Maior reforma do direito obrigacional japonês desde 1896 completa 5 anos
30 de maio de 2022, 12h19
Mais de cem anos após a promulgação do Código Civil japonês (Minpō — Lei nº 89, de 27 de abril de 1896), e após pouco mais de uma década de trabalhos, promulgou-se na 191ª Sessão Parlamentar da Dieta a reforma do direito obrigacional do Japão, por meio da Lei nº 44, de 2 de junho de 2017. Trata-se da mais abrangente desde a entrada em vigor do Código Civil japonês, em 1898. Embora as repercussões do ponto de vista prático ainda sejam limitadas, devido à vacatio legis de três anos que trouxe referida reforma à vigência somente na metade de 2020 — bem ao início da pandemia de Covid-19 —, observa-se que a reforma teve por principal objetivo o de harmonizar as regras intactas do direito das obrigações com precedentes estabelecidos pelas cortes japonesas nas últimas décadas, bem como em relação às normas de comércio internacional adotadas pelo Japão — notadamente, CISG e princípios Unidroit [2] —, e, por fim, à vasta legislação especial — em especial, no campo da responsabilidade civil, do direito dos contratos e do consumidor — que foi editada pelo legislador japonês ao longo do século 20 [3].
Em homenagem à extensão do tema, e também de modo a situar a reforma dentro do contexto de evolução histórica do Direito Civil no Japão, a coluna será publicada em duas partes e semanas. Na primeira parte, publicada hoje, será apresentado um breve histórico da evolução do Direito Civil tendo como recorte histórico o início do período Edo (1603-1868) e a ocidentalização a partir da Reforma Meiji (1868-1912). Na próxima coluna, será analisada a evolução do Direito Civil japonês ao longo do século 20, por meio da promulgação de uma série de legislações especiais, e a reforma do direito obrigacional de 2017, vigente a partir de 2020.
Introdução
Atribui-se à Batalha de Sekigahara, ocorrida em 21 de outubro de 1600, o posto de combate decisivo que pôs fim ao período de guerras civis intermitentes entre clãs samurais e senhores feudais que eram titulares de relevantes porções do arquipélago. Tal assertiva, no entanto, é apenas parcialmente verdadeira, uma vez que o processo de unificação japonês se iniciou com a ampliação da influência do daimyo Oda Nobunaga, líder do clã Oda a partir de 1551[4]. Com o seu suicídio ritualístico (seppuku), ocorrido em 1582 durante o incidente de Honnô-ji, ascendeu ao poder Toyotomi Hideyoshi, um de seus guerreiros, que veio a consolidar a unificação no início da década de 1590 e, em sequência, promoveu as campanhas de invasão à Coreia entre 1592 e 1598[5].
Em razão de sua morte em 1598, as forças japonesas não obtiveram sucesso na captura da Coreia e, consequentemente, da China. Tal situação, aliada ao enfraquecimento dos clãs aliados aos Hideyoshi, possibilitaram a captura do Japão por Ieyasu Tokugawa, em uma série de batalhas que passaram por Sekigahara e se estenderam até 1603, iniciando-se o período Edo[6]. Neste ano, adotou-se a política isolacionista Sakoku (do "país fechado"), que perdurou por aproximadamente 265 anos, até a Restauração Meiji em 1868, e que limitou o acesso de estrangeiros à locais específicos, tal como a ilha artificial de Nagasaki (Dejima), utilizada para comércio por portugueses e, principalmente, neerlandeses[7].
Durante o fechamento, em que o xogunato Tokugawa dominava aproximadamente um quarto da produção de arroz do território e contava com a submissão, em graus variados, de centenas de daimyo, houve tentativas de codificação fomentadas essencialmente por intelectuais da elite japonesa versados no direito chinês[8]. Deste modo, houve interesse e influência dos códigos Ming e Ch'ing[9] na constituição de um direito do xogunato, que tratava da relação do governo em face dos daimyo e seus servos, bem como para tutelar a aplicação de costumes no território nipônico. É deste período, por exemplo, o Kujikata Osadamegaki, código de regras editado em 1742 por Yoshimune Tokugawa[10].
