Opinião

Supremo, nova Lei de Improbidade e retroatividade mínima

Autores

  • é pós-graduada em Regime Próprio de Previdência e em Direito Eleitoral. Vice-presidente da Anape (Associação Nacional dos Procuradores de Estado e Distrito Federal) corregedora-geral da Procuradoria-Geral do Estado de Mato Grosso do Sul ex-promotora de justiça de Mato Grosso e ex-procuradora-geral de Mato Grosso do Sul.

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  • é doutorando em Direito Econômico e Financeiro (USP) mestre em Direitos Humanos (UFMS) procurador do Estado do Mato Grosso do Sul chefe da procuradoria judicial e membro do corpo editorial da Revista da PGE-MS.

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25 de março de 2022, 7h07

No último dia

24 de fevereiro, o Supremo Tribunal Federal reconheceu a repercussão geral em relação à retroatividade das alterações que a lei nº 14.230/21 realizou na Lei de Improbidade Administrativa — LIA (Tema 1.199  ARE 843.989). Dentre as mudanças mais notáveis, encontram-se a revogação da improbidade culposa (artigo 1º, §§1º, 2º e 3º, e artigo 10) e a limitação da incidência do artigo 11 da LIA.

A Constituição Federal determina uma regra geral que veda o efeito retroativo da lei nova. O artigo 5º, inciso XXXVI, fixa que "a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada". Segundo Marçal Justen Filho, a vedação à retroatividade da lei nova decorre da própria legalidade. A qualificação jurídica da conduta toma como parâmetro a legislação vigente à época, ressaltando que alterações subsequentes não podem disciplinar os fatos pretéritos, sob pena de violar a ordem jurídica [1]. Entretanto, o artigo 5º, inciso XL, determina que "a lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu". A retroatividade benéfica prevista no artigo 9º do Pacto de São José de Costa Rica, por sua vez, não diferencia entre condenações penais e condenações de outra natureza [2]. Considerando o histórico do Supremo Tribunal Federal, é possível apostar na retroatividade mínima.

Sobre a retroatividade máxima, média e mínima, o ministro Luís Fernando Barroso explicou sobre graus de retroatividade, no julgamento da ADI 1220/DF, da seguinte forma: "seguindo essa lógica, a retroatividade máxima ocorre “quando a lei nova abrange a coisa julgada (sentença irrecorrível) ou os fatos jurídicos consumados"; a retroatividade média se dá "quando a lei nova atinge os direitos exigíveis, mas não realizados antes de sua vigência"; a retroatividade mínima sucede "quando a lei nova atinge apenas os efeitos dos fatos anteriores, verificados após a sua entrada em vigor".

Uma advertência: o pedido de reparação de danos contra atos que causam prejuízo ao erário independe da ocorrência da improbidade, possuindo embasamento normativo independente como: imprescritibilidade (§5º do artigo 37 da CF); ação de regresso (§5º do artigo 37 da CF); defesa do patrimônio público (artigo 5º, LXXIII, e artigo 129, III, da CF); dolo e culpa (artigo 186 do Código Civil) etc. Não houve qualquer prejuízo ao dever de indenizar, porquanto se trata de recomposição patrimonial do Erário, sem que haja natureza sancionatória [3].

A retroatividade da norma mais benéfica neste campo cuida apenas de uma construção doutrinária que pode ou não ser confirmada pelo STF, sem que haja previsão normativa expressa na Nova LIA. Em razão disso, a construção de esquemas de retroatividade deve ser vista com cautela. Tendo isso em mente, deve-se inicialmente separar os dispositivos de natureza processual daqueles de direito material.

Normas processuais, legitimidade ativa e prescrição
Os dispositivos de natureza processual não se aplicam retroativamente, mas incidem de modo imediato, atingindo os processos em curso. Os eventos processuais consumados não são afetados pela superveniência da nova Lei, mas esta alcança os atos e fatos processuais a serem verificados em data posterior à sua vigência [4].

