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Vitor Cunha: Reforma do reconhecimento pessoal

25 de maio de 2022, 16h04

Por Vitor Souza Cunha

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Em uma lúcida mensagem para século 21, Isaiah Berlin, o pensador que dedicou parte de sua trajetória intelectual ao estudo do pluralismo ideológico, brindou-nos com importante reflexão [1]. Para bem compreender o que é viver em sociedade, é fundamental ter em conta que um todo perfeito, em que todos os bons valores coexistem, é inalcançável e incoerente do ponto de vista conceitual. Viver junto, diz Berlin, é estar condenado a fazer escolhas morais, escolhas essas que carregam consigo perdas e implicam renúncias.

É com base nela que analisaremos uma questão jurídica que vem recebendo, merecidamente, grande destaque no debate acadêmico nacional: a discussão sobre um novo tratamento jurídico ao reconhecimento pessoal.

Uma maneira simples e promissora de iniciar o debate quanto ao tema é apontando algo que não pode ser negado. Pode-se afirmar, sem nenhuma dúvida, que a prova que resulta do reconhecimento pessoal pode contribuir para a ocorrência de erros no processo penal.

A opção por dar um passo adiante já exige alguma cautela. O que seria, afinal, um erro no processo penal? Essa questão está longe de ser irrelevante. Qualificar algo como errado é prática cultural tão antiga quanto é viver em sociedade, o que não torna mais fácil a definição desse conceito. No processo penal, o cardápio de erros possíveis nas decisões judiciais é extenso; ele abrange desde erros de determinação da norma aplicável até a falta de consistência lógica entre premissas normativas e fáticas.

Entretanto, o que se costuma ser o objeto central das preocupações nos debates sobre o reconhecimento pessoal são as condenações de inocentes (ou falsas condenações). De modo a simplificar a ideia, trata-se dos casos nos quais os condenados são materialmente inocentes, ou seja, alguém é condenado pelo crime praticado por outra pessoa.

Apesar de ser possível a redução do número de falsas condenações, acabar totalmente com esse tipo de erro é inviável. Por mais bem desenhado que seja o procedimento, por mais avançadas que sejam as técnicas de investigação, não há estratégia que conduza invariavelmente a uma decisão correta sobre os fatos. A única forma de acabar com esses erros seria extinguindo o processo penal.

Alguém pode questionar: se algum risco de falsas condenações sempre vai existir, por que não absolver todos os réus? Esse é um questionamento legítimo, para o qual há uma resposta que nem sempre é intuitiva. Isso não pode ser feito porque absolver alguém materialmente culpado é incorrer em outro tipo de erro. Menos grave, decerto, mas ainda assim um erro. É esse componente que gostaríamos de enfatizar: a absolvição de pessoas que cometeram crimes (falsas absolvições) também é um tipo de erro.

O ideal a ser perseguido, e quanto a isso não há discordância, é a redução do risco total de erros, sejam falsas condenações, sejam falsas absolvições. Persistindo o risco da ocorrência de erros, resta ao sistema jurídico a ingrata tarefa de distribuí-los.

Como o fazer é um enorme desafio jurídico, político e moral. Não parece haver dúvidas que a condenação de um inocente é moralmente muito mais aversiva do que a absolvição de um culpado. O desafio é saber o quão mais grave e, consequentemente, qual a razão desejável de distribuição de erros. O adágio blackstoniano de que é melhor que dez culpados escapem do que um inocente sofra é tão famoso quanto difícil de justificar. Por que não seria melhor que mil culpados escapassem? Por que não dois culpados?

O que se sabe sobre a distribuição desse risco é que se o processo penal for desenhado para evitar apenas um dos tipos de erros, é provável que aumente a ocorrência do outro. O que não se sabe é qual o ponto de equilíbrio adequado. Aliás, ainda que alguém, sozinho, encontre uma fórmula correta e exata de como distribuir o risco de erros (supondo que essa resposta exista), não parece haver condições de essa pessoa demonstrar o acerto de sua descoberta. Isso porque esse é um problema moralmente controverso, cuja solução varia de acordo com a pauta de valores das pessoas.

A preferência por um ou outro tipo de erro atravessa o direito probatório, em grande medida moldando as suas regras. Essa questão é central no debate sobre o reconhecimento pessoal. Vejamos.

