Opinião

Racismo como responsabilidade civil nas relações de consumo (parte 2)

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23 de março de 2022, 6h09

Continua parte 1

O artigo 6º do "Codex" Consumerista elenca os principais direitos básicos do consumidor, todavia, iremos focar naqueles que entendemos violados quando das situações em que: 1) uma pessoa negra é impedida de ingressar nas dependências de uma loja; ou, 2) uma vez entrando, esta é submetida à vigilância dos seguranças do estabelecimento, passando a ser constantemente seguida; ou 3) após conseguir realizar sua compra, esta é submetida à revista de seus pertences.

Logo de cara, é possível — e diga-se mesmo necessário  notarmos que uma pessoa de pele negra sofre uma série de barreiras e obstáculos apenas e tão somente para poder adquirir um produto ou serviço, barreiras estas que pessoas brancas raramente enfrentam. É importante denotarmos e ressaltarmos que estes mesmos obstáculos de per si constituem numa mácula ao princípio isonômico que permeia toda e qualquer relação jurídica, não se resumindo apenas àquelas relações de consumo. Aqui, citamos, inclusive, a máxima isonômica de que "consumidores somos todos nós" de John F. Kennedy.

Criar-se este entrave é o mesmo que impedir ou limitar o direito de compra, de liberdade de escolha do consumidor, configurando em violação à sua dignidade e aos seus interesses econômicos, sem falar no impacto negativo em sua honra, não só na esfera subjetiva (como se vê), como também na objetiva (como se é visto perante a sociedade), configurando um constrangimento ilegal.

É evidente que a tática de seguir influi na vontade do consumidor, fazendo com que este se sinta desconfortável, incomodado, mal-vindo ou não desejado naquele ambiente. Trata-se de infração ao dever de proteção que deve ser assegurado, em especial contra métodos coercitivos e desleais de mercado. Fere-se, portanto, o direito básico previsto no artigo 6º, IV e 51, IV do CDC.

Não só o artigo 39 do CDC, que trata das práticas abusivas, deve ser entendido como rol exemplificativo, mas igualmente o rol de direitos básicos do art. 6º também não se apresenta como um cardápio fechado e restrito de direitos, admitindo-se outros, através da interpretação teleológica de suas normas. Assim, ainda que não elencado de forma clara na Lei nº 8.078/1990, há de se reconhecer o direito básico ao atendimento adequado, a teor do que se extrai da exegese dos artigos 6º, IV e 39, II e IV do Código de Defesa do Consumidor.

Ora, em que pese o mercado emergente das chamadas "e-commerce's", a grande maioria de relações de consumo ainda ocorre dentro dos estabelecimentos dos fornecedores, sendo que lhes é vedada a recusa de atendimento. Desta forma, a contrario sensu, o Código reconhece um direito ao atendimento adequado dos consumidores, a fim de que estes justamente não sejam discriminados, seja por motivo de gênero, raça, cor, orientação sexual, etc.

Não se poderia admitir que o Código deixasse de regrar o que se deve entender por atendimento, na medida em que este é corolário dos princípios do atendimento das necessidades dos consumidores, bem como da proteção de seus interesses econômicos, os quais não poderiam ser alcançados sem um atendimento adequado, imparcial e irrestrito. Vejam que, com isso, impedir o acesso é transgredir justamente referidos princípios.

O racismo e os deveres anexos
O direito de atendimento adequado, tal como os demais, não poderia vir isolado e despido de outros deveres, implícitos e fundamentais, para que a relação jurídica de consumo possa ocorrer da forma mais harmoniosa e saudável possível.

Quando tratamos de fornecimento de produtos e serviços ofertados em estabelecimentos comerciais próprios, físicos, devemos admitir, portanto, que hajam deveres outros, quais sejam: dever de receptividade, de cordialidade, de atendimento à comodidade, segurança e proteção, respeito, liberdade de escolha, liberdade de ir e vir, bom atendimento, não discriminar, dentre outros.

Os deveres anexos, portanto, são um conjunto de elementos que permeiam as relações jurídicas, os quais são extraídos não só do princípio da boa-fé, como também da função social do contrato. No que concerne às relações de consumo, podemos visualizá-los quando da interpretação dos artigos 4º, caput e 7º do Código de Defesa do Consumidor. Analisemos os deveres que identificamos:

