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Hijo Sampietro: Débitos propter rem e arrematação de bens

23 de junho de 2022, 9h04

Por Luiz Roberto Hijo Sampietro

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Ao mesmo tempo em que excepciona a insolvência do executado, o artigo 797 do CPC dispõe sobre três regras importantes ao processo de execução: (1) a demanda executiva se desenvolve no interesse do credor; (2) a penhora concede direito de preferência ao exequente; e (3) na hipótese de o mesmo bem ser penhorado mais de uma vez, os exequentes conservarão os respectivos títulos de preferência sobre a referida coisa.

Nesse passo, as regras dos artigos 908 e 909 do CPC regulamentam o concurso de credores relativamente ao devedor solvente, completando, assim, a trinca de espécies concursais existentes no sistema jurídico nacional: (1) a prevista na Lei 11.101/05, voltada aos que exercem atividades empresariais; (2) a insolvência civil, ainda regulamentada pelo CPC/73 (CPC/15, artigo 1.052 e CPC/73, artigos 748 a 786-A); e (3) o já aludido concurso de credores [1].

No entanto, e ao menos em nosso sentir, a previsão do § 1º do artigo 908 do CPC tem a potencialidade de solucionar outra questão recorrente no foro: a responsabilidade do arrematante de imóvel pelo pagamento das cotas condominiais vencidas e anteriores à arrematação. Para evitar que a responsabilidade pelas obrigações de natureza propter rem do imóvel anteriores à arrematação recaiam sobre o arrematante, o artigo 908, § 1º, do CPC dispõe que "[n]o caso de adjudicação ou alienação, os créditos que recaem sobre o bem, inclusive os de natureza propter rem, sub-rogam-se sobre o respectivo preço, observada a ordem de preferência".

Tal assunto era bastante tormentoso durante a vigência do CPC/73. A jurisprudência formada sobre o tema era desfavorável ao arrematante: havia julgados que condicionavam a responsabilidade dele aos débitos propter rem do imóvel anteriores à arrematação se o edital de praça veiculasse essa ressalva (ex.: REsp 865.462/RJ). Outros arestos, de forma mais severa ainda, impunham ao arrematante, de forma absoluta, a responsabilidade pelo pagamento das cotas condominiais vencidas e anteriores à arrematação (ex.: EDcl no REsp 1.280.332/SP), realçando a natureza propter rem desse dever. Talvez por essa razão Daniel Amorim Assumpção Neves [2] entenda que o artigo 908, § 1º, do CPC, tenha a ventura de "(…) alterar a jurisprudência consolidada do Superior Tribunal de Justiça a respeito do tema (…)", ao passo que José Miguel Garcia Medina [3], mais enfático, pontifique que "[o] novo Código deixa claro que o adquirente do bem (arrematante ou adjudicante) está liberado da responsabilidade por quaisquer créditos incidentes sobre o bem, inclusive aqueles de natureza propter rem, solução que se ajusta à natureza originária da propriedade adquirida".

Dessa forma, ao menos segundo a letra da lei, o arrematante/adjudicante de imóvel em leilão não é mais responsável pelas cotas condominiais e também pelos tributos inadimplidos até a arrematação do bem, dada a sub-rogação desses créditos no valor da arrematação. Assim dizemos porque a jurisprudência, ora exemplificada por aquela do Tribunal de Justiça de São Paulo, vem se apresentando vacilante a respeito do tema, em pleno descompasso com a estabilidade, integridade e coerência impostas pelo artigo 926 do Código de Processo Civil.

O acórdão proferido nos autos da apelação cível nº 0215978-78.2010.8.26.0100 considerou que o "[a]rrematante do bem responde pelo débito condominial incidente sobre ele, diante do caráter propter rem da obrigação, não importando se a dívida é anterior à arrematação, porque não ficou comprovada a exclusão da obrigação no edital de leilão do imóvel, ônus de que ela, arrematante, não se desincumbiu" [4]. Em senso oposto, o aresto extraído dos autos do agravo de instrumento nº 2224142-21.2021.8.26.0000 entendeu o seguinte a propósito do assunto: "[e]dital de leilão que expressamente afastou a responsabilidade da arrematante pelas despesas condominiais vencidas, constando a informação de que a dívida ficaria sub-rogada no preço da arrematação. Arrematação ocorrida sob a égide do CPC/15, que, em seu art. 908, § 1º, dispõe que 'No caso de adjudicação ou alienação, os créditos que recaem sobre o bem, inclusive os de natureza propter rem, sub-rogam-se sobre o respectivo preço, observada a ordem de preferência'. Arrematante que não pode ser responsabilizada pelas dívidas vencidas antes da arrematação" [5].

Infelizmente, nota-se que as razões de decidir dos julgados referidos ainda estão confinadas aos dizeres do edital de leilão, que podem ou não prever a responsabilização do arrematante pelas dívidas pretéritas e de natureza propter rem do imóvel. Como já visto, os dizeres do § 1º do artigo 908 do CPC não condicionam [6] a sub-rogação das dívidas pretéritas do bem no valor da arrematação/adjudicação à existência de previsão no edital do leilão [7]. Tal sub-rogação é automática, ocorrendo por imposição de lei. Assim, qualquer ressalva editalícia em sentido oposto ao da norma deve ser tida por ilegal.

Por último, a seguinte advertência é necessária: o artigo 1.046, do Código de Processo Civil, estabelece a incidência imediata das regras do CPC/15 aos processos pendentes, mesmo que eles tenham se iniciado sob a égide do CPC/73. Assim, se a arrematação do imóvel ocorrer durante a vigência do CPC/15, mesmo que a demanda tenha sido ajuizada antes de 18.3.2016[8][9], o arrematante estará desonerado das dívidas do mencionado bem, que irão se sub-rogar no preço da aquisição em leilão.

 


[1] CASTRO, Thiago Soares Castelliano Lucena de. Concurso de credores no código de processo civil. Londrina: Thoth, 2021, p. 35. A leitura integral dessa obra é altamente recomendada, uma vez que ela estuda o concurso de credores no CPC de forma horizontal e em profundidade, notadamente no que concerne ao procedimento do concurso e sobre a ordem de preferência dos créditos.

[2] Código de processo civil comentado: artigo por artigo. 6ª ed. Salvador: Juspodium, 2021, p. 1.542.

[3] Código de processo civil comentado. 6ª ed. São Paulo: RT, 2020, p. 1.326.

[4] Apelação cível n. 0215978-78.2010.8.26.0100, rel. des. Silvia Rocha, 29ª Câmara de Direito Privado, j. 8/6/2022. De forma similar, o acórdão proferido no agravo de instrumento n. 2066035-73.2021.8.26.0000, rel. des. Ruy Coppola, 32ª Câmara de Direito Privado, j. 5/5/2021.

[5] Agravo de instrumento nº 2224142-21.2021.8.26.0000, rel. des. Angela Lopes, 27ª Câmara de Direito Privado, j. 15/2/2022.

[6] Escorreito o seguinte julgado do TJ-SP: "No caso em julgamento, com a vigência do atual Código de Processo Civil (CPC) a partir de março de 2016, a regra de seu art. 908, § 1º, determina que os créditos que recaiam sobre o bem adjudicado ou arrematado em leilão, inclusive os de natureza 'propter rem', sub-rogam-se sobre o respectivo preço, observada a ordem de preferência. Esse comando é sufragado por doutrinadores processualistas respeitáveis no universo jurídico. Dessa forma, tal preceito deve ser cumprido, malgrado o conteúdo do edital publicado para o leilão". (Agravo de instrumento nº 2165913-05.2020.8.26.0000, rel. des. Adilson de Araujo, 31ª Câmara de Direito Privado, j. 24/8/2020). No mesmo sentido, confira-se o acórdão proferido no agravo de instrumento nº 2178920-64.2020.8.26.0000, rel. des. Antonio Rigolin, 31ª Câmara de Direito Privado, j. 18/8/2020)

[7] Aqui, vem a calhar a defesa de Umberto Eco sobre o respeito ao limite semântico das palavras e das orações que compõem um texto: "Ninguém mais do que eu é favorável a que se abram as leituras, mas o problema continua sendo o de estabelecer o que é mister proteger para abrir, não o que é mister abrir para proteger". (ECO, Umberto. Os limites da interpretação. Trad. Pérola de Carvalho. 2ª ed. São Paulo: Perspectiva, 2004, e-book Kindle, item 1.3: defesa do sentido literal)

[8] STJ, Enunciado administrativo nº 1: "O Plenário do STJ, em sessão administrativa em que se interpretou o art. 1.045 do novo Código de Processo Civil, decidiu, por unanimidade, que o Código de Processo Civil aprovado pela Lei nº 13.105/2015, entrará em vigor no dia 18 de março de 2016".

[9] O STJ entende de forma diversa. O acórdão proferido no REsp nº 1.769.443/PR salientou que, "[c]onforme o princípio de que o tempo rege o ato ('tempus regit actum'), no qual se fundamenta a teoria do isolamento dos atos processuais, a lei processual nova tem aplicação imediata aos processos em desenvolvimento. A aplicação imediata da lei processual demanda, todavia, respeito à irretroatividade, com a manutenção dos efeitos dos atos processuais já praticados e das situações jurídicas consolidadas sob a vigência da lei processual revogada. Na hipótese concreta, a arrematação ocorreu sob a vigência do CPC/73, razão pela qual a pretensão de aplicação da previsão do art. 908, § 1º, do CPC/15 a seus efeitos acarretaria indevida retroatividade da lei processual nova. Constando do edital de praça ou havendo ciência inequívoca da existência de ônus incidente sobre o imóvel, o arrematante é responsável pelo pagamento das despesas condominiais vencidas, ainda que sejam anteriores à arrematação. Precedentes".