Opínião

Qual o real critério para considerar a fraude no sistema de cotas raciais no país

Autor

  • Caio Tirapani

    é advogado sócio-diretor do escritório CTAA graduado pela Universidade Federal de Juiz de Fora pós-graduado em Direito Médico especialista em Concursos Públicos Residência Médica e Cotas Raciais.

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13 de junho de 2022, 21h26

O sistema de cotas raciais em universidades públicas certamente é um tema capaz de inflamar os mais diversos debates. Quando se fala sobre a política afirmativa das cotas raciais nas universidades, o senso de julgamento da grande maioria é aflorado e, por muitas vezes, deturpa o seu verdadeiro sentido — ser parte da construção de um ensino superior mais igualitário no país.

Apesar da clara necessidade de existência do sistema de cotas, infelizmente ainda é comum encontrarmos pessoas que lidam com o assunto de maneira completamente distante da apropriada.

E a situação ainda pode se agravar, pois os julgamentos equivocados não se limitam à sociedade, se estendem também para as instituições federais de ensino e, até mesmo para o Poder Judiciário, que, no intuito de promover o respeito ao sistema de cotas, acaba violando por completo direitos de uma série de alunos.

Vamos explicar melhor.

Imagine que você viveu a sua vida inteira em um núcleo familiar em que sempre se viu como pardo, por mais que não tivesse consciência disso. A presença de pessoas negras na sua família sempre foi algo comum, até porque trata-se da característica que acompanhou a sua existência. Você é fruto de uma miscigenação e isso sempre permeou a sua família como algo comum. Afinal, aquilo que é comum para nós, não é questionado, ainda mais em se falando de um elemento cultural.

Por óbvio, você internalizou aquela identidade. Faz parte de você.

Seguindo o sentimento, você começa a externalizar para as pessoas a maneira com que você se enxerga. Essa externalização, apesar de extremamente íntima, nos é cobrada o tempo todo em uma vivência social. O tempo todo nós somos submetidos à autodeclaração.

Tanto é verdade que, caso eu peça para que você enumere quantas vezes ao longo de toda a sua vida foi cobrado que você assinalasse a sua cor em algum documento, provavelmente, você não saberia me responder. Foram tantas vezes, tantas burocracias vencidas e sem nenhum questionamento real quanto a isso, que está tudo bem você não se lembrar.

Some-se a isso o fato de que você possui parentes próximos que nitidamente são pardos, muitos deles até contando com documentos oficiais nos quais são reconhecidos como "pardos" ou "morenos".

Após anos de estudos, dedicação, anos almejando e sonhando com uma vaga em uma universidade pública do país, você recebe a notícia da aprovação. Depois desse momento de felicidade, começa novamente a fase de burocracias exigidas no momento da matrícula, como a apresentação de histórico escolar, documento de identidade, comprovante de residência e, é claro, o termo de autodeclaração.

Veja bem, você se declarou como pardo uma vida inteira, qual seria o sentido de não se declarar como pardo em um momento como esses? Sentido algum.

Após superada a matrícula na universidade, momento no qual você comparece pessoalmente para entrega dos documentos aos servidores públicos que lá trabalham, é permitido a você que comece o curso. Assim, você estuda regularmente período após período, cumpre matéria por matéria, enfrenta prova por prova. O seu desempenho precisa ser exatamente como é exigido pela universidade. Afinal, sem isso você não será aprovado.

No entanto, um fato novo acontece.

A aprovação nas disciplinas do curso não importa mais, seu desempenho acadêmico é reduzido a algo sem importância. Agora, o assunto é outro. Você não irá mais se formar porque a sua autodeclaração – realizada por você da mesma maneira durante toda a vida – é considerada fraudulenta.

Do dia pra noite, você se torna um fraudador de cotas em universidades públicas.

Para não dizermos que a coisa é tão absurda como parece, é importante informarmos que existe um processo dentro da universidade para que você seja declarado um fraudador.

