Opinião

Países adotam a primazia da jurisdição doméstica sobre a internacional

Autor

  • Thiago Almeida

    é advogado e pesquisador convidado de doutorado na Faculdade de Direito da Universidade de Genebra (Unige) doutorando em Direito Internacional do Investimento na Faculdade de Direito da UFMG e professor de MBA sobre Infraestrutura Concessões e Parcerias Público-Privadas na PUC Minas e na Fundação João Pinheiro.

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22 de março de 2022, 19h20

O Estatuto da Corte Internacional de Justiça de 1945, assinado junto com a Carta das Nações Unidas, estipula em seu artigo 38 o rol das fontes do Direito Internacional. Dentre as fontes, observa-se que as decisões judiciárias se constituem como meio auxiliar para subsidiar a determinação das regras de direito (artigo 38 (d)) [1]. Dessa forma, não se constitui como fonte de Direito. Por outro lado, as decisões de tribunais e cortes internacionais possuem caráter obrigatório entre as partes da lide, uma vez que ambas concordaram anteriormente pela jurisdição da corte internacional.

Ocorre que o processo criador de normas do Direito Internacional é profícuo e envolve um amplo conjunto normativo de regras escritas (convenções) e não escritas (princípios gerais e costumes). São inúmeras as realizações e tentativas de codificação de normas não escritas. Por exemplo, a Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados de 1969 foi um produto de longo processo de reconhecimento de normas costumeiras no Direito Internacional que, a partir da formalização em tratado, tornou-se norma jurídica expressa no ordenamento internacional [2]. Processos semelhantes ocorreram com as convenções de Viena sobre relações diplomáticas [3] e consulares [4].

Outro caso, por se tratar de temas controversos, que ainda não se configurou como um tratado, é o Projeto de Artigos sobre a Responsabilidade Internacional dos Estados por Ato Internacionalmente Ilícito de 2001. Trata-se de um conjunto de artigos que largamente são citados em inúmeras lides internacionais, mesmo não apresentando formalmente o caráter de convenção. Todavia, expressam normas costumeiras, cuja identificação e aplicação se observam em decisões judiciais internacionais [5].

No que se refere aos investimentos internacionais, cujo campo jurídico é regulado pelo Direito Internacional do Investimento, disputas sobre eventuais violações do direito dos investidores ocorre via proteção diplomática, arbitragem Estado-Estado, ou mesmo por arbitragem Investidor-Estado, conforme previsto na Convenção de Washington de 1965, que criou o Centro Internacional para a Resolução de Conflitos sobre Investimentos (International Centre for Settlement of Investment Disputes — ICSID) e corresponde a uma das cinco organizações que compõem o Grupo Banco Mundial [6]. O sistema que rege os investimentos internacionais é essencialmente plural, formado por acordos bilaterais ou regionais a garantir regras mais acessíveis ao capital externo, a garantir proteções especiais e a definir as regras procedimentais em eventual violação. A exemplo, o acordo USMCA (United States-Mexico-Canada Agreement), que substituiu o Acordo de Livre Comércio da América do Norte (North American Free Trade Agreement — Nafta) em 2020 [7], constitui em um conjunto de regras regionais a regular o comércio e os investimentos entre os Estados Unidos, Canadá e México.

Na decisão do caso ADF v. United States, o tribunal ad hoc elevou a decisão judicial ou arbitral para o mesmo nível das demais fontes de Direito Internacional, em contrassenso ao previsto no artigo 38 do Estatuto da Corte Internacional de Justiça. Trata-se, portanto, de uma interpretação extensiva do entendimento arbitral que diverge de outros posicionamentos [8].

O próprio caso em tela faz referência ao caso Mondev v. United States, no qual decidiu por uma interpretação mais restritiva. O processo de "dizer o direito" (juris dictio) não deve corresponder à determinado entendimento próprio, mas sim corresponder ao previsto nas fontes do Direito [9].

Já no caso Saipem v. Bangladesh, o tribunal arbitral entendeu que havia uma obrigação por parte do órgão jurisdicional em contribuir para o desenvolvimento harmonioso do Direito Internacional do Investimento, a fim de alcançar as expectativas legítimas da comunidade de Estados e investidores pela certeza do direito, sendo que tal comunidade de partes litigantes inexiste no plano fático [10]. Tal decisão fundamenta-se em uma interpretação estendida do sistema jurídico.

Dessa forma, observa-se uma falta de coerência e consistência por parte de decisões arbitrais desprovidas de uma ulterior instância de apelação.

