Opinião

Direito ao silêncio e o "Miranda Warning": país acompanhará jurisprudência dos EUA?

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18 de março de 2022, 16h27

Provavelmente todo mundo já assistiu a algum filme norte-americano em que há aquela famosa cena na qual o policial, ao prender um suspeito, o informa do seu direito de permanecer em silêncio, de que qualquer coisa que disser poderá ser usada contra ele no tribunal e que tem o direito de falar com um advogado.

Esse código de conduta, conhecido como "Miranda Warning", foi determinado pela Suprema Corte dos Estados Unidos no célebre caso Miranda v. Arizona, sendo fixado o entendimento de que, para uma declaração proferida por um acusado ser considerada prova em um julgamento criminal, a autoridade policial deve informar o réu do seu direito de permanecer em silêncio e de conversar com um advogado.

No Brasil, apesar de a Constituição assegurar o direito ao silêncio e não estabelecer nenhuma restrição acerca do momento em que tal direito deve ser informado ao preso, os tribunais do país não possuem um consenso sobre o tema. Para tanto, há julgados que seguem a jurisprudência constitucional estadunidense, como também há tribunais, como o de São Paulo, decidindo que a autoridade policial não é obrigada a informar ao preso o seu direito ao silêncio no momento da abordagem. Essa decisão do TJ-SP foi objeto de recurso ao STF, o qual julgará o tema no Recurso Extraordinário 1.177.984.

Convém relembrar o já citado caso Miranda v. Arizona, para entender como a Suprema Corte dos EUA fixou o entendimento da obrigação do preso ser informado do seu direito ao silêncio no momento da abordagem policial.

Um americano de origem mexicana, Ernesto Miranda, havia raptado uma jovem nas ruas de Phoenix, Arizona, tendo-a forçado a entrar em seu carro e praticado o crime de estupro em um local afastado. A vítima anotou as características do carro, o que tornou possível que um parente seu reconhecesse o carro nas ruas e denunciasse à polícia.

Miranda foi preso e escreveu uma confissão quando estava na estação policial, na qual assumia a responsabilidade pelos crimes de rapto e estupro, que apresentava as seguintes palavras: "Por meio deste eu declaro que faço esta afirmação voluntariamente e de minha livre e própria vontade, sem ameaças, coerção ou promessas de imunidade, e com meu total conhecimento de meus direitos legais, compreendendo que cada declaração que faço pode ser usada contra mim".

Contudo, antes de escrever tal confissão, Miranda não foi informado do disposto na Quinta Emenda da Constituição dos Estados Unidos da América, a qual estabelece garantias contra o abuso da autoridade estatal, a garantia do devido processo legal, o direito ao silêncio, o direito de não ser julgado pelo mesmo crime duas vezes e de não ser obrigado a servir de testemunha contra si próprio em processo criminal.

O acusado foi condenado pelo júri aos crimes de rapto e estupro, baseado na prova confessional mencionada acima. Foi interposto recurso à Suprema Corte do Estado do Arizona, que manteve a decisão, entendendo que o réu não solicitou a presença de um advogado. No entanto, a decisão foi revertida pela Suprema Corte dos EUA.

A Corte estadunidense entendeu que a polícia não pode obter a confissão do acusado sem antes informá-lo dos seus direitos, sendo nula a utilização da prova que viole a Quinta Emenda da Constituição dos EUA.

Vale ressaltar que o julgamento de Miranda baseado na prova confessional foi anulado, sendo, posteriormente, submetido a novo julgamento e condenado à mesma pena fixada anteriormente, com base em provas testemunhais, inclusive de sua ex-mulher.

O caso brasileiro que deu origem ao RE 1.177.984 trata de recurso impetrado por um casal que foi preso em flagrante após policiais encontrarem pistola, espingarda e munições em sua residência. A alegação utilizada pelo casal é de que a acusada teria declarado, de forma voluntária e informal, que possuía a pistola encontrada em seu quarto, o que configuraria a confissão do delito de posse ilegal de arma de fogo.

O TJ-SP entendeu que, no momento da abordagem, os policiais não são obrigados a advertir os acusados do direito de permanecerem calados. O questionamento que o STF decidirá é se o Estado deve informar ao preso o seu direito ao silêncio no momento da abordagem policial e não somente no interrogatório formal, sob pena de ilicitude da prova.

A Constituição Federal brasileira dispõe, em seu artigo 5º, inciso LXIII, que "o preso será informado de seus direitos, entre os quais o de permanecer calado […]". Pela redação do texto constitucional, é possível perceber que a Carta Magna não faz restrição ao momento em que o preso deve ser informado do seu direito.

