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Bissoto Júnior: ANPC: um prognóstico de (in)efetividade

1 de março de 2022, 7h13

Por Nelson Bissoto Júnior

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Acompanhando o novo marco paradigmático das recentes inovações legislativas, as soluções consensuais de conflito foram, enfim, expressamente incorporadas à Lei de Improbidade Administrativa. Guiadas pelos princípios da cooperação e da dialogicidade, cuja força normativa adquiriu inegável preponderância, sobretudo após o advento do Código de Processo Civil de 2015, engendrou-se o acordo de não persecução civil, de natureza negociada. Cuida-se, induvidosamente, de importante evolução legislativa com aptidão para impactar intensamente o atual estado de coisas no que se refere à tutela do patrimônio público e da moralidade administrativa.

Longe de pretender efetuar um juízo de futurologia, buscaremos traçar neste espaço, brevemente, os prováveis rumos pelos quais se enveredará o acordo de não persecução civil após o advento do marco legal instituído pela Lei nº 14.230/21.

No afã de colaborar com o aperfeiçoamento do instituto, com o devido respeito aos que pensam em contrário, torna-se lícito sustentar que o ANPC ostenta natureza de negócio jurídico bilateral personalíssimo, formalizado por intermédio de instrumento escrito na fase extrajudicial ou judicial, cuja pactuação é realizada diretamente entre o Ministério Público e o(s) sujeito(s) ativo(s) do ato ímprobo, devidamente assistido(s) por defensor(es), com participação e prévia oitiva do ente federativo lesado e, a posteriori, submissão ao crivo jurisdicional para fins de controle de legalidade e homologação, além de, eventualmente, ao órgão do Parquet responsável para apreciar as promoções de arquivamento de inquéritos civis, se entabulado anteriormente ao ajuizamento da ação (artigo 17-B da Lei nº 8.429/92).

Com efeito, a resistência legislativa à matéria era incompreensível sob o prisma acadêmico. Em doutrina, a autocomposição na seara dos direitos difusos e coletivos, a par de sua indisponibilidade, já era defendida de longa data por abalizados estudos científicos, por meio dos quais se desenvolveram fartas e profícuas teses acerca da temática, consoante se depreende dos valorosos ensinamentos enunciados por Rogério Pacheco Alves [1], Fredie Didier e Hermes Zaneti [2], Wallace Paiva Martins [3] e Marino Pazzaglini Filho [4].

O turning point na seara da tutela do patrimônio público, parece-nos, ganhou fôlego intenso notadamente a partir da promulgação de sucessivas legislações ordinárias cujo desiderato consistiu precipuamente no combate à corrupção, originando, aí, sim, um microssistema específico da tutela coletiva de proteção ao patrimônio público. Cita-se, a esse propósito, a Lei Anticorrupção Empresarial (Lei nº 12.846/13), a Lei de Crimes Organizados (Lei nº 12.850/13), a Lei de Mediação, estendendo-a aos conflitos no âmbito da Administração Pública (Lei nº 13.140/15) e, finalmente, o próprio Código de Processo Civil, fundado em arcabouço principiológico de fomento à autocomposição e consequente desvinculação normativa dos meios consensuais de resolução de conflitos à natureza exclusivamente disponível do Direito litigioso [5].

A imprescindibilidade da existência do acordo de não persecução civil também se explica por razões metajurídicas. Com efeito, numa sociedade massificada na qual a rapidez do fluxo de informações é a tônica dos relacionamentos humanos, produto da vida líquida — conforme expressão cunhada pelo sociólogo Zygmunt Bauman [6] —, é intuitivo supor que o anacronismo da heterocomposição pelo monopólio da jurisdição estatal não seria mais suficiente para, sozinho, dar vazão aos infindáveis litígios sobre os mais variados temas que são submetidos à sua apreciação. As "medidas alternativas", terminologia aqui empregada na acepção de que não eram tradicionalmente estimuladas — e aqui se inserem as de cunho consensual —, parecem trazer inequívoca racionalidade ao sistema de Justiça, dando azo à construção de novos caminhos resolutivos.

Ou melhor: o conceito de justiça efetiva não coincide com acesso ilimitado e incondicionado ao Poder Judiciário por via de mão única, antes pressupõe a racionalidade do sistema e capacidade de enfrentamento analítico dos conflitos de interesses postos sob apreciação.

Nesse contexto, o sistema de Justiça multiportas contribui decisivamente para o desenho de uma nova política institucional, à luz da pós-modernidade, marcada pela resolutividade, pela prevenção e pelo respeito aos direitos e garantias fundamentais, traçando tendência de difícil superação ou retrocesso [7].

É bem verdade que sob a égide do paradigma normativo anterior, vale dizer, em momento anterior à edição da Lei nº 14.230/21, o acordo de não persecução cível delineado pelo pacote "anticrime" (Lei nº 13.964/19), conquanto não enunciasse de maneira expressa as regras procedimentais para sua aplicabilidade [8], parecia a panaceia para todos os males, mormente porque trazia consigo ideia latente que desmitificava o consenso geral — e equivocado — segundo o qual a indisponibilidade do patrimônio público tornaria juridicamente impossível a resolução da controvérsia por soluções negociadas [9].

