Opinião

Autonomia fiscal entre filial e matriz segundo mais recente entendimento do STJ

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24 de março de 2022, 21h10

O presente artigo pretende analisar as controvérsias acerca dos efeitos do novo entendimento adotado pelo Superior Tribunal de Justiça em 27 de agosto de 2019, por meio do Agravo Interno (AgInt) em Agravo em Recurso Especial (AREsp) n°1.286.122, o qual decidiu pela impossibilidade da emissão de Certidão Negativa de Débitos para a filial quando a matriz possuir débitos, indo em desencontro com o argumento da autonomia jurídico-administrativa entre matriz e filiais que vinha sustentando a jurisprudência do STJ desde 2009 até a decisão de 2019.

O direito do contribuinte à emissão de certidão tributária é uma garantia assegurada constitucionalmente, bem como sua obrigatoriedade se encontra prevista em lei através do artigo 205 do CTN, caput, assim redigido: "a lei poderá exigir que a prova da quitação de determinado tributo, quando exigível, seja feita por certidão (…)".

Sendo assim, sempre que o contribuinte necessite, por exemplo, alienar imóveis, participar de licitações ou contratar uma operação financeira, a lei poderá exigir, como requisito, que o contribuinte comprove, através de certidão emitida pelo ente tributário, que não possui débitos com o fisco (MELLO, 2007, p. 589).

Os requisitos para emissão de certidões tributárias se encontram dispostos nos artigos 205 e 206 do CTN, e, uma vez cumprido pelo contribuinte determinados atos, cabe ao fisco a emissão da certidão afirmando a existência de fatos de que tenha ciência (BRASIL, 1966, online).

Frise-se que o direito do contribuinte de obter certidão de regularidade fiscal se encontra garantido na Constituição Federal em seu artigo 5º, inciso XXXIV, "b": "[…] são a todos assegurados, independentemente do pagamento de taxas: a obtenção de certidões em repartições públicas, para defesa de direitos e esclarecimento de situações de interesse pessoal". Logo, fica evidente que os óbices criados pela Fazenda Pública estão em completa dissonância com a constituição, violando um direito adquirido dos contribuintes. O mesmo ocorre com a nova decisão do STJ em análise.

Dessa forma, tendo em vista que o Código Tributário Nacional prevê expressamente os requisitos que devem ser cumpridos para a emissão de certidão, através dos artigo 205 e 206, restam claramente explicitas as exigências a serem atendidas pelo contribuinte para que possa ter direito a certidão. Entretanto, a nova decisão do STJ, ao entender que matriz e filial fazem parte do acervo patrimonial de uma única pessoa jurídica, desconsiderando o princípio da autonomia dos estabelecimentos, acaba permitindo que a Fazenda Pública limite o direito a certidão por meio de mero regulamento, estabelecendo a possibilidade de uma única certidão para todos os estabelecimentos de uma pessoa jurídica.

Ora, o fisco não possui competência garantida em lei para limitar a emissão de certidões, por meio de ato administrativo, decidindo que somente seria possível sua emissão em nome da pessoa jurídica como um todo. Bem como, não compete ao fisco estabelecer a modalidade de certidão fiscal mais adequada para cada negócio jurídico, haja vista que somente a lei detém competência para tanto.

Ademais, a nova decisão do STJ, ao estabelecer que as filiais também respondem pelos débitos da matriz, impossibilitando a emissão de certidão, acaba, por vias transversas, criando uma nova forma de responsabilidade tributária, adentrando em matéria que, por força do artigo 146, inciso III, da Constituição Federal, somente seria possível através de lei complementar: "artigo 146. Cabe à lei complementar: III – estabelecer normas gerais em matéria de legislação tributária (…)".

Posto isto, é de clareza solar que somente através de lei complementar é possível estabelecer normas gerais em matéria de legislação tributária, principalmente no que diz respeito à responsabilidade tributária. Assim sendo, o direito a certidão é um direito fundamental, não sendo admissível limitar seu exercício sem que haja lei em sentido estrito.

Frise-se que a lei permite que o Estado possa cobrar o tributo de terceira pessoa, que não o contribuinte, sendo sujeito passivo indireto. O seu vínculo advém do dispositivo expresso da lei. Essa responsabilização deve ser atribuída a quem tenha relação com o fato gerador, isto é, a pessoa que fez nascer o fato gerador, conforme dispõe o artigo 128 do CTN:

"Artigo 128. Sem prejuízo do disposto neste capítulo, a lei pode atribuir de modo expresso a responsabilidade pelo crédito tributário a terceira pessoa, vinculada ao fato gerador da respectiva obrigação, excluindo a responsabilidade do contribuinte ou atribuindo-a a este em caráter supletivo do cumprimento total ou parcial da referida obrigação".

