A injustiça epistêmica está oficialmente em pauta
4 de março de 2022, 12h36
No final do ano passado, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) tomou uma decisão de vanguarda. No julgamento do AgResp 1.940.381/AL, sob a relatoria do ministro Ribeiro Dantas, ficaram assentados, de uma só vez, três precedentes inovadores para o processo penal brasileiro[1]: primeiro, sobre a teoria da perda de uma chance probatória, tese desenvolvida entre nós por Alexandre Morais da Rosa e Fernanda Mambrini Rudolfo e já discutido nesta coluna; segundo, sobre o valor probatório do testemunho por ouvir dizer (Hearsay), tema largamente discutido na common law e que também já foi abordado por Aury Lopes Jr. neste espaço; e, terceiro, sobre a ocorrência de injustiça epistêmica, cujas modalidades e características temos discutido há algum tempo em artigos nesta coluna (aqui, aqui, aqui, aqui e aqui), eventos acadêmicos (aqui, aqui, aqui, aqui) e podcasts (aqui e aqui).
A menção expressa ao conceito de injustiça epistêmica na ementa do acórdão, contudo, até o momento não foi objeto de detida análise pela comunidade jurídica. Isso talvez se justifique porque o próprio STJ propôs como teses apenas os dois primeiros precedentes acima — sobre perda de uma chance probatória e ouvir dizer. A própria ConJur, em seu comentário à decisão, ressaltou somente as duas primeiras teses. É assim oportuno que iniciemos nossas contribuições para a coluna Limite Penal no ano de 2022, com mais um artigo dedicado às injustiças epistêmicas.
Vejamos o que diz a ementa:
"7. Mesmo sem a produção de nenhuma prova direta sobre os fatos por parte da acusação, a tese da legítima defesa apresentada pelo réu foi ignorada. Evidente injustiça epistêmica — cometida contra um jovem pobre, em situação de rua, sem educação formal e que se tornou pai na adolescência —, pela simples desconsideração da narrativa do apresentado". (grifamos)
O Agravo foi contra decisão do Tribunal de Justiça de Alagoas, que não admitiu recurso especial interposto pela defesa em face da manutenção da condenação de M B B. O réu havia sido condenado por ato infracional equiparável à tentativa de homicídio. No que diz respeito à injustiça epistêmica, objeto de nossa consideração aqui, para o relator do caso, ministro Ribeiro Dantas, esta teria ocorrido, de forma "evidente", porque o réu não teve a sua narrativa considerada pelas autoridades. M M B era menor de idade, morador de rua, dependente químico, sem educação formal — ou seja, um conjunto perfeito de marcadores identitários aptos para gerar injustiças epistêmicas sistemáticas.
O ponto é que M M B não encontrou operadores jurídicos dispostos a lhe proverem a atenção devida à sua versão do ocorrido. Desde a fase do inquérito policial até a decisão condenatória em segunda instância, em distintas etapas processuais, foi-lhe negada qualquer oportunidade de contribuir à determinação dos fatos a partir de sua perspectiva. Sua condição de sujeito epistêmico, capaz de fornecer informações sobre os fatos do caso, foi ignorada. Não que a versão do réu merecesse qualquer sorte de "superioridade epistêmica", mas ela tampouco deveria ter sido de pronto descartada por quem tinha o encargo institucional de demonstrar os fatos presentes na acusação formulada. E nesse ponto, importa frisar que a alegação do réu de que agira em legítima defesa cria para a acusação o encargo de refutá-la. Isso não apenas não foi feito sob a perspectiva do ônus probatório, como tampouco serviu para fragilizar a tese acusatória aos olhos do julgador. Ao contrário, foi francamente desconsiderada como hipótese alternativa àquela sustentada pelos órgãos encarregados da persecução penal.
O tratamento institucional dispensado ao recorrente prejudicou a qualidade do conjunto probatório, que bem poderia ter sido mais robusto e sólido à medida que a atividade probatória tivesse de fato sido guiada pelo genuíno esforço em ver refutada ou corroborada a tese da legítima defesa. Definitivamente, o risco de se contribuir à condenação injusta de alguém por uma conduta que não praticou passou longe de representar uma real preocupação dos que atuaram no processo.
Por esta razão, é inovadora e apropriada a referência, na ementa e no corpo da decisão no AgResp 1.940.381/AL, ao conceito de injustiça epistêmica. Este é um conceito desenvolvido pela filósofa Miranda Fricker há mais de uma década. Na verdade, o desenvolvimento do conceito se deve às pesquisas por ela efetuadas durante seus estudos doutorais. Em 2007, Fricker publicou Epistemic Injustice: Power and the Ethics of Knowing, o livro que inaugurou uma nova subárea de pesquisa na Epistemologia Social. A Epistemologia Social é uma área da filosofia contemporânea que se dedica a teorizar sobre os modos através dos quais, nos mais variados contextos da vida em sociedade, os sujeitos produzem/alcançam o conhecimento, justificam suas crenças, formulam critérios para as afirmações de verdade que fazem etc. Neste sentido, o ambiente dos tribunais é apenas um dentre os diversos contextos sociais nos quais as transações epistêmicas injustas chamam a atenção da autora.
