Crime de latrocínio na Súmula 610 do Supremo Tribunal Federal
19 de novembro de 2022, 6h03
O Código Penal brasileiro é estruturado em Parte Geral e Parte Especial, contendo, nesta última, disposições que tratam sobre os crimes em espécie, ou seja, dos crimes contra a pessoa, contra o patrimônio, contra a dignidade sexual, entre outros.
Especificamente no tocante aos crimes contra o patrimônio, a redação tratada no artigo 157 do referido diploma disciplina o crime de roubo, definindo-o como sendo uma espécie de crime complexo, estruturado de forma simples, majorada e qualificada. Destaca-se, neste último caso, o roubo com resultado morte, comumente denominado latrocínio.
O latrocínio é, especificamente, o roubo cujo resultado de sua prática ocasione a morte da vítima, conforme imposto pelo inciso II, do §3º do artigo 157 do Código Penal. Portanto, prima facie, para a consumação do tipo penal é necessário que: a) o agente subtraia algum bem da vítima; b) que esta subtração se dê por violência ou grave ameaça; e c) que a junção da subtração e da violência ou grave ameaça ocasione a morte da vítima.
Pois bem. No campo jurisprudencial, eram comuns discussões acerca da imposição da qualificadora, sendo levantada a questão se seria mantida mesmo não ocorrendo a efetiva subtração do bem da vítima.
Objetivando garantir a uniformidade de entendimento na aplicação do Direito, o tema foi enfrentado pelo Supremo Tribunal Federal, que por meio da Súmula 610, pacificou, em tese, o assunto com a seguinte redação: "Há crime de latrocínio quando o homicídio se consuma, ainda que não realize o agente a subtração de bens da vítima".
A despeito da edição da referida súmula, que decorre de um entendimento firmado ainda em 1984, o tema em questão se encontra distante de atingir um entendimento pacífico entre os doutrinadores e demais juristas penais. Isto porque, em razão do princípio da legalidade estrita, há uma parcela da comunidade jurídica que discorda do entendimento sumular.
A começar pelo entendimento dissonante, o fundamento impõe analisar o próprio tipo penal do roubo.
Este posicionamento se pauta no caput do artigo 157, que exige, para a consumação do roubo, a ocorrência da subtração da coisa alheia; sem que haja a subtração do bem, acaba por desmontada a estrutura do tipo penal, descaracterizando a própria tipicidade do crime.
Igualmente, o próprio Código Penal, nos termos do inciso I, do artigo 14, estabelece como consumado o crime quando se reúnem na conduta todos os elementos de sua definição legal.
Nesses termos, a qualificadora do latrocínio somente seria aplicável se, no caso concreto, estivessem reunidos efetivamente todos os elementos do crime, isto é, a subtração, a violência ou grave ameaça e a morte.
Para o Supremo, entretanto, ainda que não se operasse a subtração, subsistiria a qualificadora do latrocínio, deixando de lado, para essa parte da doutrina, a concepção adotada pelo próprio Código Penal a respeito da consumação do crime.
A visão em sentido contrário à posição adotada pela Suprema Corte é adotada por Rogério Greco [1], ao dispor que a Súmula do STF é completamente contra legem, pois os crimes penais autônomos que se somam e integram o latrocínio devem ser ambos consumados a fim de que exista a tipicidade do crime no tocante a aplicabilidade da norma em pauta.
Portanto, o argumento contrário ao contido na Súmula 610 do Supremo se sustenta no princípio da legalidade, haja vista que para a consumação da infração penal exige-se a reunião de todos os elementos, o que, segundo esta parte da doutrina, não se verifica para o caso adotado pela Corte, isto porque, ausente o ato de subtrair, elemento contido no roubo.
Ressalta-se ser inegável que a adoção deste entendimento acaba sendo, de certo modo, mais favorável ao agente criminoso que, ao máximo responderá em sua forma tentada — redução de um terço da pena.
Por outro lado, há outra parte da doutrina que reconhece a validade do entendimento adotado pela Suprema Corte, principalmente porque concede maior efetividade ao direito à vida, garantindo uma punição mais justa em face do agente criminoso.
É possível citar os professores Júlio Mirabete, Renato Fabrini, Damásio de Jesus, Cleber Masson, Guilherme de Souza Nucci e Romeu de Almeida Salles Júnior como favoráveis ao entendimento sumulado.
A doutrina de Cleber Masson [2], por exemplo, ainda que aponte que tecnicamente o ideal seria reconhecer o crime em sua modalidade tentada, não deixa de reconhecer a validade da Súmula; assevera que a súmula se fundamenta em motivos de política criminal, sendo mais justa a punição por latrocínio consumado, pois a vida humana está acima de interesses patrimoniais.
Igualmente é o posicionamento de Guilherme Souza Nucci [3], ao asseverar que pelo fato de a vida humana estar acima dos interesses patrimoniais, soa mais justa a punição do agente por latrocínio consumado, até porque o tipo penal se utiliza da expressão "se da violência resulta morte", seja ela exercida numa tentativa ou num delito consumado anterior.
Em que pese a divergência estabelecida, registre-se que os dois posicionamentos são igualmente relevantes para a ciência penal, ambos com argumentos consistentes para sua melhor aplicação, sendo um pró reo e o outro pró societate.
Não se nega, também, que a divergência em torno da súmula é problemática, pois, por um lado, sabemos que a ciência do Direito Penal não deve ser interpretada à luz de sentimentalismos, mas sim pelos seus próprios institutos; de outro, temos uma sociedade onde a criminalidade está cada vez mais evidente, surgindo a necessidade de uma maior rigidez da Lei e sua interpretação.
No caso, ficou claro que o Supremo Tribunal Federal, por ocasião da elaboração de mencionada súmula, optou pela ponderação de valores, prevalecendo uma concepção que garanta maior proteção à vida, ainda que isto contrarie o próprio Código Penal.
A conclusão que se chega ao assunto é que, nos termos atuais, a Súmula garante maior preocupação com a vítima e maior justiça na aplicação da pena, muito embora, por si só, não tenha grande efetividade frente ao complexo de justiça penal do Brasil.
A título de exemplo, diferentemente do raciocínio adotado, a 3ª Seção do Superior Tribunal de Justiça adotou, recentemente, o entendimento de que, no furto, não se aplica a majorante do repouso noturno para as hipóteses de furto qualificado.
A decisão se pautou exclusivamente numa interpretação sistemática sob o viés topográfico, em que se define a extensão interpretativa de um dispositivo legal levando-se em conta sua localização no conjunto normativo. Neste caso, vê-se que a interpretação foi exclusivamente técnica, ainda que desfavorável para com a vítima.
De todo modo, resta-nos aguardar se controvérsia em torno da Súmula 610 emergirá na atual composição do Supremo, que é diferente de 1984, especialmente pelo fato de que, nos últimos anos, a Corte tem se demonstrado, em diversas ocasiões, atrelada a posicionamentos com fins bem mais garantistas.
[1] GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal: Parte Especial. Vol. 3. 12. ed. Niterói: Editora Impetus, 2015.
[2] MASSON, Cleber. Direito Penal: Parte Especial. 11. ed. São Paulo: Método, 2018. v.
[3] NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de Direito Penal. 9. ed. rev. atual. e ampl. São Paulo. Revista dos Tribunais, 2013.
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