Opinião

O mantra do menor preço a qualquer custo nas licitações

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  • é sócio do RLLAW doutor e mestre em Direito Econômico pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUC-PR) doutor em Direito Administrativo pela Universitat Rovira i Virgili e presidente do Instituto Nacional da Contratação Pública.

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23 de março de 2022, 20h38

Licitação é o procedimento administrativo desenvolvido de forma ordenada e sucessiva, almejando encontrar a proposta economicamente mais vantajosa para o Poder Público, a partir de uma análise interna da melhor solução para satisfazer a necessidade pública, e desde que sejam observadas a isonomia, a competitividade e a promoção do desenvolvimento nacional sustentável [1].

Percebe-se que a busca da proposta economicamente mais vantajosa é a finalidade da licitação na definição ora defendida, visto que todo o procedimento administrativo e o respeito aos princípios jurídicos norteadores ambicionam, ao final, que se encontre qual a proposta que melhor atenderá ao interesse público com máxima segurança jurídica.

Por sua vez, é responsável também pelo sucesso ou não do contrato administrativo, como consequente lógico da licitação, para que este possa atingir o seu objetivo mediato e imediato.

Vantajosidade ou proposta economicamente mais vantajosa normalmente são utilizadas de maneira corriqueira em decisões judiciais e de Cortes de Contas, bem como nos mais diversos escritos sobre o tema, entretanto não parece que exista a adequada compreensão, verticalização e objetividade no seu uso. Reclama ser interpretada conforme as políticas públicas horizontais em sede de compras públicas [2].

A mais, basta tencionar que vantajosidade não se resume a preço. Isso já está exposto na Lei nº 8.666 no Brasil, ao estatuir diversos tipos de licitação no artigo 45 como o menor preço, maior lance ou oferta, melhor técnica ou técnica e preço ou agora na Lei nº 14.133 em seu artigo 33 com o menor preço, maior desconto, melhor técnica ou conteúdo artístico, técnica e preço, maior lance ou maior retorno econômico. Na mesma diretriz, por exemplo, a Ley 09/2017 da Espanha expressa em seu artigo 131 que o julgamento (adjudicação) se dará por uma pluralidade de critérios embasados na relação qualidade-preço [3].

A vantagem da proposta se caracteriza como sendo a melhor para o atendimento do interesse público. Isso pode ou não, conforme o objeto licitado, ser sinônimo de menor preço [4], porque, em certas hipóteses, será necessário avaliar aspectos diversos do preço para se selecionar a melhor oferta. Caso a Administração perquira tão somente o valor das propostas, não se examinará o binômio custo-benefício, mas só análise de custo [5]. Não é esse o norte que deveria guiar o mister da Administração Pública quando da feitura de suas licitações públicas.

A falta de parâmetros objetivos e de maiores estudos sobre a melhor forma para a obtenção da vantajosidade na legislação brasileira tem originado uma enorme precariedade das contratações públicas, já que o mantra do menor preço (ou menor qualidade na prática) a qualquer custo é a música ambiente da grande maioria das licitações brasileiras, inclusive ecoado pelas Cortes de Contas [6].

Para tanto, basta analisar os números no Brasil, pois a enorme maioria das licitações é concretizada por meio da modalidade pregão, presencial ou eletrônico, sendo que esta modalidade somente permite o uso do tipo menor preço.

Segundo o Painel de Compras do Governo Federal do Portal "Compras Governamentais", no exercício financeiro de 2018 houve: 50.962 pregões, 665 tomadas de preços, 365 concorrências públicas, 121 convites, 23 concursos e 14 concorrências internacionais [7].

Seja adotando o critério de menor preço e o depurando de maneira mais objetiva e segura, seja propondo uma mudança no nome previsto pela legislação brasileira para que se adote a denominação melhor relação qualidade-preço, o fato incontroverso é que se permanecerem os atuais termos as compras sustentáveis [8] no Brasil não passarão de mera retórica, as execuções contratuais continuarão sofríveis para fins de pragmaticidade (binômio utilidade versus efetividade) e a necessidade pública continuará tendo um papel secundário, ainda que sua satisfação deve ser o principal objetivo de qualquer contratação.

Exemplos são os mais diversos, conforme se escuta nos cursos e congressos para servidores públicos nos últimos quinze anos, desde café de péssima qualidade e praticamente intragável, papel-toalha que não seca as mãos e canetas que não escrevem, situações fáticas que podem sintetizar um pouco a angústia vivenciada.

Além do mais, a prática impensada do leilão inverso sem o devido cuidado no pregão é fator nodal ou, no mínimo, um grande fomentador de contratações socialmente irresponsáveis.

Dessa feita, o escopo deste ensaio é revisitar criticamente a melhor forma de se obter a proposta economicamente mais vantajosa e refletir novos critérios para tal mister. Afinal, não se pode esquecer que a validade e a eficácia de uma licitação dependem incondicionalmente do respeito à vantajosidade na seleção do fornecedor e o mantra do menor preço inúmeras vezes gera um negócio jurídico estéril ao interesse público do ponto de vista finalístico. Enfim, qual o custo que a sociedade brasileira quer pagar para continuar repetindo esse mantra?


[1] REIS, Luciano Elias. Compras Públicas Inovadoras. Belo Horizonte: Fórum, 2022.