– Dever anexo de receptividade: quando falamos em atendimento em lojas e estabelecimentos congêneres, estamos falando num local em que o consumidor deve se sentir acolhido, bem-vindo, O primeiro dever, portanto, é o da receptividade. Falar-se o contrário seria admitir que o fornecedor pudesse destratar o consumidor, agindo de forma completamente grosseira, rude, fria, indiferente, com uma postura de atendimento incompatível ao que o mercado atual de consumo demanda. Este mercado almeja fidelizar o consumidor, tornando-o um consumidor assíduo e fiel à sua marca.
– Dever anexo de cordialidade: obviamente que não poderíamos falar de boa receptividade, sem falarmos do atendimento com cordialidade, com educação, com bons modos. O consumidor deseja ser bem-tratado. Obviamente que não estamos a falar que uma eventual inobservância desse dever acarretará irremediavelmente em nulidade da relação negocial, mas influi, sim, no seu bom desenrolar. O consumidor que se sinta desrespeitado, por razões óbvias, provavelmente desistirá da compra. O desrespeito a este dever poderá acarretar na quebra do lastro negocial, implicando na desistência da compra ou até em reparação civil.
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Dever anexo de atendimento à comodidade: um consumidor que adentra numa loja assim o faz, primeiramente, por comodidade, seja esta no sentido de que o comércio local é mais próximo de sua residência ou de seu trabalho; seja em razão dos preços mais em conta; segurança; serviço de estacionamento; facilidade de pagamento; etc.
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Dever anexo de eficiência: aqui, estamos tratando do atendimento que é prestado com eficiência, destreza, tecnicidade e o mínimo de erros possíveis.
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Dever anexo de segurança e proteção: é inquestionável que não esperamos sofrer qualquer tipo de agressão quando estamos à realizar compras numa loja. O consumidor, enquanto no interior do estabelecimento, espera e confia que sua condição física, moral, psicológica e patrimonial sejam preservadas, afinal, é nesta hora em que o consumidor se encontra em maior situação de fragilidade, na medida em que normalmente deixa de prestar atenção ao seu entorno, aos perigos que rotineiramente nos circundam, para prestar atenção em que produto escolher, em qual irá levar, focando no ato da compra. Por esta razão, o fornecedor, em especial aqueles que contam com serviço de segurança, devem proteger o consumidor de todo tipo de injusta agressão. Entretanto, referido dever serve de proteção do consumidor não apenas contra terceiros, mas também e igualmente em relação ao fornecedor. Não se pode admitir que um consumidor seja, por exemplo, destratado ou agredido pelos próprios funcionários de uma loja. O consumidor não pode ser tratado também como bandido, como um criminoso em potencial, observado, seguido, revistado e ridicularizado perante terceiros. Referido dever anexo tem importante ligação com o direito ao atendimento adequado, mas também com relação ao chamado fato do serviço. Uma vez transgredido o dever de segurança e proteção, o fundamento de responsabilização do fornecedor será justamente o disposto no artigo 14 do Código de Defesa do Consumidor.
– Dever anexo de respeito: impõe-se um tratamento com respeito, de forma a que o consumidor não seja desrespeitado física, moral ou socialmente, ligando-se aos deveres anexos de cordialidade e de segurança e proteção. O consumidor que se encontra em situação de compra espera ser tratado de forma respeitosa. O ato de perseguição, de ser humilhado, de ter sua condição física violada gera um grave incômodo em sua paz interior. Nos casos em que haja, de fato, uma necessidade de abordagem, presume-se que os seguranças possuam treinamento, para uma abordagem adequada, visando atuar de forma discreta, minimizando qualquer afronta aos direitos da personalidade do consumidor. O respeito aqui discutido não se resume à questões de agressão, mas igualmente incorpora um dever de observância e de respeito à sua condição física, à suas limitações corpóreas, de modo a que o consumidor com deficiência motora, por exemplo, tenha acesso ao local, possa adentrar e circular livremente perante os espaços que são disponibilizados a todos os consumidores indistintamente. O respeito aqui tratado, portanto, não se restringe apenas à boa-educação, mas visa atender também às oportunidades de acesso e de compra aos consumidores, respeitadas as suas peculiaridades e limitações, de modo a se assegurar, com a máxima efetividade, a igualdade de tratamento entre todos.
– Dever anexo de liberdade de ir e vir: parece-nos óbvio, mas não é o que acontece na prática com os consumidores negros. Não nos parece razoável que qualquer pessoa ingresse numa loja e seja impedida de entrar, ou mesmo seja constantemente acompanhada e observada pelos seguranças ou vendedores do estabelecimento comercial. Referida postura deve ser entendida como um ato antijurídico, por restringir ou limitar, à depender do caso concreto, o direito de acesso ou a liberdade de ir e vir do consumidor.
 Dever anexo de liberdade de escolha: referido dever tem conexão lógico-jurídico com os dois deveres comentados anteriormente. Uma vez restringido o acesso ao estabelecimento comercial, o consumidor obviamente terá seu direito de ir e vir violado. O Código de Defesa do Consumidor é claro no sentido de proibir determinada conduta ofensiva do fornecedor, consoante se extrai do disposto nos artigos 14, §1º, I e 39, II. Ofende-se, igualmente, o princípio da legítima expectativa do consumidor que é impedido de ingressar em determinado local, sem justo e razoável motivo, para efetuar uma compra. O mesmo ocorre quando o consumidor negro é seguido, uma vez que referida postura comercial implica dizer que aquele é uma pessoa em que aquele fornecedor entende como perigosa, nociva ao ambiente, mal-vinda, o que afeta a liberdade de escolha do consumidor. Não há, aqui, a necessidade de ofensas explícitas à figura do consumidor, como exigem imoderadamente alguns juízes. Aqui, o exame dos fatos deve ser no sentido de se verificar se: 1) o fornecedor adota a mesma postura com outros consumidores? 2) qual o perfil de consumidores que são observados? 3) há mais negros ou brancos enquanto pessoas observadas pelo fornecedor? 4) há justo motivo que implique na necessidade de observação de determinado consumidor? Todos estes questionamentos devem ser respondidos e comprovados, a teor do princípio do ônus da prova, pelo fornecedor de produtos e serviços, haja visto que o consumidor é, via de regra, vulnerável e, no caso dos consumidores negros, hipossuficiente perante uma loja, por exemplo, de vendas de jóias ou de roupas de grife. Percebam que, em não raras ocasiões, estamos tratando do racismo estrutural, o qual é subentendido como racismo velado, nas "entrelinhas", que se esconde através do suposto exercício regular de um direito. É essencial o reconhecimento, no caso em que esteja se discutindo atos supostamente racistas, que se reconheça ao consumidor negro a questão da chamada hipossuficiência. Estes indivíduos são historicamente vilipendiados do mais sagrado direito, que é o da existência digna, uma vez que são os primeiros a serem discriminados, a serem alijados da sociedade enquanto sujeitos de direito. Dados de órgãos como Dieese e IBGE mostram que a população negra é a mais afetada quando se fala em distribuição de renda, taxas de violência ou analfabetismo, inclusive, representação política, reforçando a diferenciação entre brancos e negros e demonstrando, por meio de análise de dados estatísticos, que o racismo estrutural não só existe, como ainda persiste.
– Dever anexo de não discriminar: de 2018 para cá, houve vários retrocessos sócio-econômicos do governo atual, em especial no tocante à proteção das minorias, tais como negros, índios, a população LGBTQI+, etc. Essas "castas" sociais vêm sendo desrespeitadas constantemente, seja através de agressões físico-verbais, seja através de ausência ou mesmo de cortes orçamentários em políticas públicas, justamente no sentido de enfraquecer essa onda sócio-evolutiva de direitos e igualdades. Neste sentido, o dever anexo de não discriminar é inquestionavelmente um supedâneo do princípio da igualdade, da existência digna e da justiça social, sendo o dever que mais se aproxima de uma natureza constitucional.
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Dever anexo de lisura e boa-fé: também poderíamos aqui chamá-lo de dever anexo da confiança mútua, uma vez que se deve admitir que ambos os contratantes se comportem com retidão um para com o outro. Não basta apenas que o fornecedor observe os deveres supra elencados. Também se exige do consumidor uma postura de boa-fé na compra, no sentido de que não irá causar dano a outrem, ou praticar qualquer crime dentro dos estabelecimentos comerciais. Exige-se que ambos as partes se respeitem, se ajudem, se auxiliem, respeitando os legítimos interesses econômicos uma das outras, no sentido de propiciar um fomento micro e macro econômico.