Recentemente, Janaína Matida, que vem dando importante contribuição para o amadurecimento acadêmico do tema, publicou interessante texto na coluna Limite Penal. Ela argumenta que os legisladores, em relação a determinadas questões, devem ser deferentes às conclusões que os estudiosos da matéria certificam como correta. Como exemplo, apresentou o seguinte trecho do projeto de novo CPP:

"III. A pessoa a cujo reconhecimento se pretender será apresentada com, no mínimo, outras quatro pessoas sabidamente inocentes que atendam igualmente à descrição dada pela testemunha ou pela vítima, de modo que o suspeito não se destaque dos demais".

Segundo Matida, o conteúdo da proposta é "absoluta e radicalmente incontroverso a qualquer especialista na área da psicologia do testemunho e das provas dependentes da memória".

Há dois aspectos na afirmação que muito interessam ao nosso debate. O primeiro deles diz respeito ao suposto consenso quanto ao número de pessoas no alinhamento. Pesquisadores norte-americanos do estado do Texas recentemente publicaram estudo que sugere que não há vantagens em aumentar o número de fillers em um alinhamento (lineup) além de três pessoas, desde que elas correspondam à descrição do reconhecedor [2]. Outro estudo, também muito recente, sugere que lineups de tamanhos diferentes não apresentaram diferenças estatísticas significativas no que concerne à discriminability [3]. Segundo os pesquisadores, há poucas provas que apontem a quantidade ideal de pessoas que devem estar em um alinhamento [4]. Por fim, em uma meta-análise de estudos publicados sobre o tema do tamanho do lineup, Juncu e Fitzgerald identificaram interessante resultado: enquanto suspeitos inocentes recebem proteção maior em lineups com mais pessoas, alinhamentos maiores também tornam mais difícil a identificação de suspeitos culpados [5]. Ou seja, os pesquisadores sugerem a existência de um trade-off.

O segundo aspecto possui estreita relação com o anterior. Especialistas, agindo nessa qualidade, pouco têm a dizer quanto à solução de trade-offs. Por mais bem preparados que sejam do ponto de vista técnico, eles não têm condições de apontar, por exemplo, se a maior proteção aos suspeitos justifica o custo de diminuição da capacidade de identificação de culpados. Como observa Haack, os resultados das ciências podem nos dar informações sobre a relação entre meios e fins, mas sozinhos não têm a capacidade de dizer quais fins são desejáveis [6].

Uma metáfora mostra-se especialmente esclarecedora. Ao regular a utilização das vias por pessoas e veículos, as leis de trânsito devem levar em conta as descobertas da física e de outras ciências. A velocidade, queiram ou não os legisladores, será a distância que um objeto leva para se deslocar dividido pelo tempo que levou para percorrer. Esses saberes, entretanto, quase nada têm a dizer sobre se é desejável fechar ou não uma avenida para o lazer em um domingo ensolarado.

Situação muito semelhante é a decisão sobre como tratar juridicamente o reconhecimento pessoal. Mesmo havendo consensos científicos seguros, como no caso da superioridade, em termos de confiabilidade, dos lineups em relação aos showups [7], a escolha sobre o uso de um ou outro procedimento não raras vezes demanda o emprego de critérios de moralidade política. Basta pensar na situação de urgência na produção de uma prova relevante que corra o risco de perecer caso o reconhecimento menos confiável (showup, por exemplo) não seja realizado imediatamente. Havendo razões para tanto, não seria desejável recorrer inicialmente a uma prova menos confiável para alcançar posteriormente um conjunto mais robusto? Ou não, os showups devem ser proibidos independentemente do contexto? Não devemos esquecer que os estudos apontam que o reconhecimento que resulta de um showup será menos confiável, existam justificativas para seu emprego ou não. Em suma, a resposta a essas perguntas demanda o que a ciência sozinha não pode fornecer.

É interessante lembrar, ainda, que a confiabilidade não é um conceito binário, como é a relevância (uma prova é ou não relevante). A confiabilidade admite graus, que podem variar desde quase nada até totalmente [8]. Além disso, provas menos confiáveis que outras podem ser verdadeiras. Novamente, pode-se pensar em um reconhecimento que não observou os métodos sugeridos por estudiosos, mas que resultou na apreensão do corpo de delito (ou de alguma prova muito robusta) na residência do suspeito reconhecido. Sim, há razões para colocar em xeque a confiabilidade. Mas há motivos para duvidar da veracidade do reconhecimento corroborado por um conjunto consistente de provas? Insista-se, uma coisa é a acurácia de um reconhecimento no caso concreto, outra é a probabilidade estatística de acurácia de reconhecimentos em geral. Wells e Quinlivan, por exemplo, ponderam que em algumas situações a força da memória do reconhecedor é capaz de superar os fatores que tornam o procedimento de reconhecimento sugestivo [9].

