Opinião

Entre o poder de decidir e o dever de fundamentar, o direito de ser ouvido

Autores

  • Natan do Prado Zabotto

    é especialista em Direito Penal e Processo Penal pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC Minas campus de Poços de Caldas) advogado criminalista e professor de Direito nas disciplinas de Processo Penal e Ética e Estatuto da OAB.

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  • Marco Antônio de Souza Machado

    é advogado criminalista especialista em em Direito Penal e Processo Penal pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-Minas) Campus de Poços de Caldas-MG mestre na área de concentração Constitucionalismo e Democracia pela Faculdade de Direito do Sul de Minas (FDSM) e membro do grupo de pesquisa Razão Crítica e Justiça Penal.

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28 de março de 2022, 19h15

"Se o processo criminal fosse entregue à vontade dos tribunais, a justiça marcharia sem rumo certo, ao acaso ou discrição dos juízes. Não haveria acusação e defesa possíveis senão a que eles consentissem; em vez de sujeitos às leis, eles a decretariam. Suprime as formas, e responderei que processo resta? Quais os meios conservadores dos direitos?" (Pimenta Bueno).

Publicada no dia 4 de julho de 1994, a Lei Federal 8.906/1994 dispõe sobre o Estatuto da Advocacia e da Ordem dos Advogados do Brasil e, em seu artigo 2º, §2º, estabelece que, "no processo judicial, o advogado contribui, na postulação de decisão favorável ao seu constituinte, ao convencimento do julgador, e seus atos constituem múnus público". Com efeito, de nada valeria o conteúdo normativo estampado em tal dispositivo se ao Poder Judiciário fosse dado decidir a seu bel prazer; isto é, sem expor as razões pelais quais julgou desta ou daquela maneira.

Bem por isso, vigendo desde 30 de dezembro de 2004, data da entrada em vigor da Emenda Constitucional nº 45, o conhecido artigo 93, IX, da Constituição Federal estabeleceu, em tom cogente, a regra (no melhor sentido de mandamento definitivo [1]) conforme a qual "todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade"Essencialmente porque a fundamentação serve, antes de tudo, ao controle da eficácia do contraditório e a garantia de que a defesa seja efetivamente ampla sob o espectro do devido processo legal, conforme prevê a Carta Política em seu artigo 5º, inciso LV. Dito de outro modo por José Joaquim Gomes Canotilho, "somente a fundamentação permite avaliar se a racionalidade da decisão predominou sobre o poder, e, principalmente, se foram observadas as regras do devido processo penal" [2]. Trata-se, portanto, à luz do escólio de Aury Lopes Júnior, de garantia fundamental sine qua non à legitimação do poder/dever contido na decisão [3].

Destarte, além de indicar uma obrigação funcional por parte do magistrado, o dispositivo em questão vem a consolidar e materializar os princípios da ampla defesa e do contraditório, eis que somente a partir da motivação se pode compreender o raciocínio que conduziu o juiz a deliberar por determinada posição e viabilizar, se assim a parte entender necessário e pertinente, eventuais questionamentos na esfera recursal. Prevalece, pois, em nossa ordem jurídica, a ideia do livre convencimento motivado do juízo, pois, conforme observa Eugênio Pacelli de Oliveira, a fundamentação de todo ato decisório faz nada menos que expressar a garantia que se avulta na medida em que os efeitos da decisão promovem a mitigação de direitos fundamentais [4].

Nessa linha, mais recentemente, com o advento da Lei 13.964/2019, alterou-se a redação do artigo 315 do Código de Processo Penal, que não só reforçou no plano legal o teor do aludido dispositivo constitucional como elencou, no seu parágrafo 2º, as hipóteses nas quais uma decisão judicial, seja ela interlocutória, sentença ou acórdão, não considerar-se-á fundamentada.