Do ponto de vista do direito obrigacional no período Edo, destaca-se a compilação e tradução de Dan Fenno Henderson, professor da Universidade de Washington, de mais de cinquenta modelos de acordos ordinariamente celebrados nos vilarejos japoneses, nos quais residia em torno de 80% da população[11]. As avenças, em geral, tinham por objeto a compra e venda de terras, mútuos com e sem garantia, a definição de divisas territoriais e disputas entre daimyo, direitos sobre cursos e fluxos de água, bem como acordos envolvendo matérias de família e sucessões (dotes, acordos pré-nupciais, venda de descendentes por dívida) e pedidos formais de desculpas[12].
Tais documentos, embora ofereçam relevante arcabouço histórico para o estudo do período, não são suficientes para identificar uma aproximação concreta com o direito dos contratos tal como visto nos dias atuais. Acordos verbais, neste período, eram igualmente comuns, e a exequibilidade em grande medida se devia ao senso comunitário dos residentes do vilarejo[13], intrinsicamente associado ao conceito de obrigação moral vinculada à harmonia da sociedade japonesa (giri)[14].
Embora o período de isolacionismo tenha se estendido até 1868, para além da influência chinesa, os japoneses, ao longo dos anos, obtiveram relevantes noções da civilização ocidental por meio das trocas culturais e mercantis com neerlandeses[15], incluindo sobre os sistemas jurídicos europeus e compêndios de medicina ocidental, notadamente com a tradução de um tratado de anatomia alemão em 1771, pelo médico Genpaku Sugita[16]. Além disso, as extensivas negociações de territórios entre o daimyo também consolidaram o respeito às negociações de propriedade privada antes mesmo da adoção dos modelos jurídicos de matriz romano-germânica[17].
A influência ocidental e a promulgação do Código Civil japonês
Com a abertura dos portos em 1868 e o encerramento da política isolacionista, iniciou-se um movimento de consolidação de um sistema jurídico japonês, o que se daria por meio da prática da codificação. Nesta linha, o primeiro Ministro de Justiça japonês Shinpei Etoh mostrou-se favorável à adoção do modelo francês, iniciando-se aqui as primeiras traduções — ainda literais — da legislação francesa para o japonês que se tem notícia[18]. Em 1873, particularmente relevante é a chegada de Gustave Émile Boissonade de Fontarabie ao porto de Yokohama a 15 de novembro, após ter celebrado um contrato de três anos com o império do Japão, no qual se comprometia a auxiliar na "elaboração de leis e outros trabalhos regulamentares e consultivos, como perito a serviço do governo japonês"[19]. Posteriormente, no ano seguinte, aditou-se o contrato de modo a permitir que Boissonade também lecionasse durante sua estada no Japão, em conjunto com Georges Bousquet, um curso sobre direito natural[20].
Com nova prorrogação de sua estada, Boissonade inicia a redação de um Código Civil para o Japão em 1879, utilizando-se do idioma francês para os trabalhos, que eram então traduzidos, aos poucos, para o japonês[21]. Narra-se que houve completa liberdade em relação ao conteúdo, ao plano e método de trabalho, uma vez que, nos dizeres de Yasuo Okubo, "aos olhos dos japoneses, o professor francês era então coroado pelas luzes do Direito"[22]. Inicia-se, então, o trabalho, e Boissonade divide o Código em cinco livros: (1) Das Pessoas e Da Família; (2) Dos bens (direitos reais e pessoais); (3) Os modos de aquisição dos bens; (4) As proteções/garantias do crédito; e (5) Das provas e da prescrição.