No primeiro capítulo do seu livro, Fricker considera a injustiça epistêmica do tipo testemunhal sofrida por Tom Robinson, personagem do conhecido romance de Harper Lee, To Kill a Mockingbird. Tom é um homem negro injustamente acusado de ter estuprado a jovem branca Mayella Ewell; e os jurados do caso, por preconceito racial, e não obstante a prova de inocência produzida pelo advogado de defesa, negam a credibilidade que era devida à sua versão. Mas os casos de injustiça epistêmica trabalhados por Fricker vão muito além da dimensão judicial.
Por exemplo, para explorar a injustiça testemunhal de que uma mulher (na posição de falante) pode ser vítima em razão de um preconceito de gênero, Fricker recorre ao filme "O Talentoso Ripley". Naquela história, o dissimulado Tom Ripley assassina o melhor amigo, Dickie Greenleaf, assume a sua identidade e continua a conviver com seus familiares, mantendo-os enganados e manipulados. A certo ponto da trama, Marge Sherwood, namorada de Dickie, conta para o sogro, Herbert Greenleaf, a suspeita que nutre de que Ripley tenha matado o seu amado. Herbert apressadamente descarta o relato de Marge por considerá-la histérica e irracional, a despeito dos indícios contra Ripley enumerados por ela: a obsessão de Ripley por Dickie; o anel que Dickie jurara a Marge que nunca tiraria, mas que ela encontra nas coisas de Ripley; a nada plausível hipótese levantada por Ripley de que Dickie teria se suicidado, etc. Os estereótipos machistas — disponíveis nos anos 50 em que a história se passa e que, infelizmente, ainda estão entre nós — foram a base da redução da credibilidade de Marge por parte de Herbert. Daí a famosa passagem que retrata a descaracterização de Marge como um sujeito epistêmico, capaz de contribuir com uma versão racional da realidade: "Marge, existe a intuição feminina e existem os fatos" (Fricker, 2007, p. 88).
O que queremos dizer é o seguinte: embora Fricker tenha explorado exemplos do cenário judicial, este não foi o campo de aplicação do conceito de injustiça epistêmica exclusivamente mirado pela autora. Contudo, não é difícil vislumbrar que as práticas jurídico-epistêmicas que se dão no decorrer de um processo criminal são de especial interesse para o estudo das injustiças epistêmicas. É o que temos defendido em nossos trabalhos.
Foi pensando nisso que Janaina Matida, uma das autoras do texto de hoje, ao idealizar um curso para a Defensoria Pública (parceria IDDD e Anadep) em 2021, não deixou de fora o tema da injustiça epistêmica, tendo convidado, de forma inédita no país, a própria Miranda Fricker para uma das aulas, que versou sobre "Presunção de inocência, injustiça epistêmica e responsabilidade por preconceitos implícitos". Ainda em 2021, o tema foi objeto de disciplina eletiva ofertada por Rachel Herdy, que também subscreve este texto, em conjunto com Fábio Shecaira, no âmbito do Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Tanto a expressiva receptividade entre defensores públicos de todas as partes do Brasil, que participaram ativamente das discussões, quanto o grande interesse de mestrandos e doutorandos do país[2] são fortes indicativos do potencial explicativo desta categoria para a Justiça criminal brasileira. Não surpreende, portanto, que a discussão tenha sido rapidamente apropriada em decisão recente do STJ.
Os estudos sobre injustiça epistêmica, contudo, vão além das ideias de Fricker. Se voltarmos ao AgResp 1.940.381/AL, sob as lentes de interlocutores que também têm significativamente contribuído para a discussão[3], podemos fazer uma crítica construtiva ao acórdão. De fato, foi praticada injustiça epistêmica testemunhal contra o réu M B B – mas não só contra ele. Houve injustiça epistêmica testemunhal contra todos aqueles que não foram ouvidos pelos mesmos preconceitos identitários, dado que tal como o recorrente, as demais testemunhas e mesmo a própria vítima estavam em situação de rua. E mais: se aplicarmos uma visão holística, como a proposta por José Medina e Jennifer Lackey, chegaremos à conclusão de que houve também injustiça epistêmica por excesso de credibilidade dado às palavras do policial militar e do bombeiro, que só resignaram-se a repetir o que "ouviram dizer" de "populares". Se, por um lado, as partes envolvidas ou testemunhas do fato tiveram, uma a uma, sua condição de sujeitos epistêmicos desconsiderada, por outro, o policial e o bombeiro que chegaram depois contaram com uma generosa atribuição de credibilidade, pois o que relataram por ouvir dizer foi automaticamente considerado verdadeiro, sem que se tenham envidados quaisquer esforços para se identificar estes "populares" e ouvi-los diretamente.