Tais normas, vale dizer, estão em franca consonância com a garantia constitucional da proteção judicial efetiva (CF, artigo 5º, XXXV), enquanto expressão do direito à ampla defesa e ao contraditório (CF, artigo 5º, LV), e, juntas, formam o plexo normativo que consagra no ordenamento jurídico pátrio o direito de influência sobre a formação do convencimento judicial, tão bem abordado por Luciano Feldens em brilhante obra publicada recentemente. Com efeito, Feldens classifica o instituto enquanto uma pretensão de influência da qual decorre fundamentalmente um "dever de atenção do magistrado" [5]; dever que se desdobra na obrigação "de tomar em consideração os argumentos da parte, acolhendo ou refutando, jamais, entretanto, ignorando-os" [6]. Afinal, pondera o autor, "de nada valeria garantir ao acusado o direito ao contraditório 'se se consentisse ao juiz o poder de não considerar as alegações das partes'. Ao juiz é vedado o silêncio diante de argumento relevante trazido pela parte" [7].

Neste sentido, a incontornável consequência jurídica decorrente da inobservância desse direito, à luz dos dispositivos citados acima, é  ou deveria ser  a declaração da nulidade da decisão não fundamentada. Trata-se de consequência grave, é verdade; que pode reverberar variados efeitos sob a perspectiva processual, mas à altura da ilegalidade consubstanciada na ausência de fundamentação do decisum judicial. Sobretudo porque a desídia na apreciação dos pleitos empreendidos por quem se vê implicado em persecução penal representa a antítese do que se pretende em uma ambiência processual de compleição democrática, onde as normas jurídicas, a toda evidência, devem ser interpretadas sob o manto da normatividade irradiante dos princípios fundantes no âmbito do constitucionalismo contemporâneo [8].

Nada obstante, a prática forense tem nos demonstrado que, nos tempos atuais, um dos maiores desafios enfrentados pelo defensor criminal tem sido conseguir ser lido e ouvido pelas autoridades incumbidas da apreciação dos seus requerimentos, já que, não raras vezes, o advogado não recebe uma resposta judicial  seja favorável ou desfavorável à postulação  que corresponda satisfatoriamente à análise do conteúdo dos pedidos formulados.  Não se dá conta, conforme observa Alexandre Morais da Rosa, "de que os paradigmas penais do tipo de injusto são diversos e, como tal, não podem ser utilizados sem um esclarecimento prévio, sob pena de se correr o risco  como, de fato ocorre  de se tomar um pelo outro com a finalidade última de condenar, de se impor uma sanção" [9].

Advirta-se, entretanto, mais uma vez inspirados na literatura de Feldens, que não se está a sugerir que a postulação defensiva deva ser sempre e invariavelmente atendida, mas antes que seja seriamente considerada; "vedando-se argumentação elisiva, que afasta a reivindicação da defesa mediante o recurso de uma linguagem padronizada, circunstancialmente utilizada de modo a contornar o dever de motivação idônea das decisões judiciais" [10].

As regras de experiência e o senso comum permitem afirmar que essa ausência de apreciação dos pleitos corporificada em decisões padronizadas se deve, em grande medida, ao reduzido número de juízes e o elevado número de processos que aportam nos tribunais. A qualidade da prestação jurisdicional, assim, é sacrificada em nome de argumentos funcionalistas (como excesso de trabalho). E a chegada da tecnologia agravou o problema com a utilização da inteligência artificial nas cortes de justiça, que, frequentemente, tem obstado de forma efetiva o acesso do jurisdicionado aos tribunais. O padrão algorítmico das decisões exaradas no ensejo dos juízos de admissibilidade dos recursos, sobretudo os extraordinários, fácil de ser notado em tal grau que de fato não parece haver qualquer intenção de disfarça-lo, reduz o filtro dos pressupostos recursais a um intrépido jogo de caça-palavras onde a falta de um termo ou expressão predeterminados bota fora todas as chances de discussão meritória e, ao fim e ao cabo, do reconhecimento de direitos e saneamento de irregularidades de nefastos e catastróficos efeitos.