Boissonade tornou-se responsável pela elaboração efetiva das partes que não envolvem o direito de família e sucessões, uma vez que, novamente aos olhos dos japoneses, por ser estrangeiro, não poderia partilhar da mesma moral, desejos e sentimentos dos japoneses[23]. Com isto, o trabalho perdura por mais de 10 anos, até que em abril de 1889 é apresentado o projeto de codificação[24], que foi promulgado em 1890, e posteriormente juntado à parte de família e sucessões elaborada por juristas japoneses no mesmo ano. A princípio, o Código entraria em vigor em 1º de janeiro de 1893.
No entanto, a aprovação e entrada em vigor do Código Civil de Boissonade tornou-se um fato político e gerou considerável oposição — muitas vezes, oportunista — de diversos segmentos políticos e sociais[25]. Das críticas ao fato de a redação ter sido confiada a um professor estrangeiro, que não poderia corresponder às expectativas do povo japonês[26], houve também ataques dos juristas japoneses treinados em direito inglês e alemão, que foram decisivos para o abandono do Código durante o período da vacatio legis, notadamente após os debates ocorridos no Parlamento em 1892[27]. Este conflito se deu, em essência, na medida em que tais juristas treinados em direito inglês e alemão alegavam que estariam em desvantagem frente aos juristas japoneses estudiosos do direito francês. Ressalta-se que, à época da era Meiji, o Japão contava com faculdades nas quais o ensino do direito era baseado na tradição da common law inglesa e em outras, na qual o ensino fundamentava-se no direito francês (civil law). Também houve diversas críticas à parte de família e sucessões, que não havia sido escrita por Boissonade, mas foi associada ao seu projeto[28].
Embora formalmente a decisão do Parlamento indicasse a necessidade de revisão e emendas ao Código de Boissonade, em verdade, houve a constituição de nova comissão para apresentação de um novo projeto, que viria a ser aprovado em 1896 (Minpō). O Código Civil japonês, tal como aprovado, tinha evidente influência advinda do segundo anteprojeto do BGB — que veio a ser adotado em 1900 — e do direito da Saxônia[29].
A codificação, neste sentido, traz uma estrutura essencialmente pandectista, com a adoção de uma parte geral (incluindo princípios gerais e disposições aplicáveis às pessoas naturais e jurídicas, capacidade jurídica e domicílio), bem como disposições especiais sobre Direitos Reais e de Garantia e o Direito das Obrigações, e de conceitos basilares como ato jurídico (hōritsu-kōi)[30]. Não houve, no entanto — até pela ausência de tempo hábil para tanto —, completo abandono ao projeto original, de essência francesa, o que se verifica, por exemplo, nas disposições de transferência de propriedade sobre bens imóveis, que estabeleciam que o registro era necessário apenas para fins do exercício da titularidade perante terceiros, sendo que ao mero acordo de vontades já se atribuíam efeitos entre as partes, tal como no direito francês[31].
Além disso, embora influenciada pelos códigos Europeus, a codificação japonesa é menos extensa, com pouco mais de 700 artigos. Seu texto é mais genérico e aberto, um dos motivos pelos quais argumentou-se sobre a necessidade de revisão por meio das reformas de direito obrigacional. Isto se deu de forma proposital, no entanto, justamente pelo fato das traduções quase literais das codificações europeias não se amoldarem aos meandros da sociedade japonesa[32].
Na próxima coluna, avaliaremos a evolução do Direito Civil japonês ao longo do século 20 e a reforma de 2017.
*Esta coluna é produzida pelos membros e convidados da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo (USP, Humboldt-Berlim, Coimbra, Lisboa, Porto, Roma II-Tor Vergata, Girona, UFMG, UFPR, UFRGS, UFSC, UFPE, UFF, UFC, UFMT, UFBA, UFRJ e UFAM).
[2] UCHIDA, Takashi. Contract Law Reform in Japan and the UNIDROIT principles. Revue de droit uniforme, v. 16, n. 3, p. 705-717, ago. 2011, p. 709-710.
[3] ODA, Hiroshi. Japanese Law. 3. ed. Oxford: Oxford University Press, 2009, p. 116-117.
