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Ronaldo do Lago: Uso moderado da força policial

5 de junho de 2022, 9h06

Por Ronaldo Assunção Sousa do Lago

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A crise do Estado moderno é produzida principalmente pelas transições havidas no seio da sociedade, na dinâmica das relações internacionais sobre o próprio Estado e sobre o direito, consistindo em desafios a serem enfrentados em nível global. Quando falamos de Estado falamos também de política, pois são conceitos indissociáveis, cabendo ressaltar que o Estado se torna responsável pela regulação das relações entre os membros da sociedade com igualdade, de forma que haja convivência social.

É consabido ser dever da polícia zelar pela segurança pública, pelo direito do cidadão de ir e vir e notadamente pela integridade física e moral da sociedade em geral.

Sem olvidar, a falta de investimento pelos governos nas forças de segurança pública culminou em uma polícia que causa, na maior parte da população, medo e desconfiança, resultado de operações desastrosas que resultaram, na maioria das vezes, em abuso de autoridade e no uso indevido ou excessivo de força, levando muitos cidadãos e também policiais a óbito. Assim, entende-se necessária a observância dos direitos fundamentais pela polícia como base para os demais direitos deles derivados.

Nesse sentido, surge a necessidade de apresentar o uso moderado da força policial em observância aos direitos fundamentais, consistindo no objetivo deste artigo discorrer sobre esse tema, que se apresenta de grande importância para a sociedade.

Direitos fundamentais
Os direitos fundamentais estão positivados no ordenamento constitucional de uma nação.

José Afonso da Silva utiliza o termo "direitos fundamentais do homem" para tratar desses direitos. Para cumprir efetivamente o Princípio da Dignidade da Pessoa Humana, segundo o ilustre doutrinador, é necessário que esses direitos sejam prerrogativas que o direito positivo concretize. Podemos afirmar que eles são os direitos básicos individuais, coletivos, sociais e políticos presentes na Constituição Federal.

Para Alexandre de Moraes, o direito à vida é o mais fundamental de todos os direitos, uma vez que é requisito para a existência de todos os demais, ensinando que da Lei Maior extrai-se a proteção em sentido duplo, tanto o de continuar vivo quanto o de ter uma existência digna.

A Constituição de 1988 aborda os direitos fundamentais entres os artigos 5º e 17º, mas não é exaustiva, daí porque falamos em direitos explícitos — expressos no ordenamento constitucional — e implícitos, dela decorrentes. O § 2º do artigo 5º contém a possibilidade de o sistema jurídico receber direitos oriundos de tratados dos quais o Brasil faça parte.

Uso moderado da força policial
O uso da força é um dos atributos disponíveis ao policial, devendo ser utilizada com coerência, precisão e em observância à legalidade (Senasp, 2009, p. 54):

"A força deve ser empregada de forma moderada, proporcional à gravidade da violação identificada e com intensidade estritamente necessária ao atendimento do objetivo que deve ser atingido. Qualquer desvio ou abuso, reprovados pelo consentimento público, e pela não observância dos limites legais será considerado uso excessivo da força, truculência e arbitrariedade, que levam à descrença e ao medo relacionado às instituições que deveriam respeitar estes limites e responsabilização pelo excesso."

O uso da força pelas polícias é um tema muito caro e delicado que, ao longo dos anos, se tornou um desafio para o Estado, visto que o Brasil vive uma "guerra civil" declarada, em que o crime organizado é mais bem armado do que as forças de segurança, o que nos leva a pensar qual seria a melhor estratégia que deve ser adotada para que o uso da força seja aplicado da melhor forma pelas polícias.

Nesse contexto, convém estabelecer qual é o nível ideal de força a ser utilizada pelas forças de segurança para garantir a integridade física, os direitos fundamentais e reduzir o número de mortes, tanto de civis como de policiais nas suas operações.

A Constituição de 1988 dispõe que a segurança pública não é dever apenas do Estado, mas também dever e responsabilidade de todos, consoante estabelecido no artigo 144.

Não há no Brasil uma lei que determine o quantum de força que pode ser usada pelas forças de segurança, com regras claras a serem direcionadas na formação e treinamento. Todavia, existe a previsão do artigo 23 do Código Penal, de forma a legitimar a força policial:

"Artigo 23. Não há crime quando o agente pratica o fato:
I – em estado de necessidade;
II – em legítima defesa;
III – em estrito cumprimento do dever legal ou no exercício regular de direito."

