Judiciário parcial pode quebrar a democracia, dizem especialistas
9 de março de 2022, 21h44
Um país que admite a atuação de juízes parciais não pode ser considerado uma democracia de fato, pois decisões enviesadas são o ponto de partida para a quebra das garantias previstas pela Constituição e pela legislação processual. E, partindo dessa premissa, a decisão do Supremo Tribunal Federal de declarar a suspeição do ex-juiz Sergio Moro nos processos que envolvem o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva pode ser um divisor de águas na Justiça e na opinião pública.
Essa foi a avaliação dos especialistas que participaram do evento online "Sem imparcialidade não há democracia!", transmitido no fim da tarde desta quarta (9/3) pela Conjur, e mediado pela advogada e ex-desembargadora do TRF-3 Cecília Mello.
Primeiro a discorrer sobre o tema do debate, Georges Abboud, advogado e professor de Direito Constitucional do IDP e de Processo Civil da PUC-SP, mostrou como a parcialidade do julgador pode prejudicar o sistema de Justiça e a própria democracia.
"Se um juiz é parcial, ele fatalmente não vai assegurar um contraditório efetivo, assim como não irá garantir a ampla defesa e não fará uma análise devidamente motivada do material probatório", explicou. "Ou seja, a imparcialidade do julgador é condição sine qua non para a produção de todas as demais garantias".
Segundo ele, o país "acordou" tarde para o problema da quebra da imparcialidade. "Nada obstante haver uma Constituição democrática desde 1988, o sistema é muito pouco accountable, pouco prestador de contas. Isso demonstra que acordamos muito tarde para um problema muito crônico. Não porque necessariamente há dolo na quebra da imparcialidade, mas porque, às vezes, admitimos uma atuação jurisdicional parcial sem sequer notarmos que ela está sendo parcial."
Ele explica que o sistema positivo de Direito no Brasil trata a quebra da imparcialidade dividindo-a em duas categorias: um rol subjetivo, da suspeição, e um rol objetivo, do impedimento. Mas Abboud chama a atenção para a existência de muitas outras formas de quebra da imparcialidade que não têm um "encaixe matemático" nas hipóteses previstas.
Na mesma linha, Marina Coelho Araújo, advogada, professora no Insper e presidente do IBCCrim, recorreu à doutrina ao afirmar que "a imparcialidade é da essência do Processo Penal, pois sem ela não há processo". Em seguida, deu exemplos de como a legislação concretiza a exigência de isenção por parte do julgador.
"Três artigos tratam disso: primeiro os artigos 252 e 254 do Código de Processo Penal, que trazem hipóteses de impedimento e de suspeição, respectivamente. E há ainda o artigo 145 do Código de Processo Civil, que também trata de suspeição". Segundo ela, esses dispositivos trazem hipóteses genéricas de interesse no julgamento pelo juiz e que complementam o sistema jurídico processual penal após a Constituição de 1988.
Ela destacou, porém, que os advogados frequentemente se deparam com dificuldades na hora de apontar problemas relacionados à isenção do juiz. "As hipóteses de suspeição e impedimento que dificultam nosso trabalho são aquelas caracterizadas pela soma dos atos realizados que não acontecem de forma ilícita, mas que, no seu conjunto, mostram o bias, o viés do juiz", observou a advogada.
Ela diz que é difícil consolidar as hipóteses de suspeição e entendimento, cujo rol já foi ampliado, mas que não é necessária mudança legislativa para isso: é preciso desenvolver critérios racionais para delimitar esses critérios. A situação atual, prossegue, "nos fragiliza diante de situações de juízes que, muito inteligentemente, proferem decisões lícitas e legítimas e vão colacionando decisões parciais ao longo do processo".
Constrangimento
Sobre a questão dos obstáculos enfrentados pelos advogados, Alberto Zacharias Toron, advogado, professor de Direito Penal (Faap) e ex-secretário-geral do Conselho Federal da OAB, acrescentou que a defesa também pode se ver constrangida por outro fator na hora de questionar a conduta do juiz.
"Mesmo identificando uma hipótese de parcialidade, o advogado muitas vezes não argui o magistrado, porque ele teme pela sorte do seu cliente, quando não pela sua própria sorte. Pense numa cidade do interior que só tenha um juiz", disse o criminalista.
Questionado sobre um eventual legado positivo do reconhecimento feito pelo STF da atuação parcial do ex-juiz Sergio Moro no julgamento do ex-presidente Lula, Toron relativizou o caso, mas se mostrou otimista.
"O Habeas Corpus concedido em favor do presidente Lula é um marco para a democracia no país e reafirma o caráter contramajoritário do STF. Não acaba com a postura defensiva do Judiciário, mas permite avançar", afirmou ele.
Toron destacou, ainda, com alguns exemplos, a existência de uma cultura de resistência ao reconhecimento da suspeição. "As associações reagem, a imprensa reage." Ele destacou o julgamento do HC que definiu que o réu delatado deve sempre ser ouvido depois do réu delator, que a imprensa tratou como "filigrana jurídica", mas é na verdade um predicado que determina a própria efetividade da justiça.
Lenio Streck, advogado, professor da pós-graduação em Direito da UniSinos e ex-procurador de Justiça, lembrou também de outros casos que mostram como a imprensa "dá existência a coisas que não existem", como o julgamento das ADCs 43, 44 e 54, que reiterou a previsão constitucional que veda a prisão automática após o julgamento em segunda instância.
"Nesse caso, o [jornalista] Merval Pereira, na véspera do julgamento, disse que, se o Supremo julgasse desse modo, soltaria 190 mil estupradores, ladrões, proxenetas, etc. Isto é uma mentira! Só que já estava posto. Já tinha sido dada existência a coisas que não existem", exemplificou.
Streck defendeu que a comunidade jurídica precisa se desdobrar mais sobre as questões de parcialidade. "Veja quanto tempo nós levamos para conseguir demonstrar uma coisa óbvia, que não basta o juiz ser imparcial, ele deve parecer imparcial. O Tribunal Europeu dos Direitos Humanos já tinha percebido isso há muito tempo."
Ele disse acreditar que as mudanças só virão de forma efetiva se os juristas atuarem para "constranger", com base na doutrina, os adeptos da parcialidade. "Quando a doutrina não constrange — e nós fizemos isso na suspeição do Sergio Moro — o Direito degenera — veja o exemplo dos nazistas", concluiu o professor.
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