Opinião

Da democracia representativa à democracia participativa

Autor

  • Gustavo Hasselmann

    é procurador do Município de Salvador (BA) advogado graduado em Direito pela Universidade Federal da Bahia (UFBA) licenciado em filosofia pela Faculdade Batista Brasileira especialista em Processo Civil e Direito Administrativo pela Fundação Faculdade de Direito da Bahia membro do Instituto dos Advogados da Bahia (IAB) e do Instituto Brasileiro de Direito Administrativo e ex-juiz do Tribunal de Justiça Desportiva da Federação Baiana de Futebol.

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23 de março de 2022, 7h11

A democracia ocidental teve seu berço na Grécia Antiga, em Atenas, por volta do século 5 a.C. Etimologicamente, a expressão designa o governo do povo, sendo este "dêmos" (povo) e "Kratos" que significa "poder", dando a origem à "demokratia".

Ele é o regime mais próximo da democracia direta em que o povo participa ativamente nas decisões do poder político, sejam legislativas, executivas e judiciárias.

É importante anotar que embora a expressão democracia designe "governo do povo", na Grécia Antiga não eram todos os cidadãos que participavam das decisões políticas, na medida em que os escravos, mulheres, crianças e estrangeiros eram delas excluídos.

O sistema era constituído por três pilares, a saber: isonomia, que consiste na igualdade do indivíduo perante a lei; a isegoria que significava a liberdade igual dos sujeitos de falarem em assembleias e em outros institutos que permitem tal ação; e, por fim, isocracia, consistindo na igualdade do poder de cada cidadão em participar das instituições.

A primeira instituição da democracia grega que podemos aludir é a  ekklesia, que era a assembleia realizada em praça pública, em especial na colina Pnyx, mas que podia ser em outros lugares. Nela ocorria o debate popular relativo às decisões políticas da cidade. As decisões eram tomadas por maioria simples e o líder escolhido entre os cidadãos mediante sorteio entre eles.

boulé, "também conhecida como o conselho dos quinhentos buleutas, cidadãos com mais de 30 anos , com mandato de um ano, escolhidos por meio de sorteio dentre uma lista que cada uma das tribos fornecia. A instituição tinha variadas atribuições administrativas, legislativas e executivas, como a gestão do dinheiro da  pólis, a valiação e elaboração de projetos  de leis sugeridos na ekklesiai, convocação das assembleias , e assim por diante" (Ficara F. De Barros Carvalho, em DEMOCRACIA PARTICIPATIVA, no mundo e no Brasil, uma solução à crise de representatividade, editora D Plácido, pág 22).

 A última instituição era a helieia, que "era um tribunal com sessões públicas, composta por seis mil heleatas, com mandato de um ano, tirados à sorte dentre as listas fornecidas por cada tribo. Os heliastas eram juízes e não precisavam ter formação específica para exercer sua função , podendo ser qualquer cidadão com mais  de 30 anos" (obra citada, pág. 22).

A democracia grega chega ao final com o domínio da Grécia pela Macedônia em 338 a.C.

Após esse período, a democracia ressurge com a eclosão das revoluções burguesas, sob a forma representativa, tais como as revoluções inglesas (a puritana e a gloriosa), americana e francesa.

Antes de adentrarmos o estudo da democracia participativa,  mister se faz tecermos algumas considerações, em breves linhas, sobre dois expoentes da filosofia política, a saber, Carl Schmitt e Alexis Tocqueville, que defenderam, respectivamente, a derrocada da democracia representativa  e a imprescindibilidade da democracia participativa.

Schmitt, autor de várias obras, tais como "Situação Intelectual do Sistema Parlamentar  Atual" (reeditada em 1932), "A ditadura" (1921),  "O guardião da Constituição" (de 1931), dentre outras, analisa e critica acerbamente o sistema parlamentar, apregoando a saída desse problema através de um regime centralizador, em que o Executivo tem prevalência sobre os demais poderes, e em que o presidente e chanceler está acima da Constituição e dos demais poderes, só devendo obediência à sua própria consciência.

É importante anotar que ele pontificou com veemência durante a república de Weimar, período em que a Alemanha  estava muito enfraquecida econômica e socialmente, em decorrência, inclusive e principalmente , da sua derrota na primeira guerra mundial, quando lhe foram impostas diversas e pesada sanções consubstanciada no Tratado de Versalhes. Com esse pensamento autocrático ele prenunciou o advento do nazismo.

Já Tocqueville, sobretudo na sua consagrada obra "A Democracia na América", revela-se um apologista da democracia participativa, nos moldes de como praticada nos Estados Unidos.

Ele era antípoda das ditaduras e entendia que a solução para os problemas de governo seria conciliar a democracia representativa, conquista histórica da humanidade, com a democracia participativa.

