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O plano de saúde coletivo de microgrupos: admissão da figura jurídica

Autor

  • Gustavo Kloh

    é doutor em Direito Civil pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro professor da Escola de Direito da Fundação Getúlio Vargas (Rio de Janeiro) advogado e Parecerista sócio de NBNK Advogados.

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10 de novembro de 2022, 8h00

Planos de saúde e a migração para os modelos coletivos
No sistema atual, regido pela Lei 9.656/98, os planos de saúde se apresentam como divididos em dois grandes modelos de contratação. O artigo 16, VII, é claro ao afirmar que os planos podem ter dois "regimes" distintos, individual ou coletivo, e o coletivo dividido em duas modalidades, por adesão ou empresarial. Os planos individuais se caracterizam por uma rígida proteção do usuário, que não pode ser submetido a reajustes superiores aos autorizados pela ANS, nem sofrer rescisão unilateral. Não dependem da formação de um grupo, de uma coletividade, podendo ser contratados sem a adição de outros usuários.

Os planos individuais, imaginou o legislador, seriam o padrão de contratação mais usual, sendo os planos coletivos reservados para situações nas quais houvesse a busca por vantagens negociais efetivas, que decorressem de um grupo associativo real ou ainda de um grupo de pessoas ligadas a uma empresa. O que não foi possível prever foi a progressiva "coletivização" dos planos de saúde, oriunda de alguns fatores, destacados por Joana Cruz:

"As operadoras possuem maior liberdade para reajustar os valores dos planos, uma vez que os reajustes em contratos coletivos não são regulados pela ANS e independem de autorização prévia da Agência (ao contrário do que ocorre no caso dos planos individuais/familiares); Como a legislação não proíbe expressamente a rescisão unilateral pelas operadoras nos contratos coletivos, toda vez que estes não se apresentem mais vantajosos aos interesses econômico-financeiros daquelas, o consumidor encontra-se impossibilitado de obter acesso à assistência à saúde contratada" [1].

Em contrapartida, a relação cobertura/prestação mensal é otimizada por estes fatores, resultando em valores substancialmente mais aceitáveis, que fazem frente a uma cobertura mais ampliada. Existe mesmo um certo desinteresse de algumas operadoras (mas não de todas) em comercializar planos individuais, face à maior flexibilidade negocial e menor carga de direitos mínimos obrigatórios incidentes nos planos coletivos [2]. O surgimento das administradoras também acelerou este processo [3].

Ocorre que essa divisão estanque começou há cerca de cinco anos a ser desconstruída, diante da admissão, por órgãos reguladores [4], estudiosos, e pelos julgados dos tribunais, da aplicação de proteções típicas dos planos individuais a determinados pequenos grupos (que denominaremos de microgrupos). Este fenômeno adiciona mais uma camada à análise: em vez de se falar apenas em coletivização, já se admite uma "falsa coletivização", ou seja, que em alguns casos não estão presentes "verdadeiras" características grupais, devendo ser expandidas tutelas para grupos que podem ser tão pequenos quanto apenas duas pessoas. Mas seria teoricamente esta construção aceitável, e se for, será desejável?

Qualificação dos contratos e planos de saúde
Existe suporte teórico para que um contrato, conquanto nominalmente direcionado a um regime, seja associado a outro, em virtude da identificação de elementos que assim o justifiquem. Trata-se da aplicação da teoria da qualificação dos contratos, tratada com profundidade em Portugal [5] e bem debatida já por autores brasileiros [6]. Esta teoria justifica a legitimidade conceitual para, dentre outras considerações, combinar ou desviar efeitos de diferentes contratos. Além disso, com seu amparo é possível reconhecer a formação de um "tipo" social, não previsto em lei, mas oriundo do comportamento reiterado de partes, que, em um primado da boa-fé objetiva, comportam-se como se contratos de uma dada característica fossem do mesmo tipo [7]. As condutas esperadas e previsíveis passam a ser de certo modo obrigatórias, e um novo tipo de contrato é reconhecido.

