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Gisele do Vale: Entre as ruas e as casas legislativas

2 de junho de 2022, 11h05

Por Gisele Vicente Meneses do Vale

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O regime democrático está a experimentar dissabores no atual contexto histórico, mormente no que toca à crise de representatividade e o descrédito da população em relação à classe política [1]. É possível perceber, em todo o mundo, um processo de desgaste da política e, em especial, da própria democracia [2]. As pesquisas no campo da ciência política e do direito apontam que a democracia apresenta sintomas alarmantes, tais como: baixa participação eleitoral, diminuição da filiação a partidos políticos, distanciamento dos interesses de representantes e representados e diminuição da confiança tanto nos políticos quanto nos partidos e instituições políticas [3].

Nessa seara, o  estudo [4] de Hanna Pitkin sobre representação adota o procedimento epistemológico no intuito de traduzir o conceito em seus diferentes significados, buscando uma adequação histórica e teórica, enfatizando a dimensão política da representação. Nesse aspecto, dentro do escopo da representação política convencional, permanecerá um constante tensionamento entre o ideal da efetividade do sistema de representação e aquilo que é efetivamente alcançado.

Pitkin, em seu livro clássico The Concept of Representation, publicado em 1967, fornece uma das definições mais diretas com a qual se pode concordar, a saber:  representar é "fazer presente novamente". Nesta definição, a representação política é a atividade de reavivar as vozes, opiniões e perspectivas dos cidadãos nos processos de formulação de políticas públicas. Em outras palavras, a representação política ocorre quando os atores políticos falam, defendem, simbolizam e atuam em nome de outros na arena política [5].

Esse e outros argumentos revelam que, de acordo com os ensinamentos de Iris Marion Young, "muitas propostas recentes de maior inclusão política nos processos democráticos defendem medidas que propiciem mais representação dos grupos sub-representados, especialmente quando esses grupos são minorias ou estão sujeitos a desigualdades estruturais" [6]. Bueno e Dunning exemplificam isso quando afirmam que a força política sob a democracia está, pelo menos em parte, "nos números" [7]. No entanto, maiorias étnicas ou raciais nem sempre traduzem sua superioridade numérica em uma maior representação descritiva entre os políticos eleitos.

Nesse sentido, para Young "os indivíduos são mais bem representados quando os organismos de representação são plurais e quando os indivíduos têm relacionamentos plurais com os representantes, tanto nas associações civis quanto nas organizações políticas" [8]. Melissa Williams propiciar maior inclusão e influência aos grupos sociais sub representados pode contribuir para um enfrentamento e redução efetiva da desigualdade social estrutural [9]. Will Kymlicka também comunga desse mesmo argumento quando afirma que a representação especial de grupos sociais que de outra forma tenderiam a ser marginalizados se justifica na medida em que combate a discriminação sistemática tanto no sistema político quanto na sociedade em geral [10].

Young, nesse sentido, faz uma análise percuciente a respeito da representação dos grupos sociais quando afirma que "o compromisso com a igualdade política implica que as instituições e práticas democráticas tomem medidas explícitas para incluir a representação de grupos sociais cujas perspectivas provavelmente seriam excluídas das discussões, na ausência daquelas medidas" [11]. Nesse ponto, a agenda de pesquisa em que este trabalho se insere diz respeito às representações políticas a partir do potencial dos mandatos coletivos, enquanto medida de compromisso com as práticas democráticas, para incluir grupos sub representados nas arenas políticas.

Pelos mais diversos motivos, muitos países, especialmente na América Latina, vêm fazendo reformas para permitir o acesso e abertura a novos atores legitimados para a competição eleitoral no exercício da representação política [12]. Partindo desse pressuposto, há de se sublinhar que no atual cenário de inovação política para enfrentamento da crise de representatividade, os mandatos coletivos e compartilhados destacam-se como mecanismos alternativos no processo de formulação de alternativas e de tomada de decisão legislativa [13].