O jurista Fernando Novelli Bianchini , em sua lapidar obra intitulada   "Democracia Participativa, sob a crítica de Schmitt, e Democracia Participativa, na apologia de Tocqueville", nos ensina, aludindo ao pensamento deste último, o seguinte:

"A democracia na América traz, sobretudo, uma confissão. A confissão de um jovem magistrado francês que viu com seus próprios olhos algo que parecia impossível em seu país de origem: os ideais que inspiraram o fervor da Revolução Francesa de 1789, sufocados pelo regime ditatorial e monárquico que se seguiram, pareciam estar vivos e em pleno funcionamento na América do Norte. É a confissão de que a democracia, seja encarada como um valor ético, seja encarada como um direito positivado ou um sistema político, em sua forma representativa e participativa, pode dar certo" (obra citada, 2014, ed Millennium, pág. 10).

A democracia representativa, que representa um insuperável avanço civilizatório, não pode ser extinta. Ela deve ser calibrada e aprimorada com os fecundos aportes da democracia participativa. Nos dias que correm, com os eflúvios de regimes autocrático de extrema direita, o que importa, para impedir retrocessos, é porfiar o implemento da democracia participativa, com os seus métodos já conhecidos, que saõ meramente exemplificativos, de mãos dada com a democracia representativa.

No particular, ensina esse preclaro jurista:

"Assim, sem prejuízo das eventuais reformas que a democracia representativa deva realizar para sua adaptação aos novos anseios , a resposta para o problema político levantado neste momento parece ser o modelo da democracia participativa  como reforço do arcabouço representativo, buscando resgatar e executar os princípios da liberdade comunal, como veremos adiante" (obra citada, página 179).

A representação política, nos regimes democráticos principalmente, consiste num processo em que , a partir do voto, os governados confiam e delegam a gestão dos interesses da coletividade aos governantes eleitos periodicamente.

Integra ainda a democracia representativa o sistema partidário e o princípio da separação de poderes.

Quanto à democracia participativa,  o mencionado jurista Fernando Novelli, na obra citada, pág. 15, leciona que:

"Por outro lado, entende-se por democracia participativa o processo político que possibilita e estimula a participação do cidadão e de sua comunidade, via de regra de forma direta e por vezes de forma semidireta, na elaboração da vontade e dos atos do próprios do governo já constituído, em suas tarefas legais e administrativas, descartando a representação por meio de uma assembleia eletiva para tanto."

Acresce ao que vem de ser exposto , o fosso abissal que existe, sobretudo nos países em desenvolvimento, entre governantes e governados.  A representação política é vista com muita desconfiança pelo povo. Os interesses dos governantes não coincidem com os dos governados.

No Brasil se pode fazer essa constatação sem muito esforço. Com efeito, os anseios dos cidadãos no tocante á educação, saúde, moradia, saneamento básico etc., não são vocalizados pelos representantes em suas decisões políticas. Alia-se a isso a endêmica corrupção praticada pelos representantes eleitos,  vigorando o chamado presidencialismo de coalisão, no qual os parlamentares trocam os seus votos no Congresso por emendas e cargos em ministérios.

O saudoso professor Paulo Bonavides, em sua antológica obra "Teoria Constitucional da Democracia Participativa" (2001, ed. Malheiros), tece elucidativas considerações sobre a democracia participativa, em aliança com o Estado Social Constitucional, para fazer frente ao neoliberalismo devastador que campeia no mundo atual e à globalização que atentam contra a soberania dos países de terceiro mundo.

Efetivamente, ele porfia a ideia de um constitucionalismo emancipatório, fundado em valores e princípios, baseados numa nova hermenêutica constitucional, que resgatem a legitimidade dos países democráticos, em especial aqueles em desenvolvimento.

Ensina o mestre:

"Se não houvesse o horizonte da democracia participativa, para a qual se convocam , se recrutam e se arregimentam as falanges insubordináveis da mocidade acadêmica e universitária, as esperanças de fazer sobreviver a Constituição, já grandemente destroçada e transgredida, seriam mínimas , com a situação constitucional do país para sempre comprometida" (obra citada, pág. 31).

Omissis:

"A democracia participativa combate a conspiração desagregadora do neoliberalismo e forma a nova corrente de ideias que se empenham em organizar o povo para opor um dique à penetração da ideologia colonialista; ideologia de  submissão e fatalismo, de autores que professam a tese derrotista da impossibilidade de manter de pé o conceito de soberania. A  obsolescência deste é proclamada a cada passo como verdade inconcussa" (obra citada, pág. 34) .