Assim, note-se que é indispensável uma vinculação com o fato gerador para que alguém possa ser considerado responsável. Note-se, ainda que os artigos 134 e 135 do CTN prescrevem, respectivamente, a responsabilidade solidária e a pessoal a um rol certo e determinado de pessoas, não estando as filiais dispostas como responsáveis supletivos e objetivos.

Ressalte-se que, mesmo considerando a filial como responsável tributária pelos débitos da matriz, a responsabilidade não poderia ser objetiva, como ocorre no caso da negativa de certidão, uma vez que seria necessário o cumprimento dos requisitos existes no artigo 135 do CTN. Vejamos:

"Artigo 135. São pessoalmente responsáveis pelos créditos correspondentes a obrigações tributárias resultantes de atos praticados com excesso de poderes ou infração de lei, contrato social ou estatutos:
 I – as pessoas referidas no artigo anterior;
II – os mandatários, prepostos e empregados;
III – os diretores, gerentes ou representantes de pessoas jurídicas de direito privado."

O próprio STJ há muito sumulou (Súmula 430) que "o inadimplemento da obrigação tributária pela sociedade não gera, por si só, a responsabilidade solidária do sócio-gerente", ou seja, o mero inadimplemento da matriz em relação aos débitos tributários não tem o condão de responsabilizar, automaticamente, a filial através da negativa de certidão.

Neste passo, leciona Hugo de Brito Machado que, para aplicação do artigo 135 do CTN, o nascimento da obrigação tributária já teria de ser em decorrência de atos irregulares. O autor explica que a responsabilidade de terceiros, nos termos do artigo 135, III, do CTN, é por obrigações resultantes de atos praticados com excesso de poderes ou infração de lei, contrato social ou estatutos. Poder-se-ia, assim, sustentar que a obrigação tributária já teria de ser em decorrência de atos irregulares.

Desse modo, uma vez cumpridos os requisitos que permitem a emissão de certidão negativa de débitos (CND) ou de certidão positiva com efeitos de negativa (CPD-EN), é obrigação do fisco emiti-la, posto que é um direito constitucionalmente garantido ao contribuinte, não sendo possível a responsabilização objetiva das filiais pelos débitos da matriz.

Após a análise sobre o conceito de estabelecimento sobre a impossibilidade de responsabilização das filiais pelos débitos da matriz de forma objetiva, cumpre, em linhas gerais, sintetizar a importância do princípio da autonomia dos estabelecimentos para fins tributários, tendo em vista que se encontra claramente disposto no CTN, em seu artigo 127, inciso II, como citado anteriormente.

Acerca da questão, a ministra Eliana Calmon, em voto exarado no Recurso Especial 1.128.139, sintetizou a matéria, cabendo destacar no seu elucidativo voto:

"[…] Sem dúvida, o sistema tributário nacional comporta a existência do princípio da autonomia dos estabelecimentos para fins tributários, sendo estes considerados unidades autônomas e independentes nas relações jurídico-tributárias travadas com a Administração fiscal. Isto por imperativo do princípio da não-cumulatividade e da própria estrutura federativa do ICMS, na qual os Estados e o Distrito Federal têm competência para legislar e arrecadar este tributo […]" (REsp 1.128.139).

Portanto, percebe-se que o princípio da autonomia dos estabelecimentos para fins tributários se encontra devidamente amparado pela lei, objetivando a obediência de regras tributárias para cada estabelecimento de uma pessoa jurídica de forma autônoma, devendo-se levar em consideração que a legislação prevê a forma de tributação de acordo com a ocorrência do fato gerador de forma específica e diferenciada em cada estabelecimento. Esse é o entendimento do doutrinador José Eduardo Soares de Melo, em tema semelhante em se tratando do IPI (MELO, 2007, p. 248):

"[…] As pessoas jurídicas de Direito Privado ou as firmas individuais terão considerado como domicílio o lugar de sua sede, ou, em relação aos atos ou fatos que derem origem à obrigação, o de cada estabelecimento (inciso II do artigo 127 do CTN). Este critério deve ser aplicado de conformidade com as diferentes espécies tributárias, pois se o imposto de renda é lançado tendo em vista a sede da empresa, os direitos/obrigações afetos ao ICMS/IPI têm que considerar a autonomia de cada estabelecimento para a apuração do quantum tributário (em face da aplicação do princípio constitucional da não-cumulatividade), muito embora a empresa seja considerada em sua integralidade, para o fim de responder pelo débito tributário".