O elemento gramatical cumpre um papel indispensável na interpretação constitucional, conforme explana Sarmento [1], almejando-se, por meio deste elemento de interpretação, esclarecer o significado das palavras empregadas pelo legislador para, a partir daí, extrair as conclusões sobre a aplicação de determinada norma jurídica.

Ora, se uma pessoa é presa em flagrante pela autoridade policial, ela deve ser informada dos seus direitos naquele momento, pois a partir dali já é considerada presa.

Vale lembrar que a Constituição Federal de 1988 foi promulgada após um período de restrições e violações a direitos, principalmente em relação aos presos políticos, e, por essa razão, o Constituinte estabeleceu um extenso rol de direitos e garantias fundamentais, preceituando diversos direitos para os indiciados e presos. Entender que o Constituinte quis restringir o direito ao silêncio somente no momento do interrogatório formal seria incompatível com o contexto em que a Carta Magna foi promulgada.

O Código de Processo Penal, promulgado em 1941, em sua redação original, já estabelecia o direito ao silêncio, dispondo que "antes de iniciar o interrogatório, o juiz observará ao réu que, embora não esteja obrigado a responder às perguntas que lhe forem formuladas, o seu silêncio poderá ser interpretado em prejuízo da própria defesa". Essa redação foi alterada, e, atualmente, o CPP preceitua, em seu artigo 186, parágrafo único, que o silêncio não importará em confissão e muito menos poderá ser interpretado em prejuízo da defesa, devendo esse princípio, por analogia, ser aplicado no momento da abordagem policial.

Também cabe mencionar que, no processo penal, não se deve buscar uma verdade real e absoluta, a qualquer custo, mas sim devem ser observados direitos e garantias fundamentais para que se garanta um julgamento justo e legal.

O Supremo Tribunal Federal já havia enfrentado o tema do direito ao silêncio no julgamento dos Habeas Corpus nº 68.742-3/DF e 68.929-9/SP, no qual firmou entendimento de que a norma constitucional, que garante o direito ao silêncio, abrange qualquer indivíduo que figure como objeto de procedimentos investigatórios policiais ou que ostente, em juízo penal, a condição jurídica de imputado e também qualquer pessoa sujeita à ação persecutória do Estado, estabelecendo uma interpretação extensiva da palavra "preso".

Resta saber se o STF, guardião da Constituição, manterá esse posicionamento extensivo do direito de ser informado do silêncio, determinando que não só no interrogatório formal o preso deve ser informado do seu direito ao silêncio, como também no momento da abordagem policial, ou se adotará posicionamento restritivo, limitando o direito dos presos estabelecido na Constituição.

Caso adote o posicionamento da jurisprudência estadunidense, o STF garantirá a aplicação dos princípios da legalidade e do devido processo legal, sendo possível prevenir as coações e violências que os presos estão sujeitos no momento de uma abordagem policial.

REFERÊNCIAS
Brasil. Constituição 1988. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.Brasília, DF. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em: 13/1/2022.
Brasil. Código de Processo Penal. Decreto Lei nº 3.689, de 03 de outubro de 1941. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del3689.htm. Acesso em: 13/1/2022.
SANTOS, Rafa. STF discute obrigatoriedade de aviso do direito ao silêncio em abordagem policial. Conjur, 2021. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2021-dez-11/stf-discute-obrigatoriedade-aviso-direito-silencio. Acesso em: 7/1/2022.
SOUZA NETO, Cláudio Pereira de; SARMENTO, Daniel. Direito Constitucional: teoria, história e métodos de trabalho. 2ª ed., 5ª reimpr. Belo Horizonte, Fórum, 2019.
STF julga se policiais devem informar direito ao silêncio em abordagem. Migalhas, 2021. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/quentes/356297/stf-julga-se-policiais-devem-informar-direito-ao-silencio-em-abordagem. Acesso em: 4/1/2022
TORON, Alberto. O STF começa a construir as 'regras de Miranda' no Brasil. Prerrô, 2021. Disponível em: https://www.prerro.com.br/o-stf-comeca-a-construir-as-regras-de-miranda-no-brasil/. Acesso em: 7/1/2022.


[1] SOUZA NETO, Cláudio Pereira de; SARMENTO, Daniel. Direito Constitucional: teoria, história e métodos de trabalho. 2ª ed., 5ª reimpr. Belo Horizonte, Fórum, 2019, p. 414.

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