[4] NAOHIRO, Asao. The sixteenth-century unification. trad. por Bernard Susser. In: HALL, John Whitney. The Cambridge History of Japan. Early Modern Japan. 6. reimp. New York: Cambridge University Press, 2006, v. 4, p. 40.
[5] ELISONAS, Jurgis. The inseparable trinity: Japan’s relations with China and Korea. In: HALL, John Whitney. Op. cit., p. 235.
[6] HALL, John Whitney. The bakuhan system. In: ______. Op. cit., p. 128-149.
[7] MASAHIDE, Bitō. Thought and religion, 1550-1700. trad. por Kate Wildman Nakai. In: HALL, John Whitney. Op. cit., p. 395-424.
[8] HENDERSON, Dan Fenno. Chinese Legal Studies in Early 18th Century Japan: Scholars and Sources. The Journal of Asian Studies. v. 30, n. 1, p. 21-56, nov. 1970, p. 21.
[9] Estes códigos voltaram a ter influência na elaboração do primeiro Código Penal japonês (shinritsu-kōryō), em 1870. Vide: ODA, Hiroshi. Op. cit., p. 18.
[10] HENDERSON, Dan Fenno. Chinese Legal Studies… cit., p. 22.
[11] HENDERSON, Dan Fenno. “Contracts” in Tokugawa Villages. The Journal of Japanese Studies. v. 1, n. 1, p. 51-90, set.-nov. 1974, p. 54.
[12] HENDERSON, Dan Fenno. “Contracts” in Tokugawa Villages… cit., p. 56.
[13] HENDERSON, Dan Fenno. “Contracts” in Tokugawa Villages… cit., p. 53.
[14] MINAMI, Hiroshi. Human relations in the Japanese society. The annals of Hitotsubashi Academy, v. 4, n. 2, p. 148-162, abr. 1954, p. 155.
[15] ODA, Hiroshi. Op. cit., p. 18.
[16] KULMUS. Kaitai Shinsho. trad. por Genpaku Sugita. Edo: Ichibei Surahaya, 1774.
[17] ODA, Hiroshi. Op. cit., p. 18.
[18] ODA, Hiroshi. Op. cit., p. 113-114.
[19] OKUBO, Yasuo. La querelle sur le premier Code Civil Japonais et l’ajournement de sa mise en vigueur : refus du législateur étrangér ?. Revue internationale de droit comparé. v. 43, n. 2, p. 389-405, 1991, p. 389-390.
[20] OKUBO, Yasuo. Gustave Boissonade, père français du droit japonais moderne (1825-1910). Revue historique de droit français et étranger. v. 59, n. 1, p. 29-54, jan.-mar. 1981, p. 37.
[21] OKUBO, Yasuo. La querelle sur le premier Code Civil… cit., p. 392.
[22] OKUBO, Yasuo. La querelle sur le premier Code Civil… cit., p. 392.
[23] OKUBO, Yasuo. La querelle sur le premier Code Civil… cit., p. 393.
[24] Cabe destacar que este projeto tinha inspiração não apenas do direito francês, terra natal de Boissonade, mas também do direito italiano, belga e neerlandês. (In: ODA, Hiroshi. Op. cit., p. 18.)
[25] OKUBO, Yasuo. La querelle sur le premier Code Civil… cit., p. 397-398.
[26] OKUBO, Yasuo. La querelle sur le premier Code Civil… cit., p. 397.
[27] ODA, Hiroshi. Op. cit., p. 115.
[28] ODA, Hiroshi. Op. cit., p. 116.
[29] UCHIDA, Takashi. Op. cit., p. 707; ODA, Hiroshi. Op. cit., p. 115.
[30] RÖHL, Wilhelm. History of Law in Japan since 1868. Leiden: Brill, 2005, v. 12, p. 27.
[31] ODA, Hiroshi. Op. cit., p. 116.
[32] ODA, Hiroshi. Op. cit., p. 115-116; OKUBO, Yasuo. La querelle sur le premier Code Civil… cit., p. 391-393.
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