Opinião

Operações de M&A e fiança do sócio: a "outorga uxória" é necessária?

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10 de novembro de 2022, 15h13

Pessoas que fazem negócios são frequentemente assombradas por termos jurídicos de difícil compreensão. Um deles é a outorga uxória, também conhecida como outorga conjugal. Apesar do nome rebuscado, o termo se refere simplesmente à autorização que alguém que é casado  por qualquer regime que não seja o da separação total bens  precisa obter de seu cônjuge para a realização de alguns negócios.

Um dos negócios de que depende dessa autorização é a prestação de fiança. Nessa modalidade de garantia, aquele que presta a fiança (o fiador) se responsabiliza, com seu patrimônio pessoal, pelo cumprimento de uma obrigação assumida por outra pessoa — o devedor  no caso de o devedor deixar de cumpri-la [1].

Recentemente, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) julgou um caso sobre a necessidade de outorga uxória quando o fiador garante obrigações assumidas pela empresa da qual é sócio.

A disputa envolvia uma locação comercial  a empresa alugava um imóvel e a sócia garantiu o pagamento do aluguel por meio de fiança. Como os aluguéis não foram pagos, o dono do imóvel buscou executar o patrimônio da sócia fiadora, mas o marido dela pediu a anulação da fiança, que tinha sido prestada sem a sua autorização.

Na 1ª instância, o pedido de anulação havia sido negado sob a justificativa de que a autorização do cônjuge não seria necessária quando a garantia é prestada por sócio empresário. Já na 2ª instância, o Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP) decidiu o caso de forma oposta, concluindo que qualquer fiança prestada sem outorga uxória seria ilegal (excetuado o caso de separação total de bens), ainda que o cônjuge tivesse prestado a fiança na prática de atividade empresarial.

A disputa foi levada ao STJ no Recurso Especial n. 1.525.638/SP [2]. No julgamento, foi mantida a decisão do TJ-SP, concluindo que a outorga uxória é sempre necessária em caso de fiança. Logo, ainda que a autorização para livre prática de atos de gestão empresarial busque desburocratizar os negócios, na fiança, o fiador responde pessoalmente pela dívida e, portanto, os bens comuns do casal ficam expostos, o que torna necessária a autorização do cônjuge para proteger o patrimônio familiar.

A decisão do STJ reforça o entendimento de que a condição de empresário do fiador é irrelevante para se determinar a necessidade da outorga uxória. De acordo com esse entendimento, já consolidado, a outorga seria desnecessária apenas quando o negócio tratar do patrimônio próprio da empresa.

Em operações de M&A, a discussão sobre a necessidade da outorga uxória geralmente entra em cena quando uma das partes do negócio é uma empresa e os seus sócios aceitam assumir responsabilidade pelo cumprimento das obrigações assumidas por ela nos documentos da operação.

Isso acontece, por exemplo, quando o vendedor exige proteção adicional para o pagamento, pelo comprador, de eventual parcela a prazo do preço de aquisição. Pode acontecer também quando o comprador quer ver reforçado o cumprimento das obrigações assumidas pelo vendedor no contexto da operação, como a obrigação de indenização por perdas.

Nesse contexto, se a proteção oferecida for a fiança, no caso de o fiador ser casado por comunhão parcial ou universal de bens, as partes contratantes devem estar atentas à necessidade da outorga uxória. Partes que já tenham contratado fiança sem a outorga uxória também podem buscar a ratificação posterior pelo cônjuge.

Há outras formas de proteção que podem ser avaliadas pelas partes, que não se confundem com a fiança e que podem ou não depender da outorga uxória. Aqui novamente surgem termos quase incompreensíveis para não advogados.

O principal deles é a assunção de responsabilidade solidária. Nela, uma parte assume a obrigação como devedor solidário, ou seja, respondendo pela obrigação sob os mesmos termos e condições aplicáveis ao devedor principal. Nesse caso, os tribunais entendem que o devedor solidário não precisa obter a outorga uxória, por falta de previsão legal.

No entanto, é preciso levar em conta que, nos casos em que a autorização do cônjuge não é exigida, caso o cônjuge não assuma a obrigação em caráter solidário, o credor não poderá atingir a parte do patrimônio do casal que cabe a tal cônjuge (a chamada meação), ficando disponível apenas a parcela que cabe ao devedor que assinou o documento.

Nesse cenário, a conclusão é que as partes contratantes precisam de assessoria jurídica em linguagem clara e acessível, tanto para que possam negociar e refletir sua vontade de forma adequada em seus contratos, quanto para poderem obter as autorizações e assinaturas necessárias para a validade de seus negócios.


[1] Via de regra, a lei assegura ao fiador o benefício de ordem: ou seja, o credor deve acionar primeiro o devedor principal, antes de buscar o patrimônio do fiador, a não ser que contrato preveja a renúncia ao benefício da ordem pelo fiador.

[2] STJ, 4ª T., REsp nº 1.525.638/SP, relator ministro Antonio Carlos Ferreira, j. 14.6.2022, DJE 21.6.2022.

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