É exatamente isso que fazem os tribunais nacionais ao reconhecer esse novo "tipo" — realidade jurídica autonomizada, associável a um regime jurídico, com contornos próprios — que é por eles denominado "plano de saúde falso coletivo". Particularmente, não pensamos que esse seja o melhor nome, visto insinuar uma tentativa de burla ou simulação. Na verdade, a possibilidade de busca de um negócio interessante para ambas as partes o fomenta. Preferiríamos o nome microgrupo ou coletivo de pequenos grupos, porque é este dado objetivo, e não propriamente uma falsidade, que individualiza e caracteriza essa situação contratual. É esse o elemento definidor. O Superior Tribunal de Justiça já reconheceu os planos com menos de trinta beneficiários [8] (ou menos) como sendo pertencentes a este outro regime jurídico contratual:

"As questões controvertidas nestes autos são: se é válida a cláusula contratual que admite a rescisão unilateral e imotivada do plano de saúde coletivo empresarial que contém menos de 30 (trinta) beneficiários e se a devolução das quantias de mensalidades pagas a maior deve se dar a partir de cada desembolso ou do ajuizamento da demanda. (…) 5. Os contratos grupais de assistência à saúde com menos de 30 (trinta) beneficiários possuem características híbridas, pois ostentam alguns comportamentos dos contratos individuais ou familiares, apesar de serem coletivos. De fato, tais avenças com número pequeno de usuários contêm atuária similar aos planos individuais, já que há reduzida diluição do risco, além de possuírem a exigência do cumprimento de carências. Em contrapartida, estão sujeitos à rescisão unilateral pela operadora e possuem reajustes livremente pactuados, o que lhes possibilita a comercialização no mercado por preços mais baixos e atraentes. 6. Diante da vulnerabilidade dos planos coletivos com quantidade inferior a 30 (trinta) usuários, cujos estipulantes possuem pouco poder de negociação em relação à operadora, sendo maior o ônus de mudança para outra empresa caso as condições oferecidas não sejam satisfatórias, e para dissipar de forma mais equilibrada o risco, a ANS editou a RN nº 309/2012, dispondo sobre o agrupamento desses contratos coletivos pela operadora para fins de cálculo e aplicação de reajuste anual. 7. Os contratos coletivos de plano de saúde com menos de 30 (trinta) beneficiários não podem ser transmudados em plano familiar, que não possui a figura do estipulante e cuja contratação é individual. A precificação entre eles é diversa, não podendo o CDC ser usado para desnaturar a contratação. 8. Em vista das características dos contratos coletivos, a rescisão unilateral pela operadora é possível, pois não se aplica a vedação do art. 13, parágrafo único, II, da Lei nº 9.656/1998, mas, ante a natureza híbrida e a vulnerabilidade do grupo possuidor de menos de 30 (trinta) beneficiários, deve tal resilição conter temperamentos, incidindo, no ponto, a legislação do consumidor para coibir abusividades, primando também pela conservação contratual (princípio da conservação dos contratos) (…)" (REsp 1.553.013/SP, rel. ministro RICARDO VILLAS BÔAS CUEVA, 3ª Turma, j. 13/3/2018, DJe 20/3/2018) [9].

O Superior Tribunal de Justiça admitiu, é importante dizer, não a aplicação da proteção legal aos planos familiares tout court, mas o reconhecimento dos planos de microgrupos como figura híbrida, capaz de atrair proteções (como a vedação à rescisão imotivada), mas com temperamentos. Todavia, nas duas características especiais dos planos coletivos, já é possível verificar que a equiparação já está se materializando, e que a atração do regime protetivo é relevante.

Rescisão unilateral limitada
Neste tema particular são várias as decisões do Superior Tribunal de Justiça, bastando uma como exemplo:

"DIREITO PRIVADO. RECURSO ESPECIAL. AÇÃO DE OBRIGAÇÃO DE FAZER C/C COMPENSAÇÃO POR DANOS MORAIS. PLANOS DE SAÚDE. REGIME DE CONTRATAÇÃO. COLETIVO. POPULAÇÃO VINCULADA À PESSOA JURÍDICA. EMPRESÁRIO INDIVIDUAL. DOIS BENEFICIÁRIOS. RESCISÃO UNILATERAL E IMOTIVADA. DIRIGISMO CONTRATUAL. CONFRONTO ENTRE PROBLEMAS. ANALOGIA. DISSÍDIO JURISPRUDENCIAL. SIMILITUDE FÁTICA. AUSÊNCIA. HONORÁRIOS DE SUCUMBÊNCIA RECURSAL. MAJORAÇÃO. (…) 4. A contratação por uma microempresa de plano de saúde em favor de dois únicos beneficiários não atinge o escopo da norma que regula os contratos coletivos, justamente por faltar o elemento essencial de uma população de beneficiários 5. Não se verifica a violação do art. 13, parágrafo único, II, da Lei 9.656/98 pelo Tribunal de origem, pois a hipótese sob exame revela um atípico contrato coletivo que, em verdade, reclama o excepcional tratamento como individual/familiar. 6. Recurso especial conhecido e não provido, com majoração de honorários recursais" (REsp 1.701.600/SP, rel. ministra NANCY ANDRIGHI, 3ª Turma, j. 6/3/2018, DJe 9/3/2018).