Certo cuidado com a questão da legitimidade ativa para propositura da ação de improbidade que, por exemplo, passou a ser exclusiva do Ministério Público segundo o artigo 17 da lei nº 8.429/92. Já no início de 2022, fora concedida cautelar pelo ministro Alexandre de Moraes, ad referendum do Plenário da Suprema Corte, para, até julgamento final de mérito, conceder interpretação conforme a Constituição, no sentido da existência de legitimidade ativa concorrente entre o Ministério Público e as pessoas jurídicas interessadas para a propositura da ação por ato de improbidade administrativa.

Os novos prazos de prescrição e de prescrição intercorrente adicionadas ao artigo 23 da Nova Lei também não retroagem, surtindo efeitos somente a partir da publicação da lei. Não podem, portanto, atingir retrospectivamente processos e investigações de atos de improbidade anteriores à Lei. Aplica-se aqui, por analogia, o entendimento do STF segundo o qual a lei que estabelece novos prazos prescricionais não poderia retroagir para atingir pretensões materiais já ajuizadas [5].

Normas materiais e elementos constitutivos
Segundo Marçal Justen Filho, verifica-se a consagração de norma sancionatória mais benéfica nos casos em que a lei nova altera os elementos constitutivos do tipo ou introduz exigências adicionais para a configuração da ilicitude, especificamente para excluir a ilicitude de certas condutas. A regra superveniente aplica-se de modo retroativo, para alcançar condutas que, até então, eram reputadas como ilícitas e não mais comportam o tratamento punitivo anteriormente cominado [6].

Houve alteração do tipo nos seguintes casos: 1) na expressa revogação da improbidade culposa (artigo 1º, §§1º, 2º e 3º, e caput do artigo 10), havendo supressão parcial do elemento subjetivo do tipo; e 2) na limitação da incidência do artigo 11 da Lei de Improbidade, transformando as condutas possíveis de enquadramento típico em rol taxativo (não exemplificativo, como outrora), com a revogação de alguns incisos. Assim como nos casos dos incisos revogados, quem foi condenado com base na aplicação autônoma do caput do artigo 11 da Lei antiga (violação a princípios) deve ser atingido pela retroatividade benéfica, salvo se o fato objeto da condenação estiver descrito num dos novos incisos do artigo 11 da Nova Lei [7].

Há uma terceira hipótese defendida por Rafael Carvalho Oliveira e Daniel Assumpção Neves que diz respeito à revogação do "dolo genérico" e a instituição do dolo específico. Isto porquanto agora o dolo é considerado como "vontade livre e consciente de alcançar o resultado ilícito", "não bastando a voluntariedade do agente" (§2º do artigo 1º da LIA). Essa modificação legislativa foi feita para rebater a tese do STJ, segundo a qual bastava a voluntariedade o agente (dolo genérico) para configurar o elemento subjetivo [8].

É possível que a norma do dolo específico seja aplicada aos processos em andamento, desde que a fase processual possibilite esse tipo de dilação probatória. Não parece razoável, entretanto, que essa norma deva retroagir para atingir indiscriminadamente condenações baseadas em dolo genérico pelas seguintes razões: a) não houve uma supressão de elemento subjetivo, pois, ao contrário da culpa, o dolo sempre foi exigido nos tipos de improbidade enquanto elemento subjetivo; b) o chamado "dolo genérico" é fruto de uma construção jurisprudencial do Superior Tribunal de Justiça (REsp 951.389/SC) e não de criação legislativa; c) o dolo específico tratado no Código Penal é distinto pois integra o texto descritivo de cada tipo criminal com uma finalidade específica diferente [9]; d) o §2º do artigo 1º da LIA mais se aproxima de uma diretriz interpretativa do que de um elemento subjetivo do tipo, a exemplo dos artigos 22 e 28 da Lindb (adicionados pela Lei nº 13.655, de 2018) [10]; d) sendo norma interpretativa que inova e supera posição jurisprudencial, não deve retroagir por ofensa ao princípio da segurança jurídica, conforme já entendeu o Supremo em caso análogo (RE 566.621); e e) mesmo se assim não fosse, a aferição de dolo genérico ou dolo específico em cada processo demandaria ampla análise probatória e rediscussão da justiça de cada condenação, o que ultrapassaria o objetivo de mera readequação da realidade político-administrativa aos novos tipos infracionais previstos da LIA.

