Opinião

Repercussões do desmembramento de PTA na tipicidade penal tributária

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17 de março de 2022, 11h27

Em que pese ser imperativa a constatação de certa predominância da chamada independência das instâncias penal e tributária, a mitigação desta orientação tem sido cada vez mais reconhecida, tanto pela literatura jurídica, quanto pela jurisprudência.

E não poderia ser diferente!

A própria edição da Súmula Vinculante 24 já relativizou a aludida independência entre as instâncias. E o fez ao consagrar a natureza jurídica de crime material dos tipos penais dos incisos I ao IV do artigo 1º da Lei 8.137/90 (Lei dos crimes contra a ordem tributária), em perfeita consonância com o artigo 83 da Lei 9.430/96, que já exigia o exaurimento da via administrativa e decorrente lançamento definitivo do crédito tributário para que fosse noticiada à acusação pública a configuração típica [1].

Note-se que a fragilidade da tese do caráter absoluto da independência entre as instâncias penal e tributária é evidenciada pela própria exigência de constituição definitiva do crédito para o preenchimento da justa causa para a oferta de denúncia penal, não deixando dúvidas de certa dependência da instância penal em relação à tributária.

Pois bem, é com a necessidade típica da exigibilidade do crédito que se anuncia o esgarçamento da tese de que as instâncias possuem independência absoluta!

Com efeito, em virtude da mitigação da independência entre as instâncias, possibilitou-se o reconhecimento de variadas barreiras de contenção da repressão penal tributária, de sorte a provocar significativas fissuras na orientação político-criminal anterior.

A título de ilustração, cite-se pleitos de: extinção da punibilidade pelo pagamento do débito; suspensão da pretensão punitiva estatal e decorrente ausência de justa causa para oferecimento da denúncia quando do parcelamento do débito tributário (artigo 83, §2º, da Lei 9.430/96); suspensão da ação penal por questão prejudicial heterogênea consistente em embargos à execução ou ação Anulatória de débito fiscal (artigo 93, CPP) etc.

Ora, afinal de contas, se até direito à expedição de Certidão Positiva com Efeito de Negativa o artigo 206 do CTN assegura em circunstâncias como o parcelamento do débito (artigo 151, VI, CTN), qual a razão de habilitar o poder punitivo? Em face de quem, de posse desta Certidão, poderia, inclusive, contratar com os órgãos públicos, obter financiamentos e, enfim, praticar quaisquer atos relativos à atividade empresarial? Nenhuma!

Não obstante, tem sido possível constatar práticas de administrações fazendárias consistentes no desmembramento de PTAs, cuja a exigibilidade do crédito tributário fora parcialmente suspensa por decisão judicial liminar (artigo 151, IV ou V, CTN).

A bem da verdade, referidas práticas fazendárias têm ocorrido em situações em que a autoridade judicial reconhece elementos para suspender tão somente parte do crédito do PTA (verbi gratia multas e juros), preservando a exigibilidade do restante. Daí que, visando executar a fatia do crédito exigível, algumas autoridades fazendárias têm  via de regra, sem assegurar contraditório e ampla defesa na via administrativa  desmembrado esta porção e instituído novo PTA para prosseguir com a execução fiscal.

Muito bem, eis a questão: quais as repercussões deste novo PTA, advindo do desmembramento, na tipicidade penal tributária? Poderia afastar a ausência de justa causa para fundar imputação de nova denúncia penal? Ou talvez, poderia revogar a suspensão da Ação Penal por questão prejudicial heterogênea do artigo 93, CPP?

Como se observa a questão da mitigação da independência das instâncias exerce posição central para aferição de eventual repercussão típica do desmembramento do PTA.

É que, como visto, a instância penal não possui plena autonomia em face da fiscal, sobretudo diante daquilo que Bitencourt (2016, p. 677) chamou de dupla tipicidade dos crimes tributários, ou seja, à evidência, a instância penal depende da configuração do tipicidade administrativa-tributária, inclusive com o lançamento definitivo do crédito na via administrativa (Súmula Vinculante 24).

A rigor, a figura do desmembramento do PTA, à luz das garantias do contraditório e da ampla defesa (artigo 5º, LV, CR/88), carece de legitimidade quando promovida inadvertidamente. É que, sem a devida reabertura de novo procedimento administrativo, ofertando ao contribuinte, na esfera administrativa, o contraditório e a ampla defesa, não há que se falar em lançamento definitivo do crédito.

E a questão não parece ser tão complexa quanto se declara, uma vez que o processo administrativo do PTA originário tinha o seu próprio espaço e tempo de discussão, soando desarrazoado, em matéria de Direito Público, enxertar aquele lançamento definitivo do crédito para o novo PTA, sobretudo diante da necessária prévia disponibilização de pagamento espontâneo antes da conclusão do processo administrativo.

Admitir o contrário é presumir a desonestidade do contribuinte, atitude institucional incompatível com o Estado de Direito!

Com efeito, o simples desmembramento do PTA não autoriza nem mesmo a advocacia pública à execução fiscal, conforme já acordado, à unanimidade, a Quinta Turma Suplementar do Tribunal Regional Federal da 1ª Região na APELAÇÃO CÍVEL  0044163-73.2005.4.01.3800 (2005.38.00.044768-6)/MG, de relatoria do Juiz convocado Wilson Alves de Souza, em  12 de março de 2013.

Quanto mais na esfera penal, que pressupõe, para a configuração típica, o lançamento definitivo do crédito.

Portanto, seja para fundar nova imputação penal, seja para revogar a suspensão da Ação Penal por questão prejudicial heterogênea (do artigo 93, CPP), o inadvertido desmembramento de PTA não há de promover qualquer repercussão na tipicidade penal tributária, uma vez que carente de exigibilidade o crédito fiscal.


[1] BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal econômico. Vol. 1. São Paulo: Saraiva, 2016, p. 747. WALKER JR., James; FRAGOSO, Alexandre. Direito Penal tributário: uma visão garantista da unicidade do injusto penal tributário. Belo Horizonte: Editora D’Plácido, 2017, p. 123.

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