Ciente das críticas desse sistema, o Brasil adota a solução de conflitos sobre investimentos conforme a jurisdição nacional. A posição brasileira é seguida por outras economias emergentes, a citar a África do Sul, Indonésia e Índia, que passaram a denunciar os seus tratados bilaterais de investimento assinados no furor das décadas do ápice do neoliberalismo (1980-2000). No caso sul-africano, a adesão ao modelo de arbitragem internacional decorreu no período pós-apartheid, como uma forma de atrair capital externo após décadas de isolamento devido o sistema racista implementado. Para tanto, em 2015, o governo sul-africano desenvolveu uma nova legislação nacional a tratar sobre investimentos dos investidores estrangeiros e locais (Promotion and Protection of Investment Bill), definindo a esfera doméstica como locus para a regulação dos investimentos estrangeiros [11].

No que se refere ao comércio internacional, o acordo provisório de tarifas e comércio (GATT), celebrado em 1947, foi substituído pela Organização Mundial do Comércio (OMC), a partir do tratado de Marrakech de 1994, tendo recepcionado os acordos do GATT 1947 e 1997 e ampliou a sua competência de atuação. Em especifico, criou-se o princípio do single understanding, significando que cada país deveria aderir a todos os acordos e não somente aos que desejassem. Essa modificação encerrou a figura do GATT à la Carte. Outra inovação foi a instauração do processo de solução de disputas — o Sistema de Solução de Conflitos. Criou-se a figura do Painel (arbitragem ad hoc) e do Órgão de Apelação, tribunal este permanente a revisar as decisões dos painéis, no que se refere a disputas sobre o fundamento jurídico da decisão.

Desde dezembro de 2019, o Órgão de Apelação da OMC encontra-se impossibilitado de realizar as suas atividades em virtude do bloqueio dos Estados Unidos em acordar a recondução do juiz sul-coreano na Corte de Apelação da OMC. Tal fato ocorreu durante a Administração Trump. Mesmo na gestão Biden, nenhum sinal de alteração da conduta norte-americana foi evidenciada, mantendo o bloqueio até o presente momento [12].

A posição norte-americana decorre exatamente da discussão sobre os limites da interpretação das decisões e os seus efeitos no Direito Internacional. Os EUA defendem que tais órgãos internacionais devem se ater a uma interpretação restrita ao caso, não cabendo a tais instâncias promover a criação de norma jurídica ou mesmo atuar pela harmonização do sistema jurídico internacional. Em síntese, o governo norte-americano apresentou a sua crítica à tal conduta como de ativismo judicial (judicial activism), em que um conjunto de decisões internacionais leva a um reconhecimento de facto de uma jurisprudência e, em consequência, a formação de precedentes enquanto normas obrigatórias a serem observadas nos casos subsequentes. A crítica norte-americana é relevante ao constatar que o Direito Internacional é diferenciado do sistema jurídico doméstico, uma vez que normas não-escritas (costume e princípios gerais) são partes integrantes da evolução jurídica.

Tal crítica norte-americana é produto de um conjunto de casos como o DS344 (United States — Final anti-Dumping Measures on Stainless Steel from Mexico), em que o Órgão de Apelação da OMC afirmou que a interpretação adotada pela decisão torna-se parte do conjunto normativo do sistema de solução de controvérsias da OMC (aquis), permitindo maior previsibilidade nas decisões em diferentes casos em disputa [13]. Outro caso foi o DS11 (Japan — Taxes on Alcoholic Beverages), em que reconhece a importância dos precedentes dos casos como instrumento a contribuir para a decisão de lides futuras [14].

Observa-se que, uma vez que a OMC é constituída sobre o princípio do consenso, os Estados Unidos decidiram isoladamente em bloquear a recondução de um dos juízes ao Órgão de Apelação em 2019, indicando que este não atuou dentro dos limites das funções previstas no órgão, tendo incorrido na criação de norma jurídica [15].

A posição dos EUA de unilateralmente interromper a atividade de solução de controvérsias da OMC é drástica, impedindo que o organismo multilateral atue juridicamente na solução de conflitos entre os Estados-membros. Outrossim, tal conduta reflete uma característica norte-americana de prevalência de soluções domésticas e atuação bilateral na sociedade internacional, que lhe permite exercer maior poder de barganha na buscas de resultados conforme seus interesses nacionais, contrapondo-se à proposta de um órgão multilateral de solução de controvérsias.

Por fim, no que se refere aos investimentos, a ausência de uma instância de revisão das soluções arbitrais gera decisões conflitantes e desprovidas de fundamento jurídico adequado. Dessa forma, apresentam um sistema de solução de controvérsias mais frágil levando países a adotarem a primazia da jurisdição doméstica sobre a internacional.

Autores

  • é advogado, especialista em Direito Internacional do Investimento e em Parcerias Público-Privadas, professor de MBA de Infraestrutura, Concessões e Parcerias Público-Privadas na PUC Minas, assessor de investimentos internacionais da Vice-Governadoria do Estado de Minas Gerais, doutorando e mestre em Direito Internacional pela UFMG.

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