Vamos resumir melhor o processo:

a) Você é submetido a uma banca de heteroidentificação, que não estava prevista no edital de ingresso na universidade e que irá ignorar como você se enxergou durante toda a sua vida — assim como o seu sentimento de pertença e também todos os elementos culturais que influenciaram você, aplicando irrestritamente o critério do fenótipo, que também não estava previsto em edital;

b) Após essa avaliação, você receberá uma decisão completamente genérica e sem fundamentação específica alguma dizendo que você não foi aprovado pela banca de heteroidentificação e que, por isso, a sua matrícula será cancelada. Além disso, a universidade pode comunicar aos demais órgãos para que você responda cível e criminalmente;

c) Você poderá interpor um recurso administrativo contra essa decisão, mas a universidade não tem um prazo para julgá-lo e, por óbvio, ela não precisará respondê-lo de forma fundamentada;

d) A sua matrícula é definitivamente cancelada.

Diante de um procedimento absurdo como esse, é razoável que você procure um advogado para acessar a justiça, certo? Já que o seu caso precisa de uma análise técnica e legítima. Veja bem, você não foi verdadeiramente escutado até aqui. Você não conseguiu que te ouvissem até você perder a sua matrícula na universidade por consequência de um processo absurdo que, sem direito real de defesa, considera você um fraudador.

O seu advogado leva a questão à justiça e questiona o processo ilegal pelo qual você passou na universidade. Além disso, apresenta documentos oficiais seus, como o cadastro civil realizado há mais de dez anos, em que a sua cor consta como parda. E não só isso, apresenta a documentação dos seus pais, em que os dois se declaram como pardos. Expõe fotos suas e de seus familiares. Entrega ao processo todos os elementos possíveis para restar esclarecido que você não é um fraudador.

No entanto, isso ainda não é o suficiente.

A justiça, por alguma razão, resolve não olhar os fatos como eles são. Muito pelo contrário, o mandado de segurança– mecanismo utilizado para combater flagrante violação à direito certo e claro de um indivíduo – é tratado com total descaso.

Logo no primeiro pedido realizado, pelo qual se solicitava a reintegração do aluno aos quadros da universidade, é proferida decisão no sentido de que a ação judicial proposta objetivava a modificação da decisão proferida pela Comissão de Heteroidentificação, e que isso não poderia ocorrer, já que a decisão da banca constituiria "mérito do ato administrativo no qual em princípio não cabe ao Judiciário intervir".

Dito de outro modo: o judiciário apenas ratificou uma decisão absurda e totalmente ilegal proferida em âmbito administrativo, ou seja, sequer foram analisados os elementos comprobatórios trazidos na ação judicial, dando prevalência ao ato administrativo realizado pela universidade. Isso tudo após um processo que, como já falamos, foi marcado por diversas ilegalidades.

Além disso, a mesma decisão estabelece que para avaliar a questão seria necessária a produção de provas, o que não é permitido por meio do mandado de segurança.

Veja bem, certo que toda a situação tomaria os mesmos rumos que o processo levou no âmbito da universidade, com decisões descabidas que sequer se atentaram aos fatos e provas, foi decidido trocar o tipo de ação no poder judiciário. Passou-se para uma ação ordinária, que nada mais é do que uma ação processual que permite um espaço maior para a produção de provas em juízo, que ajudariam a demonstrar ainda mais os absurdos das decisões proferidas tanto pela universidade, quanto pela justiça.

No entanto, apesar de nova tentativa com a possibilidade de produção de provas mais aprofundadas e robustas, os absurdos não cessaram.

Na primeira decisão proferida, o teor foi idêntico: o judiciário esquivou-se de julgar o caso com base na análise dos fatos e das provas, distanciando-se de sua real natureza.

Após recorrer de tal decisão igualmente descabida, chegamos a um nível de descrença quase inacreditável, pois a decisão proferida em 2º grau entendeu que, mesmo se não constasse a aferição pela banca de heteroidentificação no edital do vestibular do ano que o candidato entrou na universidade, instaurá-la anos depois era um ato legítimo.

Tal ponto ignora completamente a segurança jurídica que deve, por regra, envolver todas as situações celebradas dentro de um estado democrático de direito.

Como se não bastasse tal fato, ainda foi possível alcançarmos um ponto mais crítico da decisão, que se deu na parte em que o julgador do processo fundamenta com as seguintes palavras:

"Por fim, os elementos probatórios, consistentes em documentos pessoais com referência à "cor parda", em fotografias, no edital do vestibular da UFRJ e na resposta ao recurso administrativo interposto pelo aluno, não se evidenciam, de plano, afronta à dignidade da pessoa humana e da garantia ao contraditório e à ampla defesa, tão pouco desrespeito às disposições editalícias, capazes de macular o ato administrativo que cancelou a matrícula do agravante ingresso pelas vagas reservadas aos candidatos pardos."

