Opinião

Justiça descentralizada: smart contracts e a plataforma Kleros

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17 de março de 2022, 10h27

A economia está mais globalizada e o mundo, digital, sobretudo nos últimos 20 anos, após o advento do uso da internet em escala massiva e comercial. Com isso as disputas também passaram a ocorrer neste novo modelo de economia online. 

Nessa nova economia surgem novos modelos de disputas que não havia quando a estrutura de resolução de conflitos do Poder Judiciário ou mesmo a arbitragem foram inventados.

Imaginem o seguinte modelo de justiça. É feito um acordo em que é combinado que uma pessoa paga e a outra entrega um produto digital. Uma delas deposita o dinheiro, numa espécie de conta, que será liberado automaticamente à outra pessoa quando esta entregar o bem ou fizer o serviço. Além disso pode ser combinado que havendo um problema decorrente desta negociação uma plataforma descentralizada — que não é nem do Estado e nem particular — irá decidir a questão. Este modelo já existe hoje que é a plataforma do Kleros, cujo idealizador Federico Ast estará presente nesta quinta-feira (17/3) para o evento "Justice in the Metaverse Age", no Rio de Janeiro, para apresentar o uso desta plataforma para solução de conflitos no metaverso.

Em recente entrevista[1], Ast explica que esta forma de solucionar conflitos é muito diferente do que ocorre no mundo tradicional. Pois ao codificarem um smart contract (um código computacional que executa o que for combinado pelas partes) além das partes estabelecerem as regras do contrato,  pode ser ainda configurado que em caso de disputa o caso será encaminhado automaticamente para a Kleros.

Ast explicou nesta entrevista como funciona a Kleros. Após o caso chegar na plataforma, jurados analisarão o contrato e o produto, e baseados em algumas regras, decidirão quem tem ou não a razão. Para ser jurado basta ter o token da Kleros (denominado PNK), e depositá-lo numa das cortes da plataforma a qual pretende atuar. Existem cortes especializadas por matéria (como por exemplo uma própria para questões envolvendo e-commerce). O número de jurados varia conforme a natureza do caso. Se o voto do jurado estiver conforme a maioria este receberá os tokens depositados no contrato, e  se estiver desconforme perderá seus tokens. É um julgamento com base na teoria dos jogos.  Quem vota conforme a maioria é premiado, e quem vota  desconforme é penalizado. É uma forma diferente de estruturar justiça como tradicionalmente se faz.

A plataforma Kleros é uma espécie de ODR (online dispute resolution) situada na blockchain, e por isso não está presente no mundo privado e tampouco no público. Diferencia-se das primeiras  ODRs, por não serem controladas por empresas privadas e por estar na blockchain, sendo neste espaço que há o que se pode denominar de justiça descentralizada.

As primeiras ODRs [2] surgiram na década de 1990. Logo com o surgimento da internet, as pessoas já pensaram a usá-la para resolver seus problemas, sobretudo aqueles  relacionados às atividades próprias dela, como por exemplo o e-commerce. Mas em sua fase inicial a maioria das ODRs  ainda funcionava mais ou menos como os métodos antigos, só que da forma online. Apesar de ser mais eficiente e barato, apresentando vantagens, não é tão inovador, pois não muda muito a lógica como o processo vinha sendo feito. Foram nos últimos anos que as ODRs tiveram um avanço inovador significativo com a introdução da inteligência artificial por meio machine learning, aumentando o campo de automatização de muitas decisões e também com sua implantação no universo das blockchains.  

As blockchains são redes em que cada um pode participar; é uma rede composta por computadores que compartilham a mesmo livro-razão. Os participantes chegam a um consenso quanto as titularidades de bens e como  deve ser o procedimento de registro e validação.  Qualquer pessoa que faz parte dessa blockchain ou qualquer outra poderá perceber que basicamente ninguém tem o domínio, controle ou interferirá nas regras estabelecidas.

Quando há um processo a ser julgado na blockchain todos podem ter a certeza que ele tramitará exatamente da forma que foi escrita no código, e que ninguém poderá  controlar provas ou  influenciar na escolha dos jurados. Diz Ast em sua entrevista que nem mesmo o criador da plataforma tem especial acesso ao console, não consegue mudar nada. Isso é importante, pois transmite-se confiança para as partes de que ninguém poderá corromper o sistema. Essa transparência e garantida pelo fato de ser construída na tecnologia da blockchain.

Quanto aos smart contracts é preciso dizer que é um conceito mais antigo que a blockchain. Surgiu em meados dos anos 1990. E foi Nick Szabo, criptógrafo e jurista quem o introduziu[3]  num artigo  denominado "Building Blocks for Digital Market", em que disse que estamos no um mundo do e-commerce e digital, mas a nossa tecnologia para fazer acordos entre humanos ainda é baseado em papel, cuja tecnologia ainda é do século 15, ligado a Gutemberg. Dizia que era necessário um  novo método para fazer acordos, mais adaptável com os tempos da internet. Este novo método ele denominou smart contracts. É um acordo que pode ser feito com outra pessoa, cuja pretensão se não atendida vai ser executada exatamente como programada. Há a premissa de que o código será  executado conforme o combinado pelas partes.

O smart contract era somente uma ideia abstrata de  como poderiam ser os contratos no futuro. Contudo, em 2014 Vitalik Buterim  criou o ethereum, e a tornou real no mundo prático. A Ethereum é uma blockchain similar ao bitcoin, mas com a vantagem de ter uma  linguagem  mais sofisticada que possibilita fazer os smart contracts. Pode concretizar tudo o que for possível ser colocado numa estrutura de "if" e "them".