No ponto, registre-se não se ignora que existem instrumentos processuais dos quais se pode lançar mão contra esse tipo de obstáculo; como o Habeas Corpus, por exemplo. Contudo, aqui surge um outro problema que nos inquieta e que precisa ser discutido: a resistência apresentada pelos tribunais, especialmente os estaduais, no que diz respeito ao reconhecimento de nulidade de decisões não fundamentadas. A impressão que se tem, vale dizer, é que uma espécie de consequencialismo judicial  muitas vezes velado, outras nem tanto  é empregado ao arrepio das normas que determinam a motivação das decisões, de modo que, ao sabor do entendimento do julgador a respeito das consequências que possam advir de sua decisão, elas acabam sendo tratadas como letra morta.

Noutros termos, esse consequencialismo, nas palavras de Alexandre Félix Gross, "dedica especial atenção às externalidades da decisão, mesmo que isso signifique um abandono da coerência formal ao texto da lei. Representa um olhar para o futuro, comprometido mais com as consequências práticas de uma decisão do que com o reforço normativo de um ordenamento jurídico ou de um precedente judicial" [11].

Nessa linha de raciocínio, o que se tem notado é a utilização do recurso da manipulação discursiva; ou, na feliz expressão de Lênio Streck, "álibi[s] teórico[s] para a 'escolha' de qualquer possibilidade e para sustentar ações pragmáticas" [12]. Quando os juízes decidem o que querem, escreve Lênio, "isto é, decidem arbitrariamente, nada mais estão fazendo do que 'imitar' a personagem Humpty Dumpty, de Alice através do espelho, que dizia 'eu dou às palavras o sentido que eu quero'" [13].

Por todas, vale exemplificar, para ratificar a ilegalidade contida na decisão questionada, argumenta-se, de modo simplista, que o vício não existe  muito embora exista. Tudo porque o magistrado simplesmente não quer, por razões utilitárias, anular o processo, malgrado a norma constitucional determine o contrário. Assim, fatores como a possibilidade de desperdício de dinheiro público, perda de tempo, necessidade de revogação de prisão cautelar por excesso de prazo, prescrição penal, impopularidade da decisão etc. acabam por pesar mais que as garantias constitucionais e legais, não obstante esses eventos, paradoxalmente, possam ser concebidos justamente como decorrência do descumprimento de tais garantias.

A propósito do que se sustenta, é pertinente destacar a observação de Alberto Zacharias Toron, para quem, "Em bom português, dificilmente se anula um processo com provas maciças por um defeito de forma. É comum, em casos assim, invocar-se contra o réu, a 'instrumentalidade das formas' para se ignorar ou, como eufemisticamente se fala, flexibilizar direitos e garantias de natureza processual". E exemplifica o autor citando "rumoroso caso envolvendo Prefeito do interior de São Paulo, no qual o desembargador relator no TJ-SP afirmou que, em alguns casos, o Judiciário é levado e julgamento pela opinião pública, 'não devendo ser escandalizada com o reconhecimento de nulidades meramente formais'" [14].

Em síntese, o que se vê, à luz do panorama traçado, é que um problema acaba por puxar o outro, isto é, a ausência de fundamentação válida (em grande medida gerada pelo excesso de trabalho) rende ensejo à necessidade do reconhecimento da nulidade da decisão, que, entretanto, ao arrepio do ordenamento jurídico, deixa de ser reconhecida com amparo em discursos consequencialistas. Tudo isso, parafraseando Toron, "traduz um autoritarismo preocupante, pois é como se quisessem reformar a constituição sem ouvir ninguém" [15]. Sem embargo, como observou Eros Grau, citado pelo mencionado autor, "se os argumentos funcionalistas (excesso de processos, leia-se, de trabalho), prevalecerem sobre os normativos, 'o perigo de juízos irracionais aumenta'" [16]. E juízos irracionais, dizemos nós, não são bem-vindos em um Estado democrático de Direito.

Da mesma forma, as consequências que possam suceder de tal ou qual decisão judicial não podem servir de premissa bastante para que direitos sejam solapados. Do ponto de vista jurídico, é imperioso que se cumpra a lei, tal como posta. Sob a perspectiva da administração judiciária, que sejam empreendidas medidas no sentido de eliminar ou reduzir as causas geradoras dos problemas, jamais as garantias constitucionais. Não é relativizando direitos que se resolverá a questão do assoberbamento dos tribunais.