O caso acima mencionado também revela a mesma lógica, de formação de um modelo híbrido. Não é vedada a rescisão, como ocorreria em um plano individual, mas depende de motivação a rescisão do contrato coletivo.

Vedação a reajuste acima da tabela da ANS limitada
Menos decisões são encontradas aplicando a vedação a aumentos que suplantem a tabela da ANS para os microgrupos, mas elas existem, inclusive no âmbito do Superior Tribunal de Justiça:

"AGRAVO INTERNO NOS EMBARGOS DE DECLARAÇÃO NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. AÇÃO COMINATÓRIA CUMULADA COM DECLARAÇÃO DE NULIDADE DE CLÁUSULA CONTRATUAL. PLANO DE SAÚDE COLETIVO EMPRESARIAL QUE BENEFICIA APENAS QUATRO EMPREGADOS. CONTRATO COLETIVO ATÍPICO. APLICABILIDADE DO CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR. REAJUSTE COM BASE NA SINISTRALIDADE. AUSÊNCIA DE MOTIVAÇÃO IDÔNEA. QUEBRA DA BOA-FÉ OBJETIVA. OFENSA AO PRINCÍPIO DA RAZOABILIDADE. AGRAVO PROVIDO. (…) 5. Não se verifica a violação do art. 13, parágrafo único, II, da Lei 9.656/98 pelo Tribunal de origem, pois a hipótese sob exame revela um atípico contrato coletivo que, em verdade, reclama o excepcional tratamento como individual/familiar" (REsp 1.701.600/SP, rel. ministra NANCY ANDRIGHI, 3ª TURMA, DJe de 9/3/2018). 3. Hipótese em que o acórdão recorrido está em consonância com a jurisprudência do STJ, no sentido de que, embora se tratando de contrato firmado por pessoa jurídica, o contrato coletivo de plano de saúde que possua número ínfimo de participantes, no caso apenas quatro beneficiários, dado o seu caráter de contrato coletivo atípico, justifica a incidência do Código de Defesa do Consumidor, autorizando tratamento excepcional como plano individual ou familiar. Ademais, nos termos do reconhecido pelas instâncias ordinárias, o reajuste pretendido, fundado em suposto aumento da sinistralidade do grupo, não foi minimamente justificado pela operadora, razão pela qual autorizado, tão somente, reajuste aprovado pela ANS para o período. 4. Agravo interno provido para conhecer do agravo e negar provimento ao recurso especial da operadora de plano de saúde. (AgInt nos EDcl no AREsp 1.137.152/SP, rel. ministro RAUL ARAÚJO, 4ª Turma, j. 2/4/2019, DJe 15/4/2019).

É possível também encontrar decisões de tribunais locais na mesma direção [10], do que se depreende que o reconhecimento deste outro tipo contratual, não exatamente individual nem coletivo, está dando origem a um regime jurídico normativo, de feição mais jurisprudencial do que legislativa ou administrativa, a demandar atenção e análise.

Conclusão: uma crítica à luz da lei de liberdade econômica
A admissão de um tipo contratual próprio, com regime distinto, deve ser cotejada com as disposições da Lei de Liberdade Econômica, nas alterações por ela trazidas ao artigo 421 do Código Civil, em especial quando o microgrupo está associado a uma empresa (contratos coletivos empresariais). Neste caso, vale a crítica de que este contrato deve ser entendido a priori como paritário (Código Civil, art. 421-A), e que a alocação inicial de riscos deve ser respeitada.