É bem sabido que o agente público, no desempenho de suas atividades profissionais, precisa interferir no âmbito privado de cidadãos, a fim de assegurar o cumprimento da lei, sendo que o uso da força é justificado na justa medida, com o fim de proteção do próprio agente ou de um terceiro.

Segundo Pontes e Ramires (2009, p. 22), existem alguns critérios para o uso da força: (1) adequação, exigindo que as medidas aplicadas pelo agente público sejam adequadas ao objetivo visado, (2) necessidade, em que o meio menos gravoso deve ser o escolhido pelo agente na execução de sua atividade, e (3) proporcionalidade em sentido estrito — razoabilidade —, em que efetivamente vai haver o juízo definitivo entre o resultado a ser alcançado, ponderando-se a intervenção aplicada.

Nesse sentido, deve haver adequação por parte do agente de segurança pública quanto ao uso da força, a qual deve ser utilizada de acordo com a necessidade da situação real. Não obstante, deve o agente avaliar qual tipo de força será útil para neutralizar a ação delituosa que coloque sua vida ou de outras pessoas em risco, de acordo com o cenário.

Força é toda intervenção compulsória sobre o indivíduo ou grupo de indivíduos, reduzindo ou eliminando a sua capacidade de alto-decisão. O nível de uso da força pode ser compreendido desde uma simples presença policial ou uma intervenção, até a utilização da arma de fogo em seu uso extremo, o uso letal.

O uso progressivo da força diz respeito à seleção adequada de opções de força pelos agentes de segurança pública como resposta ao nível de submissão do suspeito ou infrator a ser controlado. O Código de Processo Penal Militar dispõe, no artigo 234, sobre o emprego da força, uso de algemas e de armas.

Observa-se que o uso da força policial é permitido quando o agente se depara com situação contrária à lei e realizada por parte do suspeito, ofensor ou executor. Não obstante, verificamos que, em muitas ocasiões, a força é empregada de forma excessiva, notadamente na periferia.

Contudo, é sabido que o policial diariamente corre risco iminente de morte ao desempenhar sua profissão, necessitando se proteger e garantir também a integridade dos cidadãos que estejam em risco. Assim, em quase todas as operações policiais será necessário, em algum momento, o uso da força.

Nas ações policiais, o poder de polícia permite o uso da força, devendo obrigatoriamente ser revestido de legalidade, necessidade, proporcionalidade e conveniência.

O agente, antes de usar a força, precisa identificar o objetivo a ser atingido, e a ação deve observar os limites para que se torne eficaz. Além disso, o agente deve avaliar o momento exato de cessar a reação que foi gerada pela agressão injusta, quer dizer, a força deve ser proporcional à injusta agressão, e o que ultrapassar essa medida pode ser considerado abuso de autoridade.

A conveniência está ligada ao local e momento da intervenção, devendo o agente observar se sua ação gera riscos a terceiros, ou seja, se existe mais risco do que benefício, ainda que legal, necessária e proporcional.

A Secretaria Nacional de Segurança Pública traz um modelo básico do uso progressivo da força, com níveis baseados na intensidade do comportamento do agressor (Senasp, 2006), assim sintetizado: a) Presença física é a simples presença policial, diante de um comportamento de normalidade por parte de um agressor, onde não há necessidade da força policial; b) Verbalização é a comunicação, a mensagem transmitida pelo policial, utilizada diante de um comportamento cooperativo por parte do agressor, que não oferece resistência e obedece às determinações do policial; c) Controles de contato são as técnicas de conduções e imobilizações, inclusive por meios de algemas, utilizadas diante da resistência passiva do agressor, que age em um nível preliminar de desobediência (ele não acata as determinações, fica simplesmente parado); d) Controle físico é o emprego da força suficiente para superar a resistência ativa do indivíduo que desafia fisicamente o policial, como num caso de fuga, sendo que cães e agentes químicos podem ser usados; e) Táticas defensivas não letais consistem no uso de todos os métodos não letais, por meios de gases fortes, forçamento de articulações e uso de equipamentos de impactos, como os bastões retráteis, diante de uma agressão não letal pelo agressor, que oferece uma resistência hostil e física contra o policial ou pessoas envolvidas na situação; e f) Força letal é o mais extremo uso da força policial e só deve ser usada em último caso, quando todos os outros recursos já tiverem sidos experimentados. Nessa situação, o suspeito ameaça a vida de terceiros.

