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Zilan Costa e Silva: Processo kafkiano do navio fantasma em PE

17 de novembro de 2022, 9h13

Por Zilan Costa e Silva

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Um novo capítulo da história marítima brasileira tem como protagonista o "navio fantasma" parado perto de Pernambuco. A história começa quando o estaleiro turco SOK comprou da Marinha brasileira o porta-aviões Nae São Paulo. Para fechar o negócio, foi preciso passar por longo processo licitatório e apresentar documentos internacionais e nacionais, inclusive relatórios de inspeção. O objetivo era levar a embarcação à Turquia para fazer reciclagem verde, que dá destinação final adequada a todos os materiais contidos no navio.

Rob Schleiffert/Flickr
Porta-aviões Nae São Paulo
Rob Schleiffert/Flickr

O procedimento é necessário em um mercado vital do comércio internacional. Segundo as Nações Unidas, o transporte marítimo movimenta 80% de toda a carga mundial. Em média, 800 embarcações são desmanteladas por ano, sendo que existem 39 estaleiros certificados pela União Europeia, em sua Regulamentação para a Reciclagem de Navios (EU-SSR). Um deles é o turco SOK, que tem mais de 30 anos de atuação. A empresa turca é a mesma que realizou toda a reciclagem verde para a Marinha Britânica — a mais rígida do mundo.

A reciclagem de embarcações se tornou ainda mais essencial em razão das atuais práticas de ESG (Governança Ambiental, Social e Corporativa). Estudos da área estimam que é possível reaproveitar cerca de 90% de dos materiais extraídos das embarcações no desmantelamento (em especial aço e ferro), em uma ação de preservação ambiental, cuidado com os oceanos e com a saúde.

Durante a viagem à Turquia, na altura do estreito de Gibraltar, a empresa responsável pelo transporte do Nae São Paulo foi surpreendida por notícias falsas que surgiram não se sabe de onde (por enquanto), e provocaram a suspensão da autorização de recebimento do navio por parte da entidade ambiental turca. A embarcação teve que retornar ao Brasil, seguindo os rígidos protocolos da Convenção de Basileia, que trata do Controle de Movimentos Transfronteiriços de Resíduos Perigosos e seu Depósito, assinado em 1993. 

Em relação ao tratado ambiental que foi ratificado no Brasil em 19 de julho de 1993, tudo está em dia. A Convenção da Basileia reconhece o direito dos países em definir requisitos para a entrada e destinação de resíduos considerados ou definidos como perigosos, ficando o Ibama o designado como autoridade competente. O órgão ambiental regulamentou os procedimentos de controle por meio da Instrução Normativa n° 12, de julho de 2013. 

Como oficiou a Ibama em 10 de novembro, "este Instituto renova a afirmação quanto à regularidade e o rigor técnico aplicado ao procedimento de autorização para a exportação do ex-navio, à luz de suas competências ambientais como autoridade da Convenção de Basileia". "Com isso, reiteramos que o ex-Nae São Paulo apresentou todos os requisitos técnicos necessários para o início de exportação, em agosto de 2022, incluindo os aspectos ambientais, e que as condições atuais de segurança e flutuabilidade foram recentemente analisadas, constam em relatório de inspeção recente (SEI nº 1.3950.501), o qual foi submetido à Marinha do Brasil."

A MSK Maritime Services & Trading agora estuda medidas judiciais em razão dos prejuízos e danos ambientais causados pelo conflito desencadeado pelo governo de Pernambuco. A empresa tem as acreditações internacionais de responsabilidade ambiental no transporte de embarcações, com mais de 1,5 mil páginas de relatórios de especialistas em materiais perigosos independentes, acreditados globalmente, fornecidos pelos proprietários e aprovados pelo Ibama que atestam a capacidade de navegar legalmente e que não causa dano à saúde ou ao meio ambiente.

A Marinha brasileira determinou a atracação no porto de Suape e o Ibama autorizou a exportação e determinou a entrada do navio, que é seguro. O governo de Pernambuco, no entanto, entrou com uma ação para proibir o navio de atracar. A medida seria a suposta presença de 10 toneladas de amianto na embarcação (equivalente a 0,05% do peso do navio) e de outras substâncias tóxicas e radioativas. O navio, no entanto, passou por todos os testes exigidos antes de partir para sua viagem original à Turquia.

Cerca de 20 toneladas de combustível são consumidas por dia para que os rebocadores sustentem o navio — um gigante de quase 266 metros e que possui quase 6 mil compartimentos — ocasionando consumo desnecessário, em total prejuízo ao meio ambiente, enquanto se aguarda um desfecho da situação pelas autoridades brasileiras.

A tradição no meio marítimo é o navio ter gênero feminino. Nesse sentido, o Nae São Paulo é uma respeitável senhora navegando com destino a seu pôr do sol. A última viagem antes de seu descanso. Uma pena que nesse momento sua dignidade esteja tão afetada. Não por sua culpa, muito menos de quem está encarregado do cortejo final.