Insista-se: o arquétipo legislativo então vigente reforçava a potencialidade do instrumento, cujo desenvolvimento se daria num contexto jurisprudencial sólido e uniforme acerca da interpretação dos dispositivos legais da Lei nº 8.429/92.

Os dados estatísticos relativamente às ações de improbidade administrativas ajuizadas até meados de 2015, compilados pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) [10], não nos deixa mentir.

Não que o regime delineado pelo sistema normativo anterior fosse absolutamente imune a críticas. É inegável, porém, que as condutas desonestas eram objeto de efetiva investigação pelos órgãos de controle competentes e, invariavelmente, resultavam em condenações de agentes públicos e privados que malversavam recursos públicos e violavam os princípios que norteiam a Administração Pública. Havia, pois, relativa previsibilidade jurídica, sobretudo no âmbito jurisprudencial, que afiançava a legitimidade dos instrumentos legais e processuais disponíveis àquela altura.

É justamente esse diagnóstico empírico de outrora, lastreado que estava em bases teóricas sólidas construídas ao longo das últimas décadas, que nos permite conjecturar com aquilo que, doravante, poderá emergir. Nossa leitura é, por óbvio, idiossincrática, mas certamente encontrará ressonância em outros tantos que se dispõem a enfrentar a temática.

E, consentâneo com tais premissas, o prognóstico, à luz das novas mudanças legislativas, não pode ser benfazejo ao acordo de não persecução civil, tal como não o é ao combate à corrupção e outros malfeitos praticados na Administração Pública.

Obviamente que a análise do ANPC não pode ser realizada de maneira descolada do novo marco legal no qual está inserido. Sob esse prisma, a efetividade desse instrumento negocial pressupõe, logicamente, a segurança jurídica do regime legal como um todo.

Nesse sentido, o desmonte legislativo que foi promovido na Lei de Improbidade Administrativa, especificamente no que toca ao regime sancionatório — se cotejado com a normativa agora revogada —, desestimula a via consensual, para além de gerar descrédito ao sistema de justiça.

Parece sintomático, então, que a crença na impunidade será nefasta ao ANPC, principalmente devido à incontestável mitigação do regime legal para a responsabilização dos sujeitos ímprobos. As discussões que virão acerca da interpretação dos novos dispositivos legais, nesse passo, tendem a arrefecer a escolha pela consensualidade nessa seara, cuja utilização — dependente que é de ato de vontade convergente dos atores envolvidos — encontra melhor estímulo para desenvolvimento num cenário de certeza jurídica mais sólido.

Com efeito, em obra publicada no ano de 2006, o renomado jurista Hugo Nigro Mazzilli vaticinara, in verbis:

"Liberto progressivamente das amarras que lhe impunham os governantes, o novo Ministério Público, nascido da Constituição de 1988, passou a trabalhar como nunca, e sua legitimação nessa área tanto funciona, que, até perigosamente demais para a própria instituição, ela e seus membros passaram a ficar mais expostos, atraindo a ira dos administradores, dos políticos e dos grandes empresários. O Ministério Público brasileiro está hoje começando a incomodar efetivamente autoridades, empresários e poderosos de todos os tipos, que na história toda deste país jamais estiveram expostos nem tiveram suas responsabilidades públicas cobradas na prática. Está o Ministério Público moderno bulindo em área na qual não sabemos ainda se foi de fato convidado a bulir, nem sabemos se já tem forças reais para fazê-lo" [11].

Trago à colação, numa palavra final, a advertência manifestada por caricato personagem do escritor Eça de Queiroz, em "O Primo Basílio" — sempre rememorada pelo festejado professor Lenio Streck nesta revista eletrônica: "As consequências vêm sempre depois, nunca antes". São, decerto, inexoráveis.

Daí por que ganha notória relevância o papel a ser desempenhado pela jurisprudência pátria, sobretudo pelos tribunais superiores, cuja difícil missão consistirá na realização, o quanto antes, da necessária filtragem constitucional e legal das alterações trazidas pela Lei nº 14.230/21, de modo a evitar retrocessos invencíveis na seara da improbidade administrativa, inclusive com vistas a não esmorecer a eficácia do acordo de não persecução civil.

Oxalá estejamos todos prontos para o porvir!

 


[1] "As vantagens para a sociedade são evidentes, pois a reparação do dano encontrará rápida solução, evitando-se moroso e custoso processo. Também para o agente a submissão aos termos da transação apresentará vantagens, uma vez que, cumprindo o avençado, restará afastada a possibilidade de aplicação das graves sanções de perda da função pública e suspensão dos direitos políticos, evitando-se, outrossim, os constrangimentos naturalmente decorrentes do processo. […] De outro lado, se evitaria a incongruência de conferir-se à mesma conduta um tratamento no âmbito no cível muito mais duro do que o verificado no âmbito no criminal, garantindo-se maior harmonia ao sistema" (GARCIA, Emerson; ALVES, Rogério Pacheco. Improbidade Administrativa. 6 ed. rev., ampl. e atualizada. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2011. p. 740).