A questão da retroatividade mínima
João Trindade Cavalcante Filho enumera alguns pressupostos para a retroativividade: 1) é preciso que seja norma de direito material referente à sanção punitiva (não se aplica, logo, ao pedido de indenização ao erário); 2) é necessário que os efeitos da sanção não se tenham se exaurido por completo (ex: uma suspensão dos direitos políticos cujo prazo já transcorreu por inteiro); e 3) é imprescindível que a norma nova seja benéfica ao réu acusado ou condenado [11].

Outra ressalva que poderia ser somada a esses critérios é a independência de instâncias. O novo rol das sanções previstas para a improbidade do artigo 11 (atentado aos princípios da Administração Pública) não prevê mais a sanção de perda do cargo (artigo 12, III), mas nada obsta que o réu seja demitido por meio de processo administrativo disciplinar pelos mesmos fatos.

Um fator importante a ser observado diz respeito ao estágio do processo. Quem estiver sendo processado por tipos revogados de improbidade administrativa deve ser alcançado pela retroatividade benéfica, porquanto se trata de questão de ordem pública a ser conhecida em qualquer momento do processo. Contudo, na hipótese de trânsito em julgado na condenação, o raciocínio deve ser distinto. Neste último caso, é possível que muitos efeitos da condenação já tenham se exaurido ou não possam ser desfeitos por questões de segurança jurídica, entre outras razões. A razão disso é que se fala aqui em retroatividade mínima somente, que respeita os efeitos de direito já produzidos pela situação jurídica sob a lei anterior, somente alcançando os efeitos futuros de fatos passados. Não se desconstitui a coisa julgada, mas somente alguns efeitos pendentes dela após o advento da Nova Lei.

Em relação às sanções de suspensão de direitos políticos, proibição de contratar com o poder público e proibição de recebimento de benefícios ou incentivos fiscais ou creditícios, deve-se considerar que a retroatividade atingirá essas restrições de direitos, mas somente surtirá efeitos prospectivos. O condenado poderá se candidatar a cargos eletivos, contratar com o Poder Público e receber incentivos financeiros novamente, mas não poderá restabelecer os vínculos de direito público eventualmente rompidos com a condenação no passado. Não poderá igualmente requerer ressarcimento em razão da perda desses vínculos.

O que dizer da multa civil inscrita em dívida ativa oriunda de condenação transitada em julgado? Deve a dívida ser extinta em razão da revogação do tipo infracional que lhe deu origem?

Defende-se que não. Embora a multa inscrita em dívida ativa seja decorrência de condenação judicial, ela tem natureza de multa não-tributária e de ato jurídico perfeito. O Superior Tribunal de Justiça entende, por exemplo, que às multas administrativas é inaplicável a disciplina jurídica do artigo 106 do Código Tributário Nacional, referente à retroatividade de lei mais benéfica [12]. Mesmo no âmbito penal, há uma separação entre a responsabilidade patrimonial (multa penal) e a responsabilidade criminal do infrator, passando a dívida de valor do apenado a seguir "as normas relativas à dívida ativa da Fazenda Pública" (artigo 51 do Código Penal). O STF entende, nesse sentido, que o indulto da pena privativa de liberdade não alcança a pena de multa que tenha sido objeto de parcelamento espontaneamente assumido pelo sentenciado [13].

Como proceder? Defende-se o uso de simples petição intercorrente realizada diretamente ao juízo do cumprimento de sentença (artigo 518 do CPC/2015) [14] ou reconhecimento de ofício pelo juízo, por aplicação analógica da Súmula nº 611 do STF: "transitada em julgado a sentença condenatória, compete ao juízo das execuções a aplicação de lei mais benigna" [15].


[1] JUSTEN FILHO, Marçal. Reforma da lei de improbidade administrativa comentada e comparada: Lei 14.230, de 25 de outubro de 2021 — 1. ed.  Rio de Janeiro: Forense, 2022. (obra eletrônica não paginada).

[2] Segundo o artigo 9º do Pacto de São José de Costa Rica: "ninguém pode ser condenado por ações ou omissões que, no momento em que forem cometidas, não sejam delituosas, de acordo com o direito aplicável. Tampouco se pode impor pena mais grave que a aplicável no momento da perpetração do delito. Se depois da perpetração do delito a lei dispuser a imposição de pena mais leve, o delinqüente será por isso beneficiado".