Noutro giro, nesse ambiente embrionário de inovações, surgem os mandatos coletivos, modalidade ainda em experimentação espontânea por candidatos e mandatários que assumem o compromisso de exercer o Poder Legislativo a partir de um processo participativo constante e determinante da vontade do parlamentar [14]. Esses mandatos podem ser entendidos como uma metodologia de compartilhamento do processo de formulação de projetos e leis, debate de matérias legislativas e posicionamentos políticos entre um representante legislativo e um grupo de pessoas.

Ou seja, os mandatos coletivos se configuram como um descortino inovador na realidade política, isso porque esse novo modelo de postulação reforça a experiência da coletividade. Tal fenômeno veio à baila justamente para agregar a pluralidade de grupos minoritários que não encontravam meios aptos para fazer ecoar as suas vozes nos espaços democráticos, habitados por uma maioria descompromissada com a efetivação dos direitos e garantias fundamentais.

O viés agregativo permite, por sua vez, que setores da sociedade, carentes de vozes política ou partidária, possam, através do adensamento de sinergias, erguer uma candidatura com potencial para representar determinada pauta na arena política. Como se vê, a intenção maior da formação de um mandato coletivo é fortalecimento da democracia, no sentido de permitir que várias tonalidades de vozes possam conjurar o mesmo coro na defesa de pautas minoritárias merecedoras de ocupar espaços de poder, para capilarizar a vontade do povo na ambiência dos poderes constituídos. Em tempos de erosão da vitalidade democrática, torna-se imperiosa a abertura de uma via alternativa para oxigenar e ampliar os espaços representativos com mandatos que reflitam e consolidem as pautas de lutas do campo democrático.

Há de se pontuar, ainda, que no Brasil a mobilização de setores da sociedade civil por maior participação política  que culminou com as Jornadas de Junho de 2013  não se transmudou no desenvolvimento genuíno de movimentos orgânicos de democratização dos mandatos legislativos – provavelmente pela própria rigidez imposta pelo modelo partidário vigente.

De acordo com estudo realizado pelo Pvblica (Instituto de Políticas Públicas), entre as eleições dos anos de 1998 e 2018, ao todo 94 candidaturas coletivas e compartilhadas concorreram em 110 campanhas aos cargos de Vereador, Deputado Estadual, Deputado Federal e Senador, dispersos em 50 cidades, 17 Estados e representando 22 partidos políticos distintos, atingindo a marca de 1.233.234 votos válidos [15].

Não obstante as experiências de candidaturas e mandatos compartilhados e coletivos possam ser observadas há mais de 20 anos no país, sua grande expansão se deu após as eleições de 2014 (quatro candidaturas e dois mandatos), com grande destaque para as eleições municipais de 2016 (70 candidaturas e 16 mandatos) e as eleições gerais em 2018 (28 candidaturas e seis mandatos). Em Pernambuco, por exemplo, o coletivo "Juntas" (PSOL) logrou êxito no pleito de 2018, para exercer o mandato coletivo na Assembleia Legislativa de Pernambuco (Alepe), tendo recebido cerca de 40 mil votos.

Não se pode olvidar do expressivo número de votos depositados nesses mandatos, o que denota, de logo, estarem sob o manto da legitimidade e representatividade democrática. Portanto, a presente temática diz respeito ao debate das transformações das representações políticas a partir da experiência dos mandatos coletivos. Desse modo, aprofundar o debate sobre os mandatos coletivos, especialmente nos tribunais eleitorais, pode significar um instrumento para minorar o distanciamento entre o caráter volitivo das ruas e dos parlamentos.

Para as eleições deste ano (2022), na composição do nome de candidata ou candidato que promova coletivamente sua candidatura, será possível incluir o nome do grupo ou coletivo a que se vincula. Essa possibilidade foi estabelecida pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE), que aprovou alterações na Resolução 23.609/2019, a qual estabelece um novo regramento para o registro de candidatos nas eleições. Assim, o TSE sinaliza positivamente para o reconhecimento das candidaturas coletivas.