[2] DIDIER JÚNIOR, Fredie; ZANETI JÚNIOR, Hermes. Curso de direito processual civil: processo coletivo. 13ª ed. Salvador: Editora JusPodivm, 2019. págs. 374-378.

[3] "Contudo, é forçoso reconhecer que, de lege ferenda, será útil e mais eficiente à repressão da improbidade administrativa, a dotação de institutos que, mitigando o princípio da indisponibilidade do interesse, favoreçam autores, beneficiários, cúmplices e partícipes de atos de improbidade administrativa que espontaneamente denunciem o fato, seus autores e beneficiários, possibilitando, assim, com a delação premiada, a redução de sanções ou mesmo instituindo uma válvula para a inacumulabilidade nessas hipóteses" (MARTINS JÚNIOR, Wallace Paiva. Probidade Administrativa. 4ª ed. São Paulo: Saraiva, 2009. p. 416).

[4] PAZZAGLINI FILHO, Marino. Lei de improbidade administrativa comentada: aspectos constitucionais, administrativos, civis, criminais, processuais e de responsabilidade fiscal; legislação e jurisprudências atualizadas. 3ª ed. São Paulo: Atlas, 2007. p. 214.

[5] Artigo 190, CPC. Versando o processo sobre direitos que admitam autocomposição, é lícito às partes plenamente capazes estipular mudanças no procedimento para ajustá-lo às especificidades da causa e convencionar sobre os seus ônus, poderes, faculdades e deveres processuais, antes ou durante o processo. Parágrafo único. De ofício ou a requerimento, o juiz controlará a validade das convenções previstas neste artigo, recusando-lhes aplicação somente nos casos de nulidade ou de inserção abusiva em contrato de adesão ou em que alguma parte se encontre em manifesta situação de vulnerabilidade.

[6] BAUMAN. Zygmunt. Vida líquida. Tradução de Carlos Alberto Medeiros. 2ª ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2009

[7] "A busca pela tutela dos direitos adequada, tempestiva e efetiva, exige a adequação do acesso à tutela, ocorrendo uma passagem necessária da justiça estatal imperativa, com a aplicação do Direito objetivo como única finalidade do modelo de justiça, para a aplicação da justiça coexistencial, uma mending justice (uma justiça capaz de remendar o tecido social), focada na pacificação e na continuidade da convivência das pessoas, na condição de indivíduos, comunidade ou grupos envolvidos." (DIDIER JÚNIOR, Fredie; ZANETI JÚNIOR, Hermes. Justiça multiportas e tutela constitucional adequada: autocomposição em direitos coletivos. In: SOSA, Ángel Landoni; CAMPOS, Santiago Pereira. (Org.). Estudios de derecho procesal en homenaje a Eduardo J. Couture, tomo II: Constitución y proceso. Principios y garantías. 1ed. Montevideo: La Ley Uruguay, 2017, v. II, p. 418).

[8] Tais parâmetros formais, ainda que genericamente, podiam ser extraídos da Resolução nº 179 do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP), editada em 26 de julho de 2017, norma de natureza primária, no bojo da qual previu-se, em dispositivo tão embrionário quanto inovador, que: "É cabível o compromisso de ajustamento de conduta nas hipóteses configuradoras de improbidade administrativa, sem prejuízo do ressarcimento ao erário e da aplicação de uma ou algumas das sanções previstas em lei, de acordo com a conduta ou o ato praticado" (artigo 1º, §2º — ainda vigente)

[9] VENTURI, Elton. Transação de Direitos Indisponíveis? In Revista de Processo, vol. 251, São Paulo: Revista dos Tribunais, jan/2016.

[10] A intensificação da fiscalização das contas públicas pelos órgãos de controle, amparada na jurisprudência sedimentada da matéria, especialmente no que atine a enriquecimentos ilícitos e danos ao erário, resultou no ajuizamento de 8.183 ações de improbidade administrativa durante o interregno de 1992-2013, em relação às quais houve condenação à perda do cargo público em 2.069 processos (25,28%) e à sanção de suspensão dos direitos políticos em 4.957 (60,58%) (GOMES JÚNIOR, Luiz Manoel (coord.). Lei de improbidade administrativa: obstáculos à plena efetividade do combate aos atos de improbidade. Brasília: Conselho Nacional de Justiça, 2015).

[11] MAZZILLI. Hugo Nigro. A defesa dos interesses difusos em juízo: meio ambiente, consumidor, patrimônio cultural, patrimônio público e outros interesses. 19ª ed. rev., amp. e atual. São Paulo: Saraiva, 2006. p. 201.