O preclaro autor enxerga que o deletério neoliberalismo que impera no mundo desde a década de 1970, e, no Brasil, desde os anos 1990, capturou e arregimentou os governos e as elites econômicas dos países mundo afora, sobretudo daqueles em desenvolvimento, como o nosso, provocando  uma grande desigualdade social, nunca antes vista na história. De fato, no que atina aos países da América Latina, incluindo o Brasil, o FMI , o Banco Mundial, o Bird etc., impõem a estes um severo receituário neoliberal, que compreende  um estado mínimo, forte ajuste fiscal, perda de direitos trabalhistas e previdenciários, privatizações e outras tantas medidas, tudo isso vocacionado para a obliteração de conquistas civilizatórias que pareciam consolidadas nesses povos.  

Para Paulo Bonavides só a participação efetiva e direta dos cidadãos  através dos mecanismos de democracia participativa, não só aqueles arrolados exemplificativamente no artigo 14 da nossa CF, mas de tantos outros já existentes, como conselhos populares, audiências públicas nos três poderes, a internet e as redes sociais , os orçamentos participativos, manifestações de rua etc., e ainda outros que podem ser criados  é que pode enfrentar o neoliberalismo e o novo colonialismo, que tanto mal têm causado à humanidade, em especial aos países em desenvolvimento.

Cabe agora aduzir algumas reflexões sobre os mecanismos da democracia direta, ou semidireta, como querem alguns, dentre eles os arrolados no artigo 14 da nossa Constituição.

O artigo 1º, parágrafo único,  da nossa CF estabelece que "todo poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos, ou diretamente, nos termos desta Constituição".

Ele, dito parágrafo único, alberga não só a democracia representativa, ou indireta, como também a democracia participativa.

No seu artigo 14, a Constituição faz a nominata dos mecanismos de democracia direta.

Com efeito, são eles: o plebiscito, inciso I ( consulta prévia à opinião pública para a adoção de medidas legislativas, de interesse público relevante, pelo Poder Legislativo); o referendo, inciso II (consulta à opinião pública sobre  emenda constitucional ou lei ordinária, já elaborada que versa sobre interesse público relevante;  e a inciativa popular, inciso III (destaca-se a inciativa popular de leis ou emendas constitucionais através de um número determinado de eleitores, como no caso da Lei nº 135, de 0762010, conhecida como a lei da "ficha limpa").

Como já assinado anteriormente, esse rol não é taxativo, pois novos mecanismo já foram criados e ainda podem ser concebidos. Com efeito, não se pode descartar, posto que atuais, as audiências públicas , nas quais os cidadãos , nas três esferas de poder, contribuem na tomada de decisões dos agentes públicos; o orçamento participativo, no qual a coletividade, notadamente nos Municípios, pode participar da formatação da respectiva lei orçamentária, debatendo e elegendo suas prioridades no que tange às despesas e receitas públicas; a ação popular, mediante a qual o cidadão pode nulificar atos lesivos ao patrimônio público, ou praticado com desvio de finalidade (CF artigo 5º inciso LXXIII, e Lei 4.717, de 29.06.1965);  a internet e as redes sociais, que são bastante atuais nos dias de hoje e que têm grande repercussão na vida das pessoas;  a tutela jurisdicional de interesses coletivos e difusos, como por exemplo através das ações civis públicas; recall, instrumento ainda não previsto em nosso ordenamento jurídico, notadamente em nossa CF, mas de suma importância, que possibilita, mediante consulta popular, a revogação de mandatos de  representantes eleitos pelo voto popular, quando a sua atuação esteja em desacordo com as suas propostas aos eleitores e que não seja do interesse destes.

É imperioso anotar que as leis ordinárias que regulam a democracia participativa inserta no artigo 14 da CF são frouxas e lenientes, sendo certo, como já demonstrado, que não há interesse dos mandatários eleitos em prestigiar a democracia participativa. Por outro lado, a consciência política do nosso povo ainda é baixa, mercê da pouquíssima qualidade da nossa educação, o que, se de um lado dificulta a participação popular nas decisões dos poderes constituídos, de outro não pode  servir de empeço a que o povo participe ativamente da gestão da coisa pública.

Para arrematar, não é demasia assinalar que a democracia plena nesse século só pode ser alcançada através de uma forte aliança entre os modelos representativos e participativo.

Autores

  • é advogado, procurador do Município de Salvador, licenciado em Filosofia pela Faculdade Batista Brasileira (FBB), especialista em Processo Civil e Direito Administrativo Fundação Faculdade de Direito da Bahia (UFBA), membro do Instituto dos Advogados da Bahia (IAB) e do Instituto Brasileiro de Direito Administrativo (IBDA) e ex-juiz do Tribunal de Justiça Desportiva da Federação Baiana de Futebol (TJDF-BA).

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