Na entrevista, Federico Ast dá o exemplo de que se colocar no contrato que se um avião atrasar 20 minutos o passageiro receberá um reembolso, verificado o atraso o passageiro será reembolsado. Isto traz muitas facilidades. O passageiro não precisará ir aos sistemas de ajuda aos clientes da empresa, ou ingressar com uma ação na justiça. Ele receberá  o pagamento, de forma autoexecutável, dentro do contrato. Essa nova realidade  é muito mais eficiente que a existente no mundo jurídico tradicional. O enforcement já vem embutido no contrato. A ideia do smart contract é forte e é global, não importa se você está no Brasil, na Argentina, ou na Suécia, e vai transformar processo legal em algo além do que podemos reconhecer e prever.

A Kleros vem para complementar este trabalho dos smart contracts, servindo como um oráculo em caso de situações que envolvam interpretações e subjetividades a serem resolvidas.

Os smart contracts são muito inteligentes para autoexecutar o que foi programado, mas existem situações, interpretações, coisas que são mais subjetivas,  pois código não compreende tudo. No caso por exemplo do avião se atrasar, o smart contract compreende somente que o avião atrasou vinte minutos, mas é incapaz de atestar que a aeronave teve um problema e se ela saísse aquele horário colocaria em risco a vida dos passageiros (um caso de força maior). Assim, entra em cena tecnologias como a da Kleros, pois existem transações entre humanos que só os humanos vão entender.

Acrescenta Federico que existe uma linha em que podem se encontrar três diferentes tipos de casos. Os primeiros — aqueles mais objetivos, repetitivos e estreitos — são os casos que poderão ser revolvidos por inteligência artificial, machine learning e métodos automatizados. Os segundos — que exigem certa  compreensão das circunstâncias e nuances em que os acordos foram entabulados — são aqueles que estão sujeitos a uma interpretação e análise subjetiva. E é para esses casos que a Kleros é importante, pois os jurados são humanos. E por fim, existem situações de disputas em que há necessidade de análise sofisticada de questões jurídicas, que exigem raciocínio jurídico. Por exemplo, quando a disputa envolver direitos indisponíveis, interesse público, com multiplicidade de partes por exemplo, ou questões jurídicas complexas e de impacto social. Estes casos não conseguirão ser resolvidos por meios de automação ou inteligência artificial e nem por plataformas em blockchain, mas somente pela Justiça tradicional estatal.

Por fim não se pode ficar de fora o tema do metaverso. Com diz Federico Ast as plataformas de ODR como a Kleros serão a justiça do metaverso.

O metaverso ainda é abstrato, muito vindo do mundo da ficção científica, livros e filmes com a ideia de que existem duas realidades, a dos humanos seres biológicos, que vivem no mundo físico e a do mundo digital, numa espécie de universo paralelo. A vida neste outro mundo imersivo já pode ser percebida no contexto da realidade virtual, mas também  há um tempo com o uso das redes sociais, que faz parte deste  mundo mesmo que ainda numa fase incipiente. É no ambiente destas redes que  as pessoas interagem, sob regras estabelecidas pelas próprias plataformas, cujas questões são decididas por critérios obscuros usados pelos seus moderadores (quando ocorre por exemplo quando o YouTube bane ou desmonetiza um dos seus usuários).  E não são questões sem importância que são julgadas por esses moderadores, pois um julgamento destes pode afetar a vida de uma pessoa que tenha seus rendimentos e vida profissional baseada numa destas redes (como por exemplo dependente de visualizações ou marketing). Estes julgamentos ocorrem numa espécie de  caixa preta (blackbox) em que os usuários não sabem as regras ou como interferir ou se defender nestes procedimentos. Este modo de decidir deixa claro o grande poder que as grandes empresas de tecnologia privadas exercem no mundo virtual. São como monarquias, pois podem criar as regras e julgar os casos, não tão diferente de  Luiz 14 na França, que fazia as leis e intervia nos julgamentos.

Portanto a ideia agora é construir meios mais democráticos. O objetivo da Web 3 é transformar essas grandes companhias em governanças mais democráticas, criando  espaço cooperativo dos usuários tanto na criação das leis como para resolver os conflitos.

Com a percepção  de que as pessoas passarão cada vez mais parte  do tempo das suas vidas no metaverso não faz e fará sentido  procurar  as cortes judiciais nacionais ou a  arbitragem tradicional para resolver os conflitos  neste mundo. O metaverso é uma realidade para o qual as instituições tradicionais não foram criadas muito menos preparadas. É um mundo sem fronteiras, sem soberania, e que a maioria dos casos pela não poderia, pela insignificância, ser resolvidos por um Tribunal Internacional tradicional, além do que os protagonistas no metaverso são representações de pessoas dificilmente identificáveis. A jurisdição do metaverso é outra, ao que tudo indica será a da justiça descentralizada.


[1] Entrevista concedida ao canal Arbitragem  para Andre Gascow Cardoso coordenada por  César Guimarães Pereira. Acesso em 08/03/2022:   https://www.youtube.com/watch?v=ZD1N76ywItU.

[2] Vide: SOARES, Marcos José Porto Soares. Uma Teoria para a Resolução Online de Disputas ( Online Dispute Resolution – ODR). Revista de Direito e Novas Tecnologias. Vol. 8 – Jul-Set/2020. São Paulo: Revista dos Tribunais. Thomson Reuters.  

[3] Szabo Nick Formalizing and Securing Relationships on Public Networks. https://perma.cc/EWU2-VM35:  Acesso em 08 de março de 2022

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