[3] Nesse sentido: CAVALCANTE FILHO, João Trindade. Retroatividade da Reforma da Lei de Improbidade Administrativa (Lei nº 14.230, de 25 de outubro de 2021). Brasília: Núcleo de Estudos e Pesquisas/CONLEG/Senado, Novembro, 2021, p.19.

[4] Ibid.

[5] Recurso Extraordinário nº 566.621/RS, Relatora a Ministra Ellen Gracie, DJe de 11/10/11. No mesmo sentido: ACO nº 1.532/SC  relator ministro Luiz Fux, DJe de 16/5/14; RE nº 720.520/PR–AgR, Min. Roberto Barroso, DJe de 1º/8/14; RE nº 732.369/RS–AgR, Rel. Min. Celso de Mello, DJe 27/2/13.

[6] JUSTEN FILHO, Marçal. Op. cit., 2022 (obra eletrônica não paginada).

[7] Nesse sentido: CAVALCANTE FILHO, João Trindade. Op. cit., p. 20.

[8] NEVES, Daniel Amorim Assumpção; OLIVEIRA, Rafael Carvalho Rezende. Manual de Improbidade Administrativa: Direito Material e Processual. 6ª edição. Rio de Janeiro: Método, 2018.

[9] Conforme Rogerio Greco, o "dolo específico" seria aquele em que no tipo penal podia ser identificado o que denominamos de "especial fim de agir" (GRECO, Rogério. Código penal comentado. rev., ampl. e atual. Niterói: Impetus, 2018, p. 112). Exemplos: "artigo 206. Recrutar trabalhadores, mediante fraude, com o fim de levá-los para território estrangeiro"; "artigo 159 — Sequestrar pessoa com o fim de obter, para si ou para outrem, qualquer vantagem, como condição ou preço do resgate".

[10] Por exemplo, o §1º do artigo 22 da LINDB requer que a interpretação sobre regularidade de conduta considere "circunstâncias práticas que houverem imposto, limitado ou condicionado a ação do agente". O artigo 28, por sua vez, determina que o agente público responderá pessoalmente por suas decisões ou opiniões técnicas em caso de dolo ou "erro grosseiro", ou seja, um critério mais rigoroso que a mera culpa.

[11] CAVALCANTE FILHO, João Trindade. Op. cit. 2021, p. 19-20

[12] AgInt no AgInt no AREsp 1701937/SP, relator ministro Sérgio Kukina, Primeira Turma, julgado em 03/05/2021, DJe 06/05/2021; STJ, AgInt no REsp 1.796.106/PR, Rel. Ministro Sérgio Kukina, Primeira Turma, DJe de 01/07/2019; AgInt no REsp 1954631/SP, Rel. Ministra Regina Helena Costa, Primeira Turma, julgado em 27/09/2021, DJe 08/10/2021.

[13] EP 11 IndCom-AgR, relator(a): Roberto Barroso, Tribunal Pleno, julgado em 08/11/2017, DJe-291 15-12-2017; e EP 21 AgR-segundo, relator(a): Roberto Barroso, Tribunal Pleno, julgado em 27/09/2019, DJe-245 08-11-2019.

[14] Segundo a norma: "artigo 518. Todas as questões relativas à validade do procedimento de cumprimento da sentença e dos atos executivos subsequentes poderão ser arguidas pelo executado nos próprios autos e nestes serão decididas pelo juiz".

[15] CAVALCANTE FILHO, João Trindade. Op. cit., p. 21-22.

Autores

  • é pós-graduada em Regime Próprio de Previdência e em Direito Eleitoral, ex-promotora de Justiça do Mato Grosso, procuradora do Estado de Mato Grosso do Sul e procuradora-geral do Estado de Mato Grosso do Sul.

  • é doutorando em Direito Econômico e Financeiro pela Universidade de São Paulo(USP), mestre em Direitos Humanos pela Universidade Federal do Mato Grosso do Sul (UFMS), procurador do Estado do Mato Grosso do Sul e membro do Corpo Editorial da Revista da PGE-MS.

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