Notadamente, as experiências de mandatos coletivos no Brasil contribuem para a democratização da política, na medida em que significam uma alternativa mais diversa e inclusiva de representação parlamentar. Desse modo, os mandatos coletivos comprometidos com os direitos humanos em suas pautas e atuações (nas comissões parlamentares, audiências públicas, projetos de lei propostos e que são pertencentes às minorias e movimentos sociais), desafiam práticas e contornam a crise da democracia representativa.

Nessa esteira, para Saward o termo "inovação democrática" expressa um compromisso crítico com os valores democráticos da participação popular e da igualdade política, aliados a um imperativo para os teóricos articularem e analisarem novas soluções para os problemas da democracia [16]. Por isso, pesquisar sobre a eficiência dos mandatos coletivos e observar de que modo suas atuações podem  implementar uma agenda de direitos humanos é importante na medida em que o Brasil tem sido um terreno fértil para esse tipo de inovação.

Destarte, no atual cenário de inovação política para o enfrentamento da crise de representatividade, os mandatos coletivos emergem como uma alternativa para evitar o distanciamento com a vontade dos eleitores que representam o mandatário. Nessa esteira, o aprimoramento do sistema democrático de governo necessita de reestruturação e os mandatos coletivos podem ser um instrumental para fazer com que a democracia seja mais tonificada, contando com maior nível de participação.

Referências
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MEZZAROBA, Orides. O estado de partidos como alternativa para a crise do modelo liberal de representação política. Revista Paradigma. 2011, p. 116.
PITKIN, Hanna. The concept of representation. Berkeley: University of California Press, 1971.
SCHMITTER, Philippe C. Reflections on political meritocracy: its manipulation and transformation. In: BELL, Daniel A.; LI, Chenyang (Eds.). The east Asian Challenge for 88 Democracy: Political Meritocracy in Comparative Perspective. New York: Cambridge University Press, 2013.
RAPS. Rede de Ação Política pela Sustentabilidade. Mandatos coletivos e compartilhados: desafios e possibilidades para a representação legislativa no Século XXI. São Paulo: RAPS/ Arapyaú/Udesc, 2019.
SAWARD, Michael. Democratic innovation: deliberation, representation and association. Londres: Routledge, 2003.
SECCHI, Leonardo.; CAVALHEIRO, Ricardo Alves.; ITO, Leticia Elena.; PAGANELA, Saulo Francisco.; SILVA, Willian Quadros da. Mandatos coletivos e compartilhados: inovação na representação legislativa no Brasil e no mundo. Pvblica – Instituto de Políticas Públicas. Fevereiro de 2019.
SECCHI, Leonardo, LEAL, Leonardo, REZENDE, Débora, CAVALHEIRO, Ricardo A., LÜCHMANN, Ligia. As candidaturas coletivas nas eleições municipais de 2020: análise descritiva e propostas para uma agenda de pesquisa sobre mandatos coletivos no Brasil. Zenodo, 9 jan. 2020. Disponível em: <http://editora.iabs.org.br/site/index.php/portfolio-items/as-candidaturas-coletivas-nas-eleicoes-municipais-de-2020-analise-descritiva-e-propostas-para-uma-agenda-de-pesquisa-sobre-mandatos-coletivos-no-brasil/> Acesso em: 10 set. 2021.
TAROUCO, Gabriela; DUQUE, Débora, CAVALCANTI, Renata. Regulação Partidária e os novos atores da representação política na América Latina. Desafíos democráticos latinoamericanos en perspectiva comparada / Alfredo Fernández de Lara Gaitán… [et al.]; compilado por Juan Bautista Lucca ; Renata Peixoto de Oliveira ; Alfredo Fernández de Lara Gaitán .
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[1] MEZZAROBA, Orides. O estado de partidos como alternativa para a crise do modelo liberal de representação política. Revista Paradigma. 2011, p. 116.

