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Consultor Jurídico

Miziara: O que se pode esperar de Ketanji Jackson na Suprema Corte?

1 de março de 2022, 6h03

Por Raphael Miziara

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"One of our nation's brightest legal minds", afirmou o democrata Joe Biden ao se referir a Ketanji Brown Jackson, indicada por ele para a Suprema Corte americana na vaga do justice Stephen G. Breyer, que anunciou sua aposentadoria. Com isso, Biden cumpre sua promessa de campanha em nomear uma mulher afrodescendente para a Scotus.

Caso a nomeação seja aprovada pelo Senado, Jackson se tornará a primeira mulher preta a ocupar a posição de justice na Suprema Corte americana. Além disso, será apenas a terceiro pessoa afroamericana nos 233 anos de história da Suprema Corte e, pela primeira vez na história, haverá quase paridade na composição do tribunal, com cinco homens e quatro mulheres. Em 2009, havia apenas uma mulher. Outro ponto interessante é perceber, caso Jackson assuma o cargo, todos os justices nomeados pelos presidentes democratas serão mulheres.

A indicada, que tem 51 anos de idade, se formou na faculdade de Direito de Harvard e possui inclinações liberais. De todo modo, sua confirmação não irá alterar o equilíbrio ideológico do tribunal, pois os conservadores indicados pelos republicanos manteriam sua forte maioria de 6 a 3.

Durante sua carreira, Jackson atuou como juíza de primeira instância em Washington por oito anos até que, no ano passado, foi indicada por Biden ao importante Tribunal de Apelações dos EUA para o Circuito de DC. Seu nome foi aprovado para a Corte de Apelações no Distrito de Columbia, onde atualmente atua, após uma audiência relativamente incontroversa no Senado e com o apoio de três congressistas republicanos.

Durante o procedimento de confirmação, quando uma senadora republicana perguntou se ela estava preocupada que seu trabalho como defensora pública pudesse colocar criminosos violentos de volta nas ruas, ela respondeu que ter esse histórico era uma vantagem.

Disse que "ter advogados que podem deixar de lado suas próprias crenças pessoais sobre o suposto comportamento de seu cliente ou a propensão de seu cliente a cometer crimes beneficia todas as pessoas nos Estados Unidos, pois isso incentiva o governo a investigar acusações de forma minuciosa e para proteger os direitos do acusado durante o processo de justiça criminal".

Também em sua audiência de confirmação para Circuito de DC, Jackson se comprometeu a ser uma juíza neutra e imparcial em resposta às perguntas dos republicanos. Afirmou saber "muito bem quais são minhas obrigações, quais são meus deveres, não governar com vantagem partidária em mente, não adaptar ou elaborar minhas decisões para tentar ganhar influência ou fazer algo do tipo". Disse ainda: "Não faz diferença se o argumento vem ou não de um preso no corredor da morte ou do presidente dos Estados Unidos".

A juíza já atuou como defensora pública, algo raro entre os candidatos à Suprema Corte. De todo modo, esse foi um fator que pesou na decisão de Biden, que atuou brevemente como defensor público no início de sua carreira. Ela pode se tornar também a primeira juíza, desde Thurgood Marshall, com experiência significativa como advogada de defesa criminal.

Entre as suas principais decisões no Tribunal Distrital está a que bloqueou as tentativas do governo Trump de acelerar deportações, cortar concessões para prevenção de gravidez na adolescência e impedir um ex-advogado da Casa Branca de testemunhar perante o Congresso sobre os esforços do presidente Donald J. Trump para obstruir as investigações da influência da Rússia nas eleições americanas.

No caso Committee on the Judiciary v. McGahn, Jackson rejeitou a alegação do Departamento de Justiça de que os tribunais federais não têm competência sobre disputas entre o Poder Executivo e o Congresso e suas intimações, bem como sobre argumento de que o presidente tem autoridade exclusiva para decidir se ele e seus assessores cumprirão intimações para testemunhar sobre possíveis irregularidades em sua administração.