[2] Especificamente sobre o enfoque na inovação tecnológica, Helena Villarejo Galende explica que: "el objetivo principal de las compras públicas es dotar a las Administraciones públicas de soluciones para prestar un mejor servicio a los ciudadanos. Este objetivo inmediato puede coexistir perfectamente con propósitos adicionales y mal ambicioso como el fomento de la innovación tecnológica. (…) En nuestra opinión, es un hecho evidente que se puede impulsar de un modo más eficaz la innovación a través de la contratación pública incorporando las denominadas cláusulas de progreso y valorando como solvencia el carácter innovador de la empresa". (GALENDE, Helena Villarejo. Colaboración público-privada y contratación precomercial para el impulso de la I+D+i y la transferencia del conocimiento. In: VELÁZQUEZ, Antonio Calonge (Dir.). Ciencia, tecnología e innovación: nuevo régimen jurídico. Granada: Editorial Comares, 2013, p. 133-145, p. 138 e 145).

[3] A incorporação da qualidade é ponto pacífico nos últimos textos normativos sobre contratação pública. A valoração da proposta economicamente mais vantajosa deverá perpassar pela aferição da "calidad de la prestación, la visión de cómo se satisface el interés público, debe ser el factor determinante para decidir las fórmulas de gestión de los servicios y la intensidad de colaboración público-privada". (GIMENO FELIÚ, José María et al. La gobernanza de los contratos públicos en la colaboración público-privada. Barcelona: Cambra Oficial de Comerç de Barcelona, 2018, p. 20).

[4] O ministro Marcos Vinicios Vilaça no Acórdão 256/2005 – Plenário, referindo-se ao menor preço buscado no suporte fático apreciado, manifestou que "não acredito que o princípio da vantajosidade deva prevalecer a qualquer custo". (Tribunal de Contas da União, Acórdão 256/2005 – Plenário, julgamento 16/3/2005, Processo 017.900/2004-8).

[5] Dentre os modelos de avaliação, existem as espécies: modelo de efetividade, modelo econômico e profissional. Dentro do modelo econômico existe o modelo de eficiência (coste x efectividad y coste x eficiencia). Segundo Evert Vedung: "El segundo modelo económico importante a utilizar en la moderna evaluación política y administrativa es el modelo de eficiencia. La eficiencia puede medirse de dos maneras distintas: como coste-beneficio o como coste-efectividad. <Las valoraciones de eficiencia (análisis de coste-beneficio y de coste-efectividad) proporcionan un marco de referencia para relacionar los costes con los resultados del programa>, afirman Rossi y Freeman en su ampliamente utilizado libro do texto Evaluación: un enfoque sistemático. <En los análisis de coste-beneficio, tanto los 'inputs' como los resultados del programa se miden en términos monetarios; en los análisis de coste-efectividad, los 'inputs' se calculan en términos monetarios y los resultados en términos de impactos real> (1989:3775). Si se mide en un análisis de coste-beneficio, la eficiencia podrá expresarse como la relación entre valor monetarizado de los resultados producidos por el programa y los costes monetarizados. Si el resultado es igual al medio en el análisis coste-efectividad, la eficiencia prestará atención a los costes monetarizados como en un análisis de coste-eficiencia, pero el valor de los efectos se indica sólo en términos físicos. (…) La diferencia más importante radica en que la eficiencia toma en cuenta los costes, lo que no ocurre en el análisis de la efectividad". (VEDUNG, Evert. Evaluación de políticas públicas y programas. Madrid: Ministerio de Trabajo y Asuntos Sociales. 1997, p. 114-115).

[6] Cite-se como exemplo a recente decisão do Tribunal de Contas da União, que entendeu pela possibilidade de uso da modalidade pregão para a contratação de serviços de engenharia com elevado grau de intelectualidade, como é o caso de projetos (BRASIL, Tribunal de Contas da União. Processo nº 012.522/2018-0. Acórdão nº 713/2019 — Plenário, relatoria ministro Bruno Dantas).

[7] Informação disponível em: http://paineldecompras.planejamento.gov.br/QvAJAXZfc/opendoc.htm?document=paineldecompras.qvw&lang=en-US&host=QVS%40srvbsaiasprd04&anonymous=true. Acesso em: 2/3/2019. Em texto sobre o desenvolvimento nacional sustentável, a Coluna Jurídica da Administração Pública publicada na Revista JML explica que mesmo a prática do menor preço na realidade brasileira demanda uma criteriosa análise sobre a qualidade, sob pena de atrelar-se a menor preço enquanto o adequado é raciocinar melhor preço. "Porém, mesmo na licitação do tipo 'menor preço', no qual o valor é o quesito de salutar importância para a escolha da proposta mais vantajosa à finalidade pública almejada, deve a Administração considerar os requisitos mínimos à aferição da qualidade do objeto. Com efeito, não atende o interesse público proposta que, em que pese ser mais barata, não reúne os requisitos mínimos de qualidade, rendimento, etc., necessários para suprir a demanda da Administração Pública". (JML. Coluna Jurídica da Administração Pública. Revista JML Eventos. Disponível em: http://www.jmleventos.com.br/arquivos/news_adm_publica/ANEXO_1_14_01.pdf. Acesso em: 4/12/2018.

[8] A expressão "compras sustentáveis" é para se referir à função socioeconômica da licitação e do contrato, conforme defendo no livro REIS, Luciano Elias. Compras Públicas Inovadoras. Belo Horizonte: Fórum, 2022, p. 53 e seguintes.

Autores

  • é sócio do Reis & Lippmann Advogados, doutor e mestre em Direito Econômico pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná, doutor em Direito Administrativo pela Universitat Rovira i Virgili, presidente do Instituto Nacional da Contratação Pública, professor de Direito Administrativo do Centro Universitário Curitiba (UniCuritiba), coordenador da especialização em Licitações e Contratos da Faculdade Polis Civitas, diretor-adjunto Acadêmico do Instituto Paranaense de Direito Administrativo e autor de livros jurídicos.

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