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Paulo Riscado: “Empate a favor do contribuinte” no Carf

24 de março de 2022, 10h08

Por Paulo Roberto Riscado Junior

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O Supremo Tribunal Federal iniciou o julgamento da ADI 6.399, que tem por objeto o artigo 19-E da Lei 10.522/2002 (incluído pela Lei 13.988/2020), o qual estabeleceu que, em caso de empate no julgamento de processo administrativo de determinação e exigência de crédito tributário no Carf, não se aplica o "voto de qualidade", resolvendo-se favoravelmente ao contribuinte.

Como se sabe, o Carf, órgão de julgamento administrativo de recursos contra autuações fiscais da Receita Federal, possui composição paritária, ou seja, suas Turmas são formadas por igual número de conselheiros representantes da Fazenda e dos contribuintes. Em decorrência da paridade, é possível que ocorram empates nas votações dos conselheiros. Até a edição da Lei 13.988/2020, o desempate era atribuído ao presidente da Turma de Julgamento, Auditor Fiscal da Receita Federal, que exercia o chamado "voto de qualidade". Após a Lei 13.988/2020, o empate em julgamento no Carf passou a significar decisão desfavorável à União.

A inovação legislativa tem gerado várias consequências nefastas ao processo administrativo de apuração e cobrança do crédito tributário. Por exemplo, a mudança na regra de decisão tem resultado em alterações na jurisprudência do Carf em questões complexas e de alto impacto para os cofres públicos, colocando em dúvida a integridade dos padrões decisórios do órgão e resultando em quebra de isonomia entre contribuintes.

Por outro lado, a possibilidade de decidir casos sem necessidade de formação de consenso ou maioria, bastando o mero empate, somado ao fato de os Conselheiros do Carf serem indicados por entidades de classe, para mandatos fixos, é fato que amplia decisivamente o risco de captura do órgão por interesses particulares e não republicanos.

O risco de captura do Carf, e consequentemente supressão da sua autonomia e imparcialidade, já fora identificado por diversos órgãos mesmo antes da Lei 13.988/2020.

Por exemplo, o TCU, no documento "Auditoria Operacional no Conselho Administrativo de Recursos Fiscais", de 2016, afirmou, no que diz respeito ao sistema paritário adotado no Carf, que esse modelo 'resulta inerentemente no conflito de interesse, uma vez que o vínculo original do conselheiro se mantém forte durante todo o período do mandato, podendo se estender para pós-mandato, enquanto seu vín­culo com o Carf possui um período delimitado de duração, além de ha­ver disparidades de tratamento entre os dois grupos de representantes".

A CPI do Carf no Senado (instaurada em decorrência da operação zelotes) identificou que "um dos problemas estruturantes para o mau funcionamento do Carf é sua composição paritária" (…) "É difícil, para não dizer impossível, evitar o conflito de interesses dos conselheiros representantes dos contribuintes, que atuam no Carf, mas por indicação das entidades representativas dos setores empresariais" (…) e terminou sugerindo que "Poder Executivo reformule o Carf, extinguindo a paridade e própria participação dos membros não servidores". A CPI do Carf na Câmara dos Deputados foi concluída sem a votação do relatório.

Mais recentemente, o TCU, no Acórdão 336/2021 — Plenário, que trata de "Relatório de Auditoria Operacional realizada no Conselho Administrativo de Recursos Fiscais com o objetivo de avaliar a eficiência do contencioso tributário administrativo e judicial", reafirmou as críticas ao modelo de paridade do Carf, dessa vez enumerando diretamente as possíveis consequências do artigo 19-E da Lei 10.522/2002. 

Nas palavras do TCU, "o artigo 28 da Lei 13.988/2020 acabou por inverter a lógica da tutela administrativa, adotando interpretação mais benéfica ao contribuinte no caso de empate de votos nos julgamentos no Carf, privilegiando o interesse privado em detrimento do interesse público e potencializando o risco de corrupção nos processos do contencioso tributário administrativo". (…) E aqui reside a preocupação de que a referida alteração legislativa potencialize o risco de corrupção no Carf. De fato, a mudança da sistemática de julgamento quando dos empates, somada à vultuosidade dos valores que envolve e o consequente poderio econômico dos contribuintes envolvidos tornam os conselheiros representantes dos contribuintes mais suscetíveis ao aliciamento (…) Os conselheiros representantes dos contribuintes estão, ainda, sujeitos a conflito de interesses, uma vez que o vínculo original com a associação que os indicou se mantém durante todo o período do mandato, sem falar nas disparidades de tratamento entre os dois grupos de representantes, especialmente quanto a direitos e remuneração".

Percebe-se portanto, de acordo com as instituições de controle da Administração Pública, que a alteração instituída pela Lei 13.988/2020 não amplia a autonomia e imparcialidade do Carf, ao contrário. A nova regra de "desempate" amplia o risco de captura do órgão por interesses não republicanos, e interfere negativamente na sua atividade como órgão de julgamento neutro e isento.

De fato, o Carf sofreu nos últimos anos com comportamentos oportunistas, pouco preocupados com a promoção de uma relação ética e de confiança entre a Administração, e isso justifica a discussão sobre a atualização do modelo de contencioso administrativo, bem como sobre o aperfeiçoamento do critério de desempate no Carf.

Há necessidade de reavaliar e reformular a política pública de resolução de litígios tributários administrativos. É imprescindível dotar o Carf de uma composição que seja adequada e que dê conta de um contencioso de extrema complexidade e importância, que possui repercussões diretas nas fontes de financiamento da União, bem como no ambiente de negócios e no mercado brasileiro.

Haveria muitas outras alternativas para reformar o modelo atual, inclusive aproveitando outros paradigmas de tribunais administrativos exitosos. Ocorre que o artigo 19-E da Lei 10.522/2002 não endereça as dificuldades do contencioso administrativo fiscal, ao contrário, aprofunda os seus problemas ao criar uma regra de desempate nos julgamentos que favorece uma das partes no litígio, e que amplia o risco de captura do órgão por interesses particulares. O artigo 19-E da Lei 10.522/2002 é nocivo à imparcialidade e autonomia do Carf.

A declaração de inconstitucionalidade do artigo 19-E da Lei 10.522/2002 é necessária, para o bem do interesse público e das instituições republicanas.