arquivo Nacional não se deu em prol do interesse público, mas sim como mecanismo para inibir a divulgação de novos textos falando sobre a verdade do período da ditadura, o que torna o referido afastamento nulo em virtude de um desvio de finalidade, que se dá, tal como afirma Maria Sylvia Zanerlla Di Pietro, justamente quando "o agente desvia-se ou afasta-se da finalidade que deveria atingir para alcançar resultado diverso, não amparado por lei" [15].

Desse modo, a autoridade superior que afastou o servidor do Arquivo Nacional é quem deveria responder a um processo administrativo disciplinar, por ter se utilizado do afastamento não para atingir um interesse público, e sim para esconder a verdade sobre os horrores do período da ditadura militar no Brasil.

Conclusão
Vivemos tempos difíceis nos quais servidores públicos são afastados de suas funções por divulgarem artigos trazendo verdades sobre os tempos de ditadura e explicando juridicamente por que a nossa Constituição atual não permite um golpe militar.

Entretanto, tal como nosso ordenamento jurídico não permite um golpe militar, não se é permitido também o afastamento de servidores públicos pelo simples fato de exercerem suas funções, principalmente quando estamos falando da busca em se preservar a verdade e a memória sobre tempos sombrios, bem como em se expor a correta interpretação a ser dada ao nosso texto constitucional.

Enfim, espera-se a chegada de novos tempos, nos quais atos golpistas sejam dissipados e trabalhos acadêmicos sejam amplamente publicados e republicados e não excluídos.

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Referências
CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. 34ªed. São Paulo: Atlas, 2020.

DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 33ªed. Rio de Janeiro: Forense, 2020.

MELLO, Celso Antônio Bandeira. Curso de Direito Administrativo. 18ªed. São Paulo: Malheiros, 2005.

SANTOS, Claiz Maria Pereira Gunça dos; Soares, Ricardo Maurício Freire. As funções do direito à verdade e à memória. Revista Brasileira de Direito Constitucional (RBDC). nº 19  jan./jun. 2012

SILVA, José Afonso. Curso de Direito Constitucional Positivo. 43ªed. São Paulo: Malheiros/JusPodivm, 2020.

 


[5] A página pode ser acessa pelo presente link: https://www.gov.br/memoriasreveladas/pt-br

[8] SILVA, José Afonso. Curso de Direito Constitucional Positivo. 43ªed. São Paulo: Malheiros/JusPodivm, 2020. p.249.

[9] SILVA, José Afonso. Curso de Direito Constitucional Positivo. 43ªed. São Paulo: Malheiros/JusPodivm, 2020. p.247.

[10] SANTOS, Claiz Maria Pereira Gunça dos; Soares, Ricardo Maurício Freire. As funções do direito à verdade e à memória. Revista Brasileira de Direito Constitucional (RBDC). nº 19  jan./jun. 2012.

[13] CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. 34ªed. São Paulo: Atlas, 2020. p.741.

[14] MELLO, Celso Antônio Bandeira. Curso de Direito Administrativo. 18ªed. São Paulo: Malheiros, 2005. p.87.

[15] DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 33ªed. Rio de Janeiro: Forense, 2020. p.283.

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