O sistema jurídico pode excluir o resultado de um reconhecimento que não observe rigorosamente os métodos testados pela ciência? Pode fazê-lo, sem nenhuma dúvida. Entendemos, entretanto, que essa deve ser uma decisão bem-informada, que leve em conta os resultados científicos e não deixe de considerar os custos envolvidos. Parece-nos, ainda, que a legitimidade política para tomar essa difícil decisão é encontrada nos parlamentos.

Em suma, não há soluções simples para um problema tão complexo como o da produção, admissibilidade e valoração das provas resultantes de reconhecimento pessoal. É inconcebível pensar que alguém, minimamente comprometido com o respeito ao próximo, pudesse hesitar em aplicar um remédio capaz de debelar a enfermidade sem nenhum efeito colateral. O problema é que os efeitos colaterais existem e não podem ser desconsiderados.

Para bem cumprir sua missão, o processo penal deve se preocupar com a redução de todos os tipos de erros. O risco remanescente deve ser distribuído. Não sendo possível encontrar na ciência todas as respostas, resta-nos, enquanto sociedade, escolher. Que escolhamos de forma legítima, por meio de um processo participativo e precedido de debates abertos e construtivos. Nesse processo importa a opinião de juristas, de cientistas e dos cidadãos em geral, mesmo que todos eles discordem. Para começar, a propósito, reconhecer a existência de desacordos morais de boa-fé é fundamental.

Buscar equacionar essa questão estabelecendo um equilíbrio entre os interesses é difícil e custoso, mas não impossível. Essa é uma tarefa para a qual todo o esforço é recompensado. Ainda que se chegue a um resultado que não corresponda integralmente aos anseios de todos, a própria busca pelo equilíbrio já expressa uma vitória da civilidade e dos valores que qualificam como democrático o processo penal.

Voltemos a Berlin. Apesar da acidez de sua análise sobre os desafios de viver em sociedade, ele termina sua mensagem com um tom de esperança. Para quem viveu as agruras dos totalitarismos do século passado, ver florescer o respeito e a tolerância, ainda que de forma lenta e resistida, não deixa de ser auspicioso. Convém fazer de seu prognóstico uma realidade. O debate quanto ao reconhecimento pessoal, sem dúvidas, teria muito a ganhar; a sociedade ainda mais.

 


[1] BERLIN, Isaiah. Uma Mensagem Para o Século XXI. Belo Horizonte: Editora Âyiné, 2016.

[2] WOOTEN, Alex R. et al. The number of fillers may not matter as long as they all match the description: The effect of simultaneous lineup size on eyewitness identification, Applied Cognitive Psychology, v. 34, nº 3, p. 590–604, 2020.

[3] Em uma tradução livre, pode-se dizer que a empirical discriminability "mede a capacidade de os participantes classificarem corretamente os suspeitos inocentes e culpados em suas verdadeiras categorias". (WIXTED, John T.; MICKES, Laura. Theoretical vs. empirical discriminability: the application of ROC methods to eyewitness identification. Cognitive Research: Principles and Implications, v. 3, nº 1, p. 1-22, 2018, p. 9).

[4] AKAN, Melisa et al. The effect of lineup size on eyewitness identification. Journal of Experimental Psychology: Applied, v. 27, nº 2, p. 369–392, 2021.

[5] JUNCU, Stefana; FITZGERALD, Ryan. A meta-analysis of lineup size effects on eyewitness identification. Psychology, Public Policy, and Law, v. 27, nº 3, p. 295, 2021.

[6] HAACK, Susan. Six Signs of Scientism. Logos & Episteme, v. 3, nº 1, p. 75–95, 2012, p. 90.

[7] Os estudos citados nas notas 2 e 4, por exemplo, demonstram a superioridade dos lineups.

[8] LAUDAN, Larry. Truth, error, and criminal law: an essay in legal epistemology. New York: Cambridge University Press, 2006, p. 121.

[9] WELLS, Gary L.; QUINLIVAN, Deah. Suggestive eyewitness identification procedures and the Supreme Court’s reliability test in light of eyewitness science: 30 years later. Law and Human Behavior, v. 33, nº 1, p. 1–24, 2009, p. 19.