Conclusão
A nosso ver, as situações exemplificadas aqui não devem ser tomadas como corriqueiras, como "mero aborrecimento", "normais" ou "aceitáveis", na medida em que estas escusas são justamente a base para que elas continuem acontecendo para uma parcela específica da população. Obviamente que referidos deveres podem e devem ser aproveitados para outros indivíduos que, seja por sua religião, raça, orientação sexual, etc., também venham a sofrer os mesmos impedimentos ou restrições sofridos pela população negra.

Reforça-se a exclusão social, o pensamento segregatório, o racismo estrutural, portanto, que deve ser combatido tal e qual é identificado: racismo estruturante de um comportamento excludente, porém, costumeiramente aceito. Não se deve "resumir" o racismo apenas em atos ou palavras. O racismo vai além disso, através de comportamentos que mascaram o que realmente é.

O racismo velado, estrutural, se constitui em ato antijurídico, que fere, creio, os mais importantes princípios jusnaturalistas, quais sejam: igualdade e liberdade.

O racismo, portanto, na esfera do direito do consumidor, é um elemento estruturante da responsabilidade civil, embrenhando-se na esfera de atuação e de liberdade do fornecedor, culminando, finalmente, num serviço defeituoso, inadequado ao consumo, ensejando em sua responsabilidade objetiva, a teor do que determina o artigo 14 do "Codex" Consumerista.

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