Opinião

Licenciamento ambiental em pauta no STF: análise sobre dispensa e inexigibilidade

Autores

  • é advogado e professor de Direito Ambiental da UFPB e da UFPE pós-doutor e doutor em Direito da Cidade pela Uerj com doutorado sanduíche junto à Universidade de Paris 1 — Pantheón-Sorbonne Membro do Instituto dos Advogados Brasileiros e vice-presidente da União Brasileira da Advocacia Ambiental.

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  • é advogado doutorando em Direito e Desenvolvimento pelo PPGD da FGV-SP mestre em Direito Internacional e Sustentabilidade pelo PPGD da UFSC e especialista em Direitos e Negócios Imobiliários e em Direito Ambiental e Urbanístico pelo Ibmec-SP.

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  • é graduanda em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina.

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31 de julho de 2022, 6h32

Por se tratar de um dos mais importantes instrumentos de proteção do meio ambiente, quiçá o mais importante de todos na prática, é evidente que o licenciamento ambiental está sujeito a divergências e potenciais judicializações. Em um cenário no qual o Supremo Tribunal Federal (STF) tem assumido cada vez mais o protagonismo nas demandas ambientais — vide a recente Pauta Verde — não é mais possível estudar nenhum instrumento de política ambiental sem compreender o que a Corte Maior pensa e as repercussões práticas das suas decisões.

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Considerando essas premissas, propomos, em uma série de três textos, investigar como o STF tem reagido a provocações relacionadas ao licenciamento ambiental, iniciando o presente artigo por uma análise quanto à possibilidade de dispensa do licenciamento. Na sequência, tratar-se-á acerca da simplificação dos seus procedimentos e, por fim, realizar-se-á um apanhado das demais oportunidades em que o STF se debruçou sobre o instituto [1].

Obrigatoriedade do licenciamento ambiental: dispensa ou inexigibilidade?
O licenciamento ambiental é o processo administrativo que visa analisar a viabilidade de determinada atividade ou empreendimento sob o aspecto ambiental, o que também leva em consideração questões de ordem social e econômica, objetivando, assim, impedir, mitigar ou compensar possíveis danos ambientais. Logo, é que a realização do procedimento influencia diretamente a realidade financeira de muitos empreendedores, não sendo poucas as críticas à excessiva burocracia e à falta de celeridade na sua tramitação. Sob essa ótica, a discussão quanto a obrigação de realizar o licenciamento ganha destaque.

O instrumento é previsto na Lei 6.938/1981, que criou a Política Nacional do Meio Ambiente (PNMA), sendo exigível para todas as atividades potencialmente capazes de causar degradação ambiental (artigos 9º, IV e 10, caput). Para definir quais empreendimentos são considerados potencialmente causadores de degradação ambiental, o Brasil adotou um modelo de listagem das atividades, cabendo ao Conama definir os critérios para a realização do licenciamento ambiental, conforme artigo 8º, I da PNMA e artigo 7º, I do Decreto 99.274/1990.

Nesse sentido, a Resolução Conama 237 de 1997, em seu Anexo I, listou uma série de atividades sujeitas ao licenciamento ambiental, algo seguido posteriormente pelos Conselhos Estaduais do Meio Ambiente. Sobre a natureza dessa listagem, algumas questões devem ser analisadas.

A primeira questão é que a listagem deve ser entendida como exemplificativa e não taxativa, pois ela meramente regulamenta a obrigação de atividades potencialmente causadoras de degradação ambiental realizarem o licenciamento. Aceitar uma natureza taxativa permitiria que atividades não listadas mas altamente poluidoras, por exemplo, fossem implementadas sem o crivo do instrumento, o que seria incongruente com a própria finalidade do instituto [2].

O segundo ponto é quanto à presunção existente na listagem. Entende-se que a listagem cria uma orientação aos órgãos públicos, possibilitando ao empreendedor demonstrar a inaplicabilidade do instrumento ao caso concreto. Assim, diante de elementos de natureza técnica, é possível o afastamento da atividade como potencialmente causadora de degradação ambiental, desde que de forma tecnicamente embasada. Nesse sentido, a listagem se configura como dotada de uma verdadeira presunção relativa, permitindo sua descaracterização de maneira individualizada, ainda que isso aconteça de maneira excepcional.

Considerando o possível afastamento da obrigatoriedade da exigência de licenciamento ambiental, duas possibilidades podem ser investigadas: (1) A desobrigação por meio de ato normativo, geralmente lei ou decreto, como uma espécie de desobrigação prévia de realizar o licenciamento ambiental; e (2) A desobrigação administrativa, na qual o órgão ambiental competente verifica o caso concreto para constatar que naquela situação específica não se deve exigir o licenciamento [3].

Em relação à primeira situação, a Lei Complementar 140/2011 prevê, atualmente, uma única hipótese de desobrigação prévia para os casos previstos no preparo e emprego das Forças Armadas (artigo 7º, inciso XIV, alínea "f") [4]. Porém, outras normas já previram essa desobrigação em situações diversas, especialmente em âmbito estadual [5].