Na linguagem da Epistemologia da Virtudes que Fricker trabalha, agentes epistemicamente virtuosos — isto é, agentes efetivamente preocupados em se desviarem de transações epistemicamente injustas — estariam dispostos a ouvir todos os sujeitos primeiro e, só depois, analisar as razões oferecidas, de modo a poder atribuir a credibilidade devida a cada um. Agentes epistemicamente virtuosos não investigariam, denunciariam ou julgariam com base em apressada visão de túnel. Finalmente, agentes epistemicamente virtuosos não cairiam na perigosa armadilha cognitiva de se verem seduzidos pelo excesso de credibilidade que presenteiam a si mesmos, a partir da equivocada compreensão de que a experiência acumulada ao longo dos anos outorgou infalibilidade às suas percepções (o "feeling"). Ao contrário, é justamente a resistência à tentação de se orientar por um suposto feeling na determinação dos fatos que caracteriza uma atitude epistemicamente virtuosa. Significa reconhecer que a minimização de injustiças epistêmicas é componente fundamental para assegurar uma valoração racional da prova. O raciocínio que determina os fatos deve se dar a partir de argumentos probatórios racionais, e não com base em estereótipos e generalizações espúrias.
Justamente para dar visibilidade aos efeitos causados pela multiplicidade de estereótipos e generalizações carentes de respaldo empírico que perversamente podem invadir o interior de um mesmo processo cognitivo, convém atentar à distribuição de credibilidade considerando todos os sujeitos envolvidos, todas as transações epistêmicas. Em resumidas linhas, quando nos fechamos à possibilidade de reconhecer a credibilidade de uma pessoa, é bem provável que estejamos, na outra ponta, conferindo credibilidade em excesso a quem, naquela situação e naquelas circunstâncias específicas, pouco ou nada contribua com informações relevantes para a determinação do que realmente ocorreu.
Portanto, ao invés de analisar isoladamente as transações entre um ouvinte e um falante, é importante examinar holisticamente todas as transações epistêmicas. No julgado que trouxemos à análise, além das transações epistêmicas que envolveram o recorrente, os investigadores, juízes e promotores, também teria sido frutífero explorar as transações epistêmicas relativas às testemunhas e à vítima, que sequer foram ouvidas, bem como aquelas relativas ao policial e ao bombeiro. O mapeamento das distribuições injustas de credibilidade a partir de um olhar mais atento é um passo importante para conhecer mais profundamente o sistema de justiça que temos e, com isso, sermos capazes de desenvolver estratégias para o combate efetivo de negligências inaceitáveis que podem levar a erros judiciais.
Movidas por este ânimo, daremos continuidade ao debate das injustiças epistêmicas no workshop "Injusticia Epistémica en el contexto probatorio", atividade que está sob a nossa coordenação e que integra a programação da Michelle Taruffo Girona Evidence Week, promovida pela Universitat de Girona (23 e 27 de maio). Concluída a lista de propostas aprovadas ontem (3/3), podemos compartilhar nosso entusiasmo diante da oportunidade de troca de experiências com pesquisadores e profissionais de distintos sistemas jurídicos. O Workshop reunirá um grupo de pesquisadores engajados com a (re)fundação de um sistema de justiça criminal a partir de bases garantistas, comprometidas com a busca pela verdade e a não-discriminação.
A injustiça epistêmica está oficialmente em pauta! O STJ rapidamente reconheceu uma categoria cuja relevância jurídica temos enfatizado em artigos desta coluna e em muitos espaços acadêmicos. Esperamos que a categoria da injustiça epistêmica continue a encontrar adesão no mundo jurídico e possa ser explorada em toda a sua potencialidade para a erradicação de todos os preconceitos identitários que invadem a justiça criminal brasileira. Fica a nossa dica, em tempestiva homenagem ao 8 de março, Dia Internacional da Mulher.
[1] Uma explicação técnica: uma decisão pode trazer um, vários ou nenhum precedente; e um único precedente pode se manifestar em mais de uma decisão. Neste caso, identificamos a presença de três precedentes inovadores na ementa do acórdão – embora, como vamos ver, apenas dois foram transformados em tese.
[2] Vale mencionar a recente defesa da dissertação de mestrado de Sérgio Rodas, sob orientação da professora Rachel Herdy, intitulada "A prática de injustiça epistêmica por atribuição de excesso de credibilidade a colaboradores premiados". Tratou-se de uma dissertação inovadora, que busca aplicar o conceito de injustiça epistêmica por excesso de credibilidade — ideia desenvolvida por José Medina e Jennifer Lackey, em resposta crítica às contribuições de Fricker — no contexto de aplicação do instituto da colaboração premiada. Também é relevante mencionar a tese de doutorado igualmente inédita, de Carolina Castelliano, já qualificada e em fase de elaboração, também sob a orientação da professora Rachel Herdy, sobre o tema da injustiça hermenêutica, uma das modalidades de injustiça epistêmica ainda pouco discutida na área do Direito.
[3] MEDINA, José. "The relevance of credibility excess in a proportional view of epistemic injustice: Differential epistemic authority and the social imaginary", Social Epistemology, 25, 11-35, 2011; e LACKEY, Jennifer. "Credibility and the Distribution of Epistemic Goods", In Believing in Accordance with the Evidence (ed. K McCain, Synthese Library 398, 2018.
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