Acerca da matéria, já ensinava Souto Maior Borges que a tributação dos estabelecimentos autônomos de um só contribuinte estabelece aparência particular quanto ao problema da capacidade tributária dos entes carentes de personalidade jurídica. Os estabelecimentos autônomos de uma empresa compõem mecanismos a que a lei tributária confere o caráter de sujeitos passivos, sem que disponham, de fato, de personalidade jurídica de direito privado, já que pessoa jurídica é a empresa considerada como unidade econômica. Ainda que os estabelecimentos autônomos não sejam pessoas jurídicas, a lei lhes confia capacidade para ser sujeitos passivos do imposto, o que implica lhes conhecer certa "capacidade jurídica" de direito tributário (BORGES, 1970, p. 41).

Nesse mesmo sentido vem predominando o entendimento do Superior Tribunal de Justiça desde o ano de 2013, quando avaliou um caso específico referente à legitimidade processual dos estabelecimentos, entendendo que a matriz não detém legitimidade para demandar em juízo em nome das filiais, uma vez que estas são entes autônomos para fins fiscais (STJ  REsp: 1488209 RS 2014/0265407-0, relator: ministro Humberto Martins, Data de Publicação: DJ 18/12/2014).

O entendimento que consubstanciou esse julgado é respaldado na individualização do fato gerador tributário, tendo em vista sua ocorrência de maneira autônoma em cada estabelecimento. Logo, o entendimento supracitado é respaldado na independência tributária de cada estabelecimento ante sua característica de sujeitos passivos autônomos, os quais devem, para que se possa tratar de incidência tributária, demandar de forma independente.

Cumpre enfatizar que não é o intuito aqui afrontar entendimento adotado pelo Superior Tribunal de Justiça, o que se pretende é analisar a importância de considerar a existência de uma distinção, pois, mesmo que a matriz e filial sejam estabelecimentos que fazem parte da mesma pessoa jurídica, conforme evidenciado pelo Código Civil, ainda assim, a empresa não deixa de ser considerada como uma só, mesmo que haja um, ou vários estabelecimentos, sendo meramente  entendimento do artigo 127, II, do CTN  questão de domicílio da pessoa jurídica, onde se admite pluralidade.

Nesse mesmo sentido dispõe o §1º do artigo 75 do Código Civil: "tendo a pessoa jurídica diversos estabelecimentos em lugares diferentes, cada um deles será considerado domicílio para os atos nele praticados". Logo, resta claramente configurada a autonomia administrativa dos estabelecimentos, como também é preconizado pelo inciso II do artigo 127 do CTN que determina a pluralidade de domicílios para fins ficais.

Sendo assim, partindo desse esclarecimento, não se pode deixar de levar em consideração que o Superior Tribunal de Justiça ainda conta com entendimentos recentes e pacificados acerca da possibilidade de emissão de certidão de regularidade fiscal, independentemente de débitos da matriz, ante ao princípio da autonomia dos estabelecimentos, nos termos do artigo 127, II do CTN [1].

Portanto, o princípio da autonomia dos estabelecimentos não desconfigura a pessoa jurídica como um todo, apenas denota que, para questões relacionadas ao âmbito tributário, deve ser considerada, como prevista legalmente, a autonomia de cada estabelecimento de forma individualizada, respeitando o domicílio da ocorrência/natureza de cada ato, fato e/ou obrigação tributária. Além disso, o referido princípio garante o devido exercício ao direito fundamental do contribuinte à emissão de certidão.

REFERÊNCIAS
BORGES, José Souto Maior. O fato gerador do I.C.M. e os estabelecimentos autônomos. 1970. in Revista de Direito Administrativo, São Paulo,vol.103, p.41
MELLO, Oswaldo Aranha Bandeira de. Princípios do Direito Administrativo. 3º ed., vol. I. São Paulo: Malheiros Editores, 2007, p. 589.
MELO, José Eduardo Soares de. Curso de Direito Tributário. 7ª ed. São Paulo: Dialética, 2007, p. 248.


[1] (STJ — REsp: 1718298 RJ 2018/0005487-3, relator: ministra ASSUSETE MAGALHÃES, Data de Publicação: DJ 15/02/2018).

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