Para analisar a questão do afastamento da incidência do licenciamento ambiental, propomos uma divisão conceitual em duas categorias: a dispensa e a inexigibilidade do licenciamento. Se uma atividade for efetiva ou potencialmente causadora de degradação ambiental, por força das disposições da PNMA, ela estará sujeita ao licenciamento ambiental. Caso uma norma ou decisão de órgão ambiental afaste essa obrigação, estar-se-á diante de uma dispensa de licenciamento ambiental. Ou seja, existe uma obrigação legal que está sendo afastada.

Por outro lado, caso uma atividade seja desobrigada de realizar o licenciamento ambiental, devido a constatação tecnicamente comprovada, por parte do órgão ambiental competente, de não se tratar de atividade potencialmente causadora de degradação ambiental, estar-se-á diante da hipótese de inexigibilidade do licenciamento. Não há, assim, afastamento da previsão legal existente na PNMA, tendo em vista que, em decorrência do não enquadramento, nunca houve obrigação de realizar o licenciamento ambiental. Conceitualizando: caso uma atividade não se inclua dentro da previsão disposta na PNMA, seu licenciamento é inexigível, uma vez que, por força da própria lei, este não deve ser realizado. Já se a atividade for potencialmente causadora de degradação e determinada norma ou ato afaste a obrigação de licenciar, há uma hipótese de dispensa de licenciamento ambiental [6].

Nosso objetivo, então, é compreender qual o entendimento do STF quanto à constitucionalidade das normas que envolvem o referido tema ao tratar da desobrigatoriedade prévia, bem como verificar se o STF tem feito a diferenciação entre esses conceitos [7]. Resta agora tratar dos acórdãos das ADIs 5.312/TO, 6.650/SC e 6.288/CE, que versam sobre a impossibilidade de dispensa do licenciamento ambiental [8].

ADI 5.312/TO
O primeiro acórdão a ser analisado consiste na ADI 5.312/TO, movida pela Procuradoria Geral da República (PGR) impugnando o art. 10 da Lei Estadual nº 2.713/2013 do estado do Tocantins. No caput, o mencionado artigo dispunha que "São dispensadas do licenciamento ambiental as atividades agrossilvipastoris". Pela redação, qualquer atividade agrossilvipastoril, independente do potencial de degradação, estaria, por força da lei, desobrigada a realizar o licenciamento ambiental. Da ementa do voto se retira que a possibilidade de complementação da legislação federal não permite que o Estado "dispense a exigência de licenciamento para atividades potencialmente poluidoras", uma vez que implicaria em uma "proteção deficiente ao direito fundamental ao meio ambiente ecologicamente equilibrado (art. 225 da CF)". A lei impugnada trazia uma hipótese de desobrigação prévia, e, ao não explorar o potencial de degradação das atividades agrossilvopastoris, acabou abrindo margem para a hipótese de dispensa do licenciamento.

ADI 6.650/SC
A ADI 6.650/SC, por sua vez, teve acórdão em sentido semelhante ao exarado na ADI 5.312/TO. O §1º do artigo 29 do Código do Meio Ambiente de Santa Catarina, Lei nº 14.675/2009, dispensava o licenciamento ambiental para atividades de lavra a céu aberto por escavação, usinas de britagem e atividades afins, desenvolvidas na área rural e destinadas para a utilização em estradas e acessos internos de imóveis rurais. O que se verifica é que o dispositivo não considerava o potencial degradador das atividades, definindo de forma genérica a desnecessidade de licenciamento. Este foi o entendimento exarado no voto ao afirmar que "A dispensa […] esvaziou o procedimento de licenciamento ambiental estabelecido na legislação nacional".

ADI 6.288/CE
A ADI 6.288/CE, ajuizada para questionar dispositivos da Resolução COEMA 2 de 2019, teve acórdão em sentido semelhante, embora a discussão aqui tenha sido um pouco mais complexa. É importante destacar que o artigo 8º e o anexo III estabeleceram mais de quarenta situações de dispensa de licenciamento ambiental, sendo possível destacar os projetos agrícolas de sequeiro com uso de agrotóxicos em áreas de até 30 hectares, os projetos de irrigação com uso de agrotóxico em áreas de até trinta hectares e o cultivo de flores e plantas ornamentais com uso de agrotóxico em áreas de até 20 hectares. O julgado reconheceu a impossibilidade de dispensa da exigência de licença ambiental no que diz respeito aos empreendimentos efetiva ou potencialmente poluidores. O STF entendeu que o artigo 8º criou uma hipótese de dispensa "para a realização de atividades impactantes e degradadoras do meio ambiente". Segundo o acórdão, houve violação do direito fundamental ao meio ambiente equilibrado e "Inobservância do princípio da proibição de retrocesso em matéria socioambiental e dos princípios da prevenção e da precaução". É claro que algumas atividades ali elencadas poderiam não ser enquadradas como efetiva ou potencialmente poluidora, como é o caso de algumas de porte inferior a micro, não sendo assim sujeitas ao licenciamento ambiental, e esse seria o caso de inexigibilidade. Por outro lado, desobrigar os empreendimentos por não constarem na listagem, que é majoritariamente reconhecida pela doutrina como exemplificativa, abriria a possibilidade de que empreendimentos potencialmente causