Opinião

A burla de etiquetas na sustentação oral em agravo regimental no STJ

Autores

  • Alexandre Contin

    é mestre em Direitos Coletivos e Cidadania e especialista em Direito Penal e Processo Penal.

    View all posts
  • Marco Antônio Machado

    é graduado em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC Minas)/campus de Poços de Caldas especialista em Direito Penal e Processo Penal pela mesma instituição mestre na área de concentração Constitucionalismo e Democracia pela Faculdade de Direito do Sul de Minas (FDSM) membro do grupo de pesquisa Razão Crítica e Justiça Penal e advogado criminalista.

    View all posts
  • Natan Zabotto

    é advogado criminalista com atuação com ênfase no Tribunal do Júri especialista em Direito Penal e Processo Penal pela PUC-MG campus de Poços de Caldas professor de Direito Processual Penal e conselheiro da Jovem Advocacia da OAB-SP (biênio 2023-2024).

    View all posts

24 de novembro de 2022, 17h05

O Superior Tribunal de Justiça publicou no último dia 26 de setembro a Emenda Regimental 41/2022, que altera dispositivos do seu Regimento Interno para adequá-lo à Lei 14.365/2022. Nos processos penais em geral, de acordo com a emenda regimental, o prazo para a sustentação oral em julgamento de agravo regimental é de 5 minutos.

Sem entrar na questão do exíguo tempo de cinco minutos para a sustentação, o grande problema é que essa Emenda Regimental trouxe em seu bojo um verdadeiro cavalo de troia em detrimento das prerrogativas profissionais inerentes à advocacia e do direito de defesa dos jurisdicionados.

Isso porque a referida emenda determina que os agravos regimentais serão julgados em sessão virtual (que não se confunde com as sessões de julgamento por videoconferência, e na qual não há a participação ao vivo, em tempo real, das partes).

Dessa forma, as sustentações orais devem ser encaminhadas pelo advogado através de vídeo, após a publicação da pauta, em até 48 horas antes de iniciado o julgamento em ambiente virtual. Após, transcorrido o prazo previsto no parágrafo único do artigo 184-D do Ristj, será franqueado o acesso às sustentações orais e memoriais, com exceção dos processos sigilosos, aos quais só as partes, seus respectivos advogados e o Ministério Público terão acesso (Ristj, artigo 184-B, § § 1º e 2º).

A emenda ainda prevê que “O processo será excluído da pauta de julgamento virtual nas hipóteses em que, no prazo do parágrafo único do art. 184-D, qualquer integrante do Órgão Julgador expresse não concordância com o julgamento virtual” (Ristj, artigo 184-F, § 2º).

Ou seja: possibilidade de retirada dos processos da sessão virtual e inclusão na sessão presencial/videoconferência fica restrita ao alvitre dos ministros, de modo que, se o ministro decidir que o processo será julgado em sessão virtual, a parte é obrigada a se contentar com o julgamento nesta modalidade, já que não há previsão de oposição ao julgamento virtual pelo imputado. Assim, as sustentações têm que ser gravadas e enviadas ao tribunal, restando apenas a esperança de ser assistido, sem nenhuma garantia de audiência.

Tal hipótese é inaceitável à luz dos ditames constitucionais.

Como é cediço, em seu artigo 5º, LV, estabelece a Constituição que, aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes“.

A Convenção Americana de Direitos Humanos igualmente garante a “concessão ao acusado do tempo e dos meios adequados para a preparação de sua defesa”.

No mesmo tom, o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos assegura a toda pessoa acusada da prática de um delito o direito de “dispor do tempo e dos meios necessários à preparação de sua defesa e a comunicar-se com defensor de sua escolha”.

Como decidido pelo e. STF, por ocasião do julgamento do HC 205.282, os tratados internacionais citados, “à luz da cláusula de abertura contida nos § § 2º e 3º do art. 5º da CF possuem força normativa interna e cogente e natureza supralegal (RE 466.349)”.