Quanto a nós, defensores, como proclamou o Supremo Tribunal Federal, na voz do ministro Celso de Mello, "qualquer que seja a instância de poder perante a qual atue, incumbe, ao advogado, neutralizar os abusos, fazer cessar o arbítrio, exigir respeito ao ordenamento jurídico e velar pela integralidade das garantias  legais e constitucionais  àquele que lhe confiou a proteção de sua liberdade e de seus direitos" [17].

Sigamos nessa árdua missão.


[1] ALEXY, Robert. Teoria dos Direitos Fundamentais; tradução Virgílio Afonso da Silva. São Paulo: Malheiros, 2008. p. 106.

[2] CANOTILHO, J. J. Gomes et al. Comentários à Constituição do Brasil. São Paulo: Saraiva/
Almedina, 2013, pp. 1324-5.

[3] LOPES JR., Aury. Direito processual penal. 12. ed. São Paulo: Saraiva, 2015, p. 101-102.

[4] OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de; COSTA, Domingos Barroso. Prisão preventiva e liberdade provisória. São Paulo: Atlas, 2013, p. 87.

[5][5] FELDENS, Luciano. O Direito de Defesa: A Tutela Jurídica da Liberdade na Perspectiva da Defesa Penal Efetiva. Porto Alegre: Livraria do advogado, 2021, p. 130.

[6][6] FELDENS, Luciano. O Direito de Defesa: A Tutela Jurídica da Liberdade na Perspectiva da Defesa Penal Efetiva. Porto Alegre: Livraria do advogado, 2021, p. 130.

[7][7] FELDENS, Luciano. O Direito de Defesa: A Tutela Jurídica da Liberdade na Perspectiva da Defesa Penal Efetiva. Porto Alegre: Livraria do advogado, 2021, p. 130.

[8] BARROSO, Luís Roberto et al. Tratado de Direito Constitucional; coordenadores Ives Gandra da Silva Martins, Gilmar Ferreira Mendes, Carlos Valder do Nascimento. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2012. [e-book]. p. 27.

[9] ROSA, Alexandre Morais da. Kafka no Processo e na Colonia Penal. Ainda. In STRECK, Lênio Luiz; TRINDADE, André Karam org. Direito e Literatura. São Paulo: Atlas, 2013. p. 12.

[10][10] FELDENS, Luciano. O Direito de Defesa: A Tutela Jurídica da Liberdade na Perspectiva da Defesa Penal Efetiva. Porto Alegre: Livraria do advogado, 2021, p. 130.

[11]GROSS, Alexandre Félix. "A posição consequencialista do STF no julgamento da dívida dos estados". Disponível em https://www.conjur.com.br/2016-mai-07/alexandre-gross-stf-cons
equencialistano-julgamento-estados
, acesso em 16.02.2022.

[12] STRECK, Lênio Luiz. Jurisdição constitucional e decisão jurídica. 3. ed. reformulada da obra Jurisdição constitucional e hermenêutica. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2013. p. 809.

[13] STRECK, Lênio Luiz; TRINDADE, André Karam org. Direito e Literatura. São Paulo: Atlas, 2013. p. 288.

[14] TORON, Alberto Zacharias. Habeas Corpus — Controle do Devido Processo Legal: Questões Controvertidas e de Processamento do Writ. 3 ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2020, p. 72.

[15] Ob. Cit. p. 106.

[16] Ob. Cit. p. 81.

[17] HC 98.237, relator ministro Celso de Mello, julgado em 15.12.2009, Segunda Turma, DJE de 6.8.2010.

Autores

  • é advogado criminalista, professor de Direito e especialista em Direito Penal e Processo Penal pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-Minas), Campus de Poços de Caldas - MG.

  • é advogado criminalista, especialista em em Direito Penal e Processo Penal pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-Minas), Campus de Poços de Caldas-MG, mestre na área de concentração Constitucionalismo e Democracia pela Faculdade de Direito do Sul de Minas (FDSM) e membro do grupo de pesquisa Razão Crítica e Justiça Penal.

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