Jurisdição constitucional na era digital
25 de junho de 2022, 8h02
A evolução da jurisdição constitucional no Brasil perpassou por, pelo menos, quatro fases de aperfeiçoamento até a conjuntura atual [1].
Inicialmente, a fase um coincide com a incorporação do controle de constitucionalidade no Brasil, promovido pela Constituição de 1891. Inspirado no modelo da judicial review estadunidense, foi inaugurada a possibilidade de a judicatura, por meio de controle incidental, deixar de aplicar leis incompatíveis com a Constituição Federal.
A partir de 1965, com a instituição da representação por inconstitucionalidade, que podia ser ajuizada pelo procurador-geral da República para impugnar leis em tese conflituosas com a Constituição, foi inaugurada a fase dois, relativa à adoção do modelo abstrato de jurisdição constitucional típico de países europeus, notadamente a Alemanha. Não se pode negligenciar, contudo, que a legitimidade restrita para propositura de representação por inconstitucionalidade e o próprio período de ditadura que o Brasil enfrentava esvaziaram, em grande medida, as potencialidades da jurisdição constitucional no país.
Atenta a isso, a Constituição de 1988 deu origem a uma terceira fase da jurisdição constitucional, caracterizada pela abertura procedimental do contencioso constitucional. Ampliaram-se os legitimados para propositura de ações de controle abstrato, os instrumentos de acesso à jurisdição constitucional difusa e concentrada do STF, e também a facilidade de acesso à Justiça, por meio de instituições como a Defensoria Pública e os Juizados Especiais. Adicionalmente, foram desenvolvidos expedientes de participação no processo constitucional mesmo para quem não seja parte, por meio de intervenção como amicus curiae ou em audiência pública.
Tudo isso democratizou a jurisdição constitucional, mas teve também o efeito deletério de aumento excessivo de demandas judiciais em um contexto em que os órgãos jurisdicionais não estavam preparados para lidar. É que a base jurídica de civil law ou direito codificado brasileira não contempla a teoria do stare decisis ou de precedentes obrigatórios típica dos sistemas jurídicos de common law. Consequentemente, os processos no Brasil eram julgados individualmente, de modo que demandas em massa, para além de afrontarem a segurança jurídica em razão de decisões conflitantes para casos idênticos, acarretavam trabalho excessivo e repetitivo aos órgãos jurisdicionais.
Diante desse cenário, a ordem jurídica brasileira começou a desenvolver institutos de racionalização da prestação jurisdicional (fase quatro). A partir da Emenda Constitucional 45/2004, conhecida como reforma do Judiciário, foram criados institutos como a repercussão geral do recurso extraordinário e as súmulas vinculantes. Já o Código de Processo Civil de 2015 instituiu expedientes como o incidente de resolução de demandas repetitivas (IRDR) e estabeleceu normativamente um dever de observância aos precedentes judiciais (artigo 927).
Consigne-se que cada uma dessas fases não sobrepõe a anterior, mas vem complementá-la, trazendo novos elementos à jurisdição constitucional brasileira. Até os dias atuais, ainda se busca desenvolver o nosso sistema de Justiça constitucional, para que ele seja hábil a fornecer prestação jurisdicional efetiva, tempestiva e adequada.
Em síntese, essa é uma organização didática da evolução do controle de constitucionalidade no Brasil relativamente ao que já está consolidado em nosso sistema. É chegada a hora agora de olhar para o presente e para futuro, e observar as significativas transformações pelas quais a jurisdição constitucional vem passando em razão da exploração crescente das tecnologias digitais.
Assim, este ensaio propõe reflexões sobre uma quinta fase da jurisdição constitucional no Brasil, que é o constitucionalismo digital [2]. Há duas ordens de fatores que são afetadas pelo desenvolvimento das tecnologias digitais: 1) Os recursos tecnológicos empregados por órgãos jurisdicionais que passam por um processo de digitalização; e 2) os novos conflitos sociais que emergem da exploração de tecnologias digitais.
Em relação aos recursos tecnológicos, o Supremo Tribunal Federal passou a explorar e desenvolver, cada vez mais, instrumentos de tecnologia digital. A propósito, um dos escopos da gestão do ministro Luiz Fux enquanto presidente do tribunal foi avançar rumo à consolidação de uma Corte Constitucional 100% digital [3].
Nesse contexto, investiu-se em inteligência artificial para auxiliar no aperfeiçoamento da prestação jurisdicional, por meio da identificação de demandas repetitivas e processos com repercussão geral.
O sistema Victor é uma inteligência artificial cujo escopo é colaborar com a análise de admissibilidade recursal, notadamente com a sinalização de que determinado assunto de repercussão geral se aplica ao caso dos autos. O Victor pode ser encarado como um passo a mais para aumentar a eficiência na tramitação de processos [4].
Ainda com relação ao uso de inteligência artificial, O STF instituiu também o Sistema de Redes Artificiais Focadas na Agenda 2030 (Rafa 2030) [5]. Trata-se de recurso tecnológico voltado a classificar os processos em tramitação na corte, por meio comparação semântica em textos de petições que chegam ao STF e de decisões para auxiliar na identificação das matérias que estão classificadas entre os objetivos de desenvolvimento sustentável, e que, portanto, devem ser tratados com prioridade.
A pandemia da Covid-19 impulsionou ainda mais a exploração de recursos tecnológicos pela jurisdição constitucional. Diante das medidas de distanciamento social determinadas durante a pandemia, o Supremo Tribunal Federal ampliou a competência decisória do plenário virtual, que passou a ser veículo para o julgamento de qualquer demanda em tramitação na corte [6].
Essa alteração trouxe muitos impactos significativos para a jurisdição constitucional brasileira. Aumentou-se a celeridade no julgamento e permitiu-se a continuidade de funcionamento efetivo da corte durante a pandemia, entretanto surgiram novas variáveis no perfil decisório do STF que impõem desafios adicionais ao sistema de Justiça constitucional.
É certo que diversos processos, notadamente relativos a ações de controle abstrato de constitucionalidade e mérito de processo-paradigma com repercussão geral, que estavam represados aguardando pauta de julgamento no plenário presencial migraram para o ambiente virtual e puderam ser efetivamente julgados.
Em relação aos impactos quantitativos no julgamento de processos, a primeira pesquisa empírica institucional desenvolvida pelo Supremo Tribunal Federal evidencia que, após a Emenda Regimental 53/2020 — a qual ampliou a competência do plenário virtual — mais de 95% dos julgamentos colegiados proferidos pela corte ocorreram nesse ambiente de deliberação assíncrona [7].
O Painel Estatístico da Repercussão Geral [8] também dá conta de que o tempo médio para julgamento de mérito de recurso extraordinário com repercussão geral reconhecida foi reduzido de mais de seis anos para cerca de três anos.
Não obstante esses avanços, há muita preocupação acerca da efetiva deliberação em ambiente eletrônico, na medida em que a interação entre os ministros resta mitigada. De mais a mais, há variáveis que podem influenciar o processo decisório, como a não administração da pauta virtual pelo presidente da Corte e a possibilidade de pedido de destaque com a desconsideração de votos já proferidos. Essas variáveis acabam implicando peculiaridades ao processo deliberativo no plenário virtual que não se reproduzem no plenário presencial, de modo que o Supremo Tribunal Federal admite mais de um processo decisório nas decisões colegiadas da corte.
No que diz respeito aos novos conflitos sociais, decorrentes da exploração de tecnologias digitais, é preciso ter em mente que a forma de interação social foi modificada em um ambiente tecnológico que promoveu a conectividade entre as pessoas por meio de aplicativos e redes sociais.
Ilustrativamente, discussões históricas sobre limites e possibilidades de exercício da liberdade de expressão agora se repetem de maneira potencializada em razão da exploração da tecnologia digital. Além de fiscalizar o conteúdo produzido por eventual infrator de direitos fundamentais, a jurisdição constitucional também precisa agora se debruçar sobre a responsabilidade de quem armazena esse conteúdo, ou seja, os provedores de internet.
Nessa conjuntura, o artigo 19 do Marco Civil da Internet no Brasil elegeu o Judiciário como árbitro dos conflitos entre usuários de provedores de internet, de sorte que o provedor de internet somente poderá ser civilmente responsabilizado por danos decorrentes de conteúdo gerado por terceiros se, após ordem judicial específica, não tomar as providências para tornar indisponível o conteúdo apontado como infringente.
Perceba-se que essa fórmula de reserva de jurisdição, na tentativa de conciliar o exercício da liberdade de expressão com a proteção dos direitos fundamentais, alça a Justiça constitucional a árbitro de litígios entre os usuários das redes sociais.
Ocorre que essa própria solução legislativa, pensada para a realidade brasileira onde há facilidade de acesso à Justiça, é objeto de impugnação no âmbito do Supremo Tribunal Federal, ao argumento de que a exigência de prévia decisão judicial para a retirada de conteúdo da internet enfraqueceria o âmbito de proteção dos direitos fundamentais [9].
Mas esse é apenas um dos novos problemas do contencioso constitucional contemporâneo, o qual precisa se debruçar sobre questões atuais e complexas, como o combate à desinformação (fake news), o desenvolvimento de expedientes para a preservação do regime democrático (democracia defensiva), o direito à autodeterminação informacional e a exclusão digital, a qual pode influenciar na fruição dos mais diversos direitos fundamentais dos cidadãos.
Todas essas considerações, enfim, têm o condão de ponderar que as tecnologias digitais afetam de maneira tão significativa a jurisdição constitucional, que estamos a vivenciar uma nova fase do contencioso constitucional no Brasil: a jurisdição constitucional digital.
[1] CARVALHO FILHO, José S. Repercussão Geral: Balanço e Perspectivas. São Paulo: Almedina, 2015, p. 29 e ss.
[2] CELESTE, Edoardo. Digital constitutionalism: a new systematic theorisation. International Review of Law, Computers and Technology, v. 33, n. 1, p. 76–99, 2019.
[3] FUX, Luiz. Discurso de posse como Presidente do Supremo Tribunal Federal. Disponível em https://www.conjur.com.brhttps://www.conjur.com.br/wp-content/uploads/2023/09/discurso-posse-fux-stf.pdf. Acesso em 21/6/2022.
[4] BRASIL, Supremo Tribunal Federal. Projeto Victor avança em pesquisa e desenvolvimento para identificação dos temas de repercussão geral. Disponível em: https://portal.stf.jus.br/noti-cias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=471331&ori=1. Acesso em 21/6/2022.
[5] BRASIL, Supremo Tribunal Federal. STF lança Rafa, ferramenta de Inteligência Artificial para classificar ações na Agenda 2030 da ONU. Disponível em: https://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=486889&ori=1. Acesso em 21/6/2022.
[6] BRASIL, Supremo Tribunal Federal. Emenda Regimental 53, de 18 de março de 2020.
[7] BRASIL, Supremo Tribunal Federal. O Plenário Virtual na Pandemia da Covid-19. Brasília: STF, Secretaria de Altos Estudos, Pesquisas e Gestão da Informação, 2022, p. 31.
[8] BRASIL, Supremo Tribunal Federal. Painel Estatístico da Repercussão Geral. Disponível em: https://transparencia.stf.jus.br/extensions/repercussao_geral/repercussao_geral.html. Acesso em 21/6/2022.
[9] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário com Repercussão Geral 1.037.396, rel. min. Dias Toffoli.
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