[2] FUNG, Archon, WRIGHT, Erik Olin. Thinking about empowered Participatory Governance, in FUNG, Archon, WRIGHT, Erik Olin, Deepening Democracy: Institutional Innovations in Empowered Participatory Governance. London: Verso, p. 61, 2003.

[3] SCHMITTER, Philippe C. Reflections on political meritocracy: its manipulation and transformation. In: BELL, Daniel A.; LI, Chenyang (Eds.). The east Asian Challenge for 88 Democracy: Political Meritocracy in Comparative Perspective. New York: Cambridge University Press, p. 40, 2013.

[4] PITKIN, Hanna. The concept of representation. Berkeley: University of California Press, p. 53, 1971.

[5] SECCHI, L.; CAVALHEIRO, R. A.; SILVA, W. Q.; PAGANELA, S. F.; ITO, L. E. "Mandatos Coletivos e Compartilhados: Desafios e possibilidades para a representação legislativa no século XXI". Instituto Arapyaú [2019], p. 9. Disponível em: https://www.raps.org.br/2020/wp-content/uploads/2019/11/mandatos_v5.pdf. Acesso em: 13/11/2020.

[6] YOUNG, Iris Marion. Representação política, identidade e minorias. Lua Nova. Revista de Cultura e Política, v. 67, p. 140, 2006.

[7] BUENO, Natália S.; DUNNING, Thad. Race, resources, and representation Evidence from Brazilian politicians. WIDER Working Paper, p. 1, 2016.

[8] YOUNG, Iris Marion. Representação política, identidade e minorias. Lua Nova. Revista de Cultura e Política, v. 67, p. 173, 2006.

[9] WILLIAMS, Melissa. Trust and memory: marginalized groups and the failure of liberal representation. Princeton: Princeton University Press. p. 194, 1998.

[10] KYMLICKA, Will. Multicultural citizenship. Nova York: Oxford University Press. p. 223, 1996.

[11] YOUNG, Iris Marion. Representação política, identidade e minorias. Lua Nova. Revista de Cultura e Política, v. 67, p. 180, 2006.

[12] TAROUCO, Gabriela; DUQUE, Débora, CAVALCANTI, Renata. Regulação Partidária e os novos atores da representação política na América Latina. Desafíos democráticos latinoamericanos en perspectiva comparada / Alfredo Fernández de Lara Gaitán … [et al.] ; compilado por Juan Bautista Lucca ; Renata Peixoto de Oliveira; Alfredo Fernández de Lara Gaitán .  1a edição  Rosario: UNR Editora. Editorial de la Universidad Nacional de Rosario, p. 244, 2017.

[13] SECCHI, L.; CAVALHEIRO, R. A.; SILVA, W. Q.; PAGANELA, S. F.; ITO, L. E. "Mandatos Coletivos e Compartilhados: Desafios e possibilidades para a representação legislativa no século XXI". Instituto Arapyaú, p. 11, [2019]. Disponível em: https://www.raps.org.br/2020/wp-content/uploads/2019/11/mandatos_v5.pdf. Acesso em: 13/11/2020.

[14] RAPS. Rede de Ação Política pela Sustentabilidade. Mandatos coletivos e compartilhados: desafios e possibilidades para a representação legislativa no Século XXI. São Paulo: RAPS/ Arapyaú/Udesc, p. 15, 2019.

[15] SECCHI, Leonardo.; CAVALHEIRO, Ricardo Alves.; ITO, Leticia Elena.; PAGANELA, Saulo Francisco.; SILVA, Willian Quadros da. Mandatos coletivos e compartilhados: inovação na representação legislativa no Brasil e no mundo. Pvblica  Instituto de Políticas Públicas. Fevereiro de 2019.

[16] SAWARD, Michael. Democratic innovation: deliberation, representation and association. Londres: Routledge, p. 21, 2003.