Quando os textos constitucional e supralegal aludem a meios e recursos adequados e necessários ao exercício do direito de defesa, nisso se inclui, a toda evidência, o direito à sustentação oral. Não por acaso essa garantia é amplamente admitida pelo ordenamento jurídico pátrio e pelos regimentos internos dos tribunais brasileiros.

E, tamanha a sua relevância no que diz respeito à defesa penal efetiva, que a recente Lei 14.365/2022, que guarda relação com a emenda ora tratada, incluiu no artigo 7º do Estatuto da OAB (Lei 8.906/94), que elenca o rol de direitos e prerrogativas profissionais alusivas ao advogado, o parágrafo 2º-B, que expressamente autoriza ao defensor realizar a sustentação oral no recurso interposto contra a decisão monocrática de relator que julgar o mérito ou não conhecer dos seguintes recursos ou ações: I – recurso de apelação; II – recurso ordinário; III – recurso especial; IV – recurso extraordinário; V – embargos de divergência; VI – ação rescisória, mandado de segurança, reclamação, habeas corpus e outras ações de competência originária.

É dizer: cabe sustentação oral em agravo regimental nas hipóteses acima enumeradas.

Tal alteração legislativa, diga-se, veio em muito boa hora, sobretudo no que concerne ao Habeas Corpus, na medida em que, principalmente no STJ, são cada vez mais recorrentes as decisões que, monocraticamente, indeferem liminarmente ou denegam o writ, o que estava praticamente eliminando a possibilidade de sustentação oral em habeas corpus nas sessões de julgamento.

Com a inovação empreendida no Estatuto da OAB, no entanto, uma vez exarada a decisão monocrática e interposto o competente agravo regimental, o advogado tem o direito de sustentar oralmente na sessão de julgamento deste recurso, presencialmente ou por meio de videoconferência. Pelo menos é isso que garante a lei federal em estudo.

No ponto, saliente-se que, muito embora o direito pertença ao advogado, o destinatário dessa prerrogativa evidentemente é o cidadão defendido. É que o advogado sustenta no sentido da postulação de decisão favorável ao seu constituinte, ao convencimento do julgador, e seus atos constituem múnus público” (Lei 8.906/94, artigo 2º). Assim, o direito em questão, ao fim e ao cabo, tem o propósito de realizar, no plano prático, a franquia constitucional da ampla defesa.

Nesse sentido, conforme aponta Aury Lopes Júnior [1], a garantia constitucional ao direito de defesa se desdobra em dois aspectos fundamentais: o direito à defesa técnica e à defesa pessoal (autodefesa). Esta exercida pelo próprio investigado ou acusado e aquela desenvolvida por pessoa com conhecimentos teóricos do Direito, justificada pela exigência de equilíbrio funcional entre acusação e defesa e uma presunção de hipossuficiência do sujeito passivo. Vale dizer, que o inculpado não tem conhecimentos necessários para resistir à pretensão estatal em igualdade de condições técnicas com o órgão acusador.

Citando Foschini, Lopes Júnior refere que “a estrutura dualística do processo expressa-se tanto na esfera individual como na social” [2], pois a defesa técnica é também uma exigência da sociedade, eis que o imputado pode, a seu alvitre, defender-se pouco ou tampouco se defender, porém isso não retira o interesse coletivo na verificação negativa em hipóteses nas quais o fato imputado não constitua uma fonte de responsabilidade penal. De modo que “a defesa técnica é considerada indisponível, pois, além de ser uma garantia do sujeito passivo, existe um interesse coletivo na correta apuração do fato” [3]. Ainda. Trata-se de conditio sine qua non à paridade de armas e da concretização do contraditório, fortalecendo inclusive a imparcialidade do juiz, uma vez que a atuação e a eficiência das partes correspondem ao maior distanciamento do juiz do caso penal.

Mais ainda. Segundo a melhor doutrina, a eficiência da defesa técnica serve também de mecanismo de autoproteção do sistema processual penal, notadamente voltado à garantia de cumprimento das regras do jogo envolvendo a dialética processual e a igualdade entre as partes. A rigor, trata-se de “uma satisfação alheia à vontade do sujeito passivo, pois resulta de um imperativo de ordem pública, contido no princípio do due process of law [4].