O surgimento dos microgrupos é resposta econômica válida do ponto de vista da formação de preço. Admitir que existe liberdade negocial de entrada (para formar tais grupos e contratar serviços e preços competitivos) mas não liberdade de saída (no momento da crise contratual) seria dar tratamento diverso, em momentos diversos, aos mesmos contratantes. Tal atitude não seria paritária. Como efeito econômico, haveria desestímulo para a contratação com microgrupos (como ocorreu nos contratos individuais), ou ainda impacto severo nos preços. Neste particular, proteger desmesuradamente os microgrupos pode semear a extinção desta forma de contratar.

Ademais, a ausência de regulação dos planos coletivos, existindo autoridade que poderia fazê-lo, apenas sinaliza para o espaço da liberdade contratual, que é regra e não exceção. As alterações no art. 421 do Código Civil reforçam tal leitura, sendo certo que o Código Civil foi alterado, mas a Lei 9.565/98 segue amparando a liberdade para contratar planos coletivos. Devemos estar vigilantes para os próximos desdobramentos, nunca descuidando do frágil equilíbrio no qual se ampara este mercado.

 


[2] ANDRIETTA, Lucas S. (2022). Falsa coletivização de planos de saúde: expansão, reajustes e judicialização (2014-2019). Revista De Direito Sanitário, 22(1), e0004. https://doi.org/10.11606/issn.2316-9044.rdisan.2022.177216.

[3] SOUZA, Nícia Olga Andrade de. A comercialização de planos de saúde "Falsos Coletivos": conversão substancial e nova qualificação categorial do contrato. Revista de Direito do Consumidor. vol. 108. ano 25. p. 211-240. São Paulo: Ed. RT, nov.-dez. 2016.

[4] Por exemplo no entendimento DIFIS Nº 02 – 7 DE ABRIL DE 2016, colhido em http://www.ans.gov.br/component/legislacao/?view=legislacao&task=textoLei&format=raw&id=MzIzNA==

[5] Ver DUARTE, Rui Pinto. Tipicidade e Atipicidade dos Contratos. Coimbra, Almedina, 2000.

[6] Conforme o texto de Carlos Nelson Konder em https://www.cidp.pt/revistas/rjlb/2018/1/2018_01_0355_0404.pdf

[7] Sobre geração indutiva do tipo, ver o último capítulo de LARENZ, Karl. Metodologia da Ciência do Direito. 3ª ed. Coimbra: Fundação Calouste Gulbenkian, 1995.

[8] O número é extraído da Resolução Normativa nº 309/2012 da ANS. Ver também a boa análise feita por TRETTEL, D. B., KOZAN, J. F., & SCHEFFER, M. C. (2018). Judicialização em planos de saúde coletivos: os efeitos da opção regulatória da Agência Nacional de Saúde Suplementar nos conflitos entre consumidores e operadoras. Revista De Direito Sanitário, 19(1), 166-187. https://doi.org/10.11606/issn.2316-9044.v19i1p166-187.

[9] Em sentido idêntico decisão mais recente: RECURSO ESPECIAL Nº 1881425 – SP,2020/0154008-9, RELATOR MINISTRO MOURA RIBEIRO.

[10] "PLANO DE SAÚDE. Tutela de urgência. Indeferimento do pedido de redução imediata das mensalidades. Correções anuais que elevaram a mensalidade cerca do dobro do valor que se obteria pela atualização segundo os índices da ANS. Plano coletivo empresarial não sujeito aos índices previstos pela ANS. Plano da autora, contudo, que se qualifica como "falso coletivo", para cobrir apenas um núcleo familiar de quatro vidas. Contratação de plano nitidamente individual – pelo seu escopo e função econômica – como plano coletivo tem a finalidade de driblar e fugir do controle de normas cogentes. Aplicação do Código de Defesa Consumidor. Liminar concedida para limitar os reajustes aos índices da ANS. Recurso provido." (TJ-SP – AI: 20551511920208260000 SP 2055151-19.2020.8.26.0000, relator: Francisco Loureiro, data de julgamento: 24/04/2020, 1ª Câmara de Direito Privado, data de publicação: 24/4/2020).

Autores

  • é doutor em Direito Civil pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro, professor da Escola de Direito da Fundação Getúlio Vargas (Rio de Janeiro), advogado e Parecerista, sócio de NBNK Advogados.

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