Na decisão constou que "a principal conclusão dos últimos 250 anos de história americana registrada é que os presidentes não são reis. Eles não têm súditos, ligados por lealdade ou sangue, cujo destino eles têm o direito de controlar". No caso, Donald F. McGahn, ex-assessor da Casa Branca, acabou tendo que obedecer a intimação do Congresso em busca de seu testemunho sobre o caso russo.

Em 2015, Jackson decidiu um caso no qual empregados da prisão no Distrito de Columbia haviam discriminado William Pierce, um surdo que cumpria uma sentença de 51 dias por agressão. A decisão se baseou no fundamento de que nunca se tentou determinar quais adaptações seriam necessárias para que o preso pudesse se comunicar com os outros e porque, em grande parte, se ignoraram seus repetidos pedidos de um intérprete.

Em outubro de 2018, Jackson emitiu uma importante decisão a favor do território norte-americano de Guam em uma disputa com a Marinha dos EUA. A Marinha havia criado um aterro na ilha que era usado para o descarte de munições e produtos químicos. Como a poluição do aterro estava contaminando um rio próximo, o governo de Guam fez um acordo com a Agência de Proteção Ambiental para fechá-lo e limpá-lo. A limpeza foi cara, então Guam foi à Justiça federal, pedindo ajuda da Marinha para recuperar parte dos custos — que podem chegar a US$ 160 milhões.

O governo federal pediu a Jackson que arquivasse o caso, argumentando que Guam só poderia buscar dinheiro do governo sob uma disposição da Lei de Resposta, Compensação e Responsabilidade Ambiental Abrangente, e era tarde demais para fazê-lo. Jackson rejeitou o argumento do governo federal, permitindo que o caso avançasse.

Em recurso, o Circuito de D.C. rejeitou o caso, embora reconhecendo que tal resultado foi "duro". Guam foi ao Supremo Tribunal, que concedeu revisão e em maio de 2021 reverteu por unanimidade essa decisão, restabelecendo o processo da ilha.

Já em abril de 2018, Jackson decidiu contra o governo Trump em uma ação movida pelo sindicato dos servidores públicos federais que contestava três ordens executivas do presidente sobre os direitos de negociação coletiva dos servidores públicos federais. Os sindicatos argumentaram que as ordens excediam os poderes do presidente e conflitavam tanto com as leis trabalhistas federais, quanto com os direitos constitucionais dos funcionários. No caso, Jackson decidiu em favor do sindicato e fundamentou que as "diretivas de Trump minam o direito dos funcionários federais de negociar coletivamente conforme protegido pela lei federal".

Mas, ela também já decidiu a favor do governo Trump. No Center for Biological Diversity v. McAleenan, na qual se questionava um ato do Departamento de Segurança Interna relacionado à construção do muro na fronteira com o México. Um grupo ambientalista argumentava que o ato excedia o poder da agência e causaria danos ambientais. Jackson, em razão de um aspecto processual, rejeitou a pretensão do grupo, ao argumento de que os tribunais federais não têm poder para considerar as reivindicações não constitucionais do grupo, decisão posteriormente confirmada pela Suprema Corte americana.

Como se nota, seu pouco tempo atuação perante a Corte de Apelações não foi o suficiente para definir claramente seu perfil em temas sensíveis, até porque o Circuito de DC julga mais casos relacionados ao Direito Administrativo. Mas, em razão de suas manifestações extra autos, pode-se afirmar que ela provavelmente votará com os liberais nas questões mais controversas enfrentadas pela Suprema Corte, como por exemplo ações afirmativas, aborto, proteções LGBTQ e direitos de armas, embora esteja substituindo outro liberal mais de 30 anos mais velho que ela.

Historicamente, a diversidade (ou não) da composição da Suprema Corte americana deu forma à sociedade americana. Em regra, homens brancos decidem os direitos básicos dos americanos há séculos, mas a possível nova formação da corte, mais diversa e representativa, poderá influenciar significativamente a decisão de temas mais sensíveis à sociedade em geral.