Conclui-se que o uso da força deve se desenvolver de forma gradativa, dependendo da situação apenas a presença do agente inibe o comportamento anormal de um agressor. No entanto, existem casos em que o agente não tem a opção inicial apenas de sua presença física e deve iniciar a contenção da situação através da força, que pode ser letal.

Defendemos que as forças de segurança devem utilizar a sua força de forma moderada, progressiva de forma segura, destacando-se que a preservação da vida é o mais importante em ações policiais.

Verifica-se que todos os modelos de uso progressivo da força defendem a utilização de técnicas menos agressivas, anteriormente ao uso de arma de fogo. O Ministério da Justiça (2006) traz os principais modelos e países de origem, conforme segue:

Flect, aplicado pelo centro de treinamento da Polícia Federal de Glynco, na Geórgia, Estados Unidos;

Gillespie, presente no livro "Police — Use of Force — A line officer's guide" (1988);

Remsberg, presente no livro "The Tactical Edge — Surviving High — Risk Patrol" (1999);

Canadense, utilizado pela polícia canadense (1990);

Nashville, utilizado pela polícia metropolitana de Nashville, Estados Unidos;

Phoenix, utilizado pelo Departamento de Polícia de Phoenix, Estados Unidos.

De acordo com o Ministério da Justiça (2006), três desses modelos devem ser utilizados pelas polícias brasileiras, uma vez que reproduzem nossa realidade operacional, a saber: Canadense, Flect e Gillespie.

Existem alguns países europeus que possuem equipes de policiais desarmados em seus patrulhamentos diários, como, por exemplo, a Grã-Bretanha, Irlanda, Islândia, Noruega e Nova Zelândia, locais onde os policiais patrulham desarmados e somente unidades especiais usam armas de fogo, e em situações específicas, destacando-se que essa atitude não gera aumento de homicídios por armas de fogo.

No Brasil, o modelo Flect é um dos modelos mais utilizados pela polícia militar, o qual impõe uma escala rigorosa em relação ao emprego da força, exigindo que a primeira opção seja a presença policial. Todavia, na maioria das ações os agentes ignoram essa opção e seguem para níveis elevados, chegando a usar, em vários casos, a última opção: a força letal.

Observa-se que a polícia — de modo inverso — usa a força letal como primeiro recurso em várias operações por conta da resposta dada pelos criminosos e também pela falta de treinamento adequado que abranja o uso moderado da força a ser aplicada nas operações.

Constata-se que o policial vive, assim como toda a sociedade, desconfiado em relação à sua segurança, tendo se tornado alvo fácil de organizações criminosas que, na maioria das ações, visam subtrair o armamento da polícia ou simplesmente matar um policial. Por isso afirmamos que o agente utiliza o último recurso indicado (força letal), ao invés de atender o primeiro estágio do plano de uso da força.

Salineiro (2016, p. 31) ensina que a segurança é um direito fundamental previsto na constituição, todavia, sua garantia não é missão simples, sobretudo porque a definição de segurança envolve problemas além da garantia da integridade física dos sujeitos.

Convém observar que o índice de confiança nas polícias não chega nem perto do ideal, ante o alto índice de crimes envolvendo milícias, abuso de autoridade, sequestros, extorsões e execuções, com envolvimento de agentes de segurança que juraram defender a sociedade e se utilizam do distintivo para praticar crimes.

Nesse contexto, entendemos que o Brasil deveria seguir o modelo praticado em alguns países, notadamente nos países europeus, que conseguiram reduzir a taxa de letalidade causada pela polícia mediante investimentos na política pública de ressocialização e prevenção, proporcionando oportunidades de desenvolvimento dos policiais, com treinamento específico em defesa pessoal e artes marciais. Segundo Carvalho (2017, p. 63), a "redução do índice da criminalidade de um local está diretamente direcionada à atuação do profissional da segurança pública, pois sua presença fardada ou uniformizada, por si só, reflete na diminuição do estímulo do pretenso infrator".

Nesse cerne, é notável que o Brasil deve implantar uma estratégia de segurança pública que aumente a confiança da população na polícia, a fim de inibir ações delituosas.

O policial, seja civil, militar ou federal, deve estar qualificado para o duro trabalho, necessita de treinamento técnico em artes marciais e defesa pessoal, tático e psicológico, a fim de que possa enfrentar a realidade do combate nas ruas. Ademais, o profissional de segurança pública deve, ainda, ter conhecimento geral sobre a lei, a fim de evitar a prática de abusos ou ilegalidade em suas ações, como as que acabamos de presenciar recentemente.