Necessária se faz a seguinte indagação: se fotos que traduzem a realidade acerca da cor de pele parda do aluno, além de fotos que comprovem a cor de pele parda e negra de toda a sua família, ressaltando da maneira mais clara possível suas origens, o que mais seria necessário para comprovar a legalidade do aluno ao pleitear a vaga disponibilizada para cotas de candidatos negros ou pardos?

Além disso, como podem ser totalmente desconsiderados os documentos oficiais nos quais tanto o aluno quanto seus pais são classificados como pardos?

Não há dúvidas de que, ao contrário do entendimento do referido julgador, há severa violação à dignidade humana no caso desse aluno.

A recusa deliberada em avaliar a ascendência documentalmente comprovada do aluno certamente viola o princípio da dignidade da pessoa humana, pois se está negando o seu direito mais básico de pertencimento e de identidade racial, vez que é filho de pai e mãe pardos, conforme reconhecido em documentos oficiais.

E como se tudo narrado até então não fosse suficiente, após requerer a produção de provas dentro do processo, para comprovar que o aluno não é um fraudador, além de buscar que ele seja aceito novamente ao quadro de alunos da universidade, visto que já perdeu mais de 1 ano de aulas desde que cancelaram injustamente a sua matrícula, encaramos nova surpresa.

O julgador que inicialmente decidiu que a primeira ação não comportaria produção de provas, que repetiu a mesma decisão em segunda ação interposta justamente para atender ao pedido dele de produção das provas, após idas e vindas completamente injustas desse processo – características de quem claramente não dedicou o mínimo de tempo possível sequer para analisar a fundo a questão — , decidiu que novas provas não deveriam ser produzidas.

É exatamente isso, veja:

"O autor pretende a revisão do critério adotado pela universidade para análise do preenchimento de requisito para ingresso em cota. Trata-se de matéria eminentemente de direito, razão pela qual indefiro a prova pericial postulada."

Ou seja, a batalha para que pessoas responsáveis por julgar o seu futuro em uma universidade pública, por julgar se você cometeu fraude ou não, por decidir e julgar tudo o que há de elemento trazido a um processo administrativo e também judicial, é extremamente árdua.

Imagine passar por todas essas questões sem ser, de fato, escutado e, além disso, sem que seja permitido que você realmente seja ouvido.

Infelizmente o triste relato feito não é um caso isolado, mas apenas um exemplo em meio a tantos outros casos em que alunos pardos diariamente são tratados como não pardos pela sociedade e pela universidade.

Para piorar ainda mais a situação, o Poder Judiciário, que tem como principal finalidade justamente garantir o estrito cumprimento das leis, não somente corrobora os absurdos feitos pelas instituições de ensino, como dão ensejo a novas atrocidades a direitos mínimos garantidos pelas leis e pela própria Constituição.

Como advogado, e talvez um dos que há mais tempo luta em prol dos alunos perseguidos pelas famigeradas comissões de heteroidentificação, criadas após o ingresso dos estudantes, para aplicar critério que igualmente não estava previsto em edital, confesso que são vários os dias em que é difícil não se abater com tantas ilegalidades.

Imagine você ver que tudo aquilo que você aprendeu na faculdade desde o primeiro dia de aula, dos direitos e garantias mais essenciais previstos na constituição, tais como o princípio da legalidade, o princípio da dignidade da pessoa humana, o princípio da irretroatividade, e tantos outros, são simplesmente rasgados dia após dia, tanto pelas universidades, quanto por muitos magistrados.

Porém, por mais difícil que seja pra mim como advogado lidar com tantas ilegalidades, na mesma hora lembro que o meu abatimento não corresponde a 1% do que cada um dos tantos alunos injustamente tratados como fraudadores estão passando dentro de suas casas, junto com suas famílias.

Então, não há tempo a perder. Deixo o desânimo de lado e logo começo a pensar em outros mil argumentos e ferramentas para tentar reverter a situação

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  • é advogado, sócio-diretor do escritório CTAA, graduado pela Universidade Federal de Juiz de Fora, pós-graduado em Direito Médico, especialista em Concursos Públicos, Residência Médica e Cotas Raciais.

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