Volvendo ao cerne da questão, a alteração levada a efeito no regimento cuida-se, com todas as vênias, de verdadeira burla de etiquetas [5] à norma estampada no artigo 7º, § 2º-B, da Lei 8.906/94, pois retirou ilegalmente, eis que não tem atribuição legislativa para tanto, a possibilidade de sustentação oral em sessão presencial para os feitos em que se insurge contra decisões monocráticas.

Ora, sustentação oral é aquela feita ao vivo, em tempo real, no dia da sessão de julgamento, na presença do colegiado julgador, da tribuna, ainda que por meio de videoconferência. Como leciona Rodrigo Becker, a sustentação oral pode é um resquício do direito romano, que era invariavelmente oral, e se relaciona com o próprio desenvolvimento da figura do advogado, que representa, em juízo, a parte, fazendo o uso da palavra no lugar dela, seja para pleitear o pretendido, seja para complementar ou modificar a tese de acordo com que entende melhor para influenciar a decisão, justamente no momento de sua formação, buscando o atingimento da pretensão [6].

A modalidade de julgamento virtual, destarte, só é lícita se for dada ao imputado, por meio de seu defensor, a oportunidade de opor-se a ela, notadamente porque, longe de homenagear as garantias constitucionais, este meio de julgamento atende a mero propósito eficientista estatal (Luciano Feldens [7]). De maneira que tal oposição não pode ficar a cargo somente da vontade dos ministros, devendo passar também pelo crivo da defesa, sob pena de evidente afronta à ampla defesa.

Sim, pois a sustentação oral gravada e enviada para ser supostamente assistida em ocasião posterior, sem qualquer garantia de audiência, não é suficiente aos fins pretendidos, na medida em que retira a efetividade do direito de defesa, obstaculizando-o injustificadamente, o que não pode ser tolerado.

Ilustrativamente, essa situação pode ser comparada a uma aula. Na aula ao vivo, ainda que por videoconferência, o professor tem contato visual direto com os alunos, que podem nela intervir oportunamente para sanar eventuais dúvidas. Pode ainda o professor visualizar as expressões dos alunos enquanto fala e notar se está sendo ouvido ou não por eles, de forma a moldar seu discurso. Essas importantes interações simplesmente não existem em uma aula gravada. E a tendência natural é que os alunos prestem mais atenção a uma aula ao vivo; a aula gravada nunca terá o mesmo efeito que a primeira. Isso também vale para uma partida de futebol e para uma sustentação oral:

“A diferença entre um grande acontecimento ao vivo (presente) e um gravado (passado) é o suspense, a ansiedade, a excitação, a adrenalina, a concentração e a atenção. No caso do grande evento esportivo, os jogadores são obviamente os mesmos, o juiz e os auxiliares vão fazer os mesmos erros e acertos, o técnico vai fazer as mesmas substituições e o público vai gritar, cantar, chorar, xingar da mesma forma. Mas isso é história. E qualquer história se caracteriza pela frieza. Nunca desperta o mesmo interesse de um acontecimento ao vivo, no presente. No momento. Aliás, dizem que não há vida nem no passado, nem no futuro. Só no presente” [8].

Ademais, no que pertine à sustentação oral, diferentemente das sessões presenciais ou por videoconferência, na sessão virtual é retirada da defesa a possibilidade de usar da palavra pela ordem mediante intervenção pontual e sumária, para esclarecer equívoco ou dúvida surgida em relação a fatos, a documentos ou a afirmações que influam na decisão” (Lei 8.906/94, artigo 7º, X).

Isso por si só já limita em grande medida o direito de defesa. Não são raros os casos em que o resultado do julgamento é determinado por uma intervenção oportuna do advogado, no sentido de fazer um esclarecimento fático.

Ora, nas palavras do professor Antônio Scarance Fernandes, “além de necessária, indeclinável, plena, a defesa deve ser efetiva, não sendo suficiente a aparência de defesa [9].

É como se expressa, segundo o professor Luciano Feldens, o Tribunal Europeu de Direitos Humanos (TEDH), “cuja jurisprudência é enfática no sentido de que o direito de defesa não deve ser compreendido como algo ‘teórico ou ilusório, mas sim concreto e efetivo'” [10].

Também no escólio deste último professor, “A defesa não se terá por efetiva se se encontrar obstáculos que impeçam ou dificultem seu exercício em termos ideais. Trata-se, aqui, de alguma restrição ao direito atribuível ao Estado” [11].

No mesmo tom, respeita-se o caráter efetivo do direito e defesa se se proporciona ao acusado “o seu exercício em plenitude, sem a ocorrência de quaisquer restrições ou obstáculos, ilegitimamente criados pelo Estado” (STF – HC 68.171, min. Celso de Mello, j. 13/11/1990).

O modelo de “sustentação oral” previsto na Emenda Regimental 41/2022, portanto, não é bastante; não atende aos postulados constitucionais, porquanto, mais do que violar prerrogativa profissional expressamente prevista em lei, traduz odioso empecilho ao efetivo direito de defesa, transformando a sustentação oral numa fantasia e esvaziando a sua finalidade e importância.

Não se pode conceber esse formato. Como diria Machado de Assis, “A questão, porém, não é de pão, é de manteiga. Pão seco é que eu não engulo”.

A advocacia brasileira não pode se contentar em engolir pão seco e muito menos as migalhas oferecias pela mencionada Emenda Regimental. A Constituição Cidadã, os tratados internacionais e a lei nos garantem mais.

Como proclamou o ministro Celso de Mello, “o desrespeito às prerrogativas — que asseguram, ao Advogado, o exercício livre e independente de sua atividade profissional — constitui inaceitável ofensa ao regime das liberdades públicas nele consagrado” (STF — MS 23.576, DJ 7/12/1999).

Isso posto, conclamamos a Ordem dos Advogados do Brasil, as associações de advogados e os próprios advogados e advogadas individualmente considerados para que reajamos contra essa situação que nos está sendo posta, exercendo nosso “poder-dever de questionar, de fiscalizar, de criticar e de buscar a correção de abusos cometidos por órgãos públicos e por agentes e autoridades do Estado, inclusive magistrados” [12].


[1] JÚNIOR, Aury Lopes. Direito Processual Penal. 17ª ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2020, p. 147.

[2] JÚNIOR, Aury Lopes, Op. Cit. p. 148.

[3] JÚNIOR, Aury Lopes, Op. Cit. p. 148.

[4] JÚNIOR, Aury Lopes, Op. Cit. p. 149.

[5] CARVALHO, Salo de. Burla de etiquetas. in Boletim IBCCrim. Ano 11. nº 137. abril de 2004.

[6] BECKER. Rodrigo Frantz. A sustentação oral como garantia de influência na decisão judicial. Revista Brasileira do Direito Processual Civil. Belo Horizonte, ano 28, n. 111, p. 250-251.

[7] FELDENS, Luciano. O Direito de Defesa: A Tutela Jurídica da Liberdade na Perspectiva da Defesa Penal Efetiva. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2021, p. 36.

[9] FERNANDES, Antônio Scarance. Processo Penal Constitucional. São Paulo: RT, 2002, p. 273-274.

[10] FELDENS, Luciano. Op. Cit. p. 35.

[11] FELDENS, Luciano. Op. Cit. p. 36.

[12] HC 98.237, rel. min. Celso de Mello.

Autores

  • é mestre em Direitos Coletivos e Cidadania e especialista em Direito Penal e Processo Penal.

  • é advogado criminalista, especialista em Direito Penal e Processo Penal pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-MG), mestre na área de concentração Constitucionalismo e Democracia pela Faculdade de Direito do Sul de Minas (FDSM) e membro do grupo de pesquisa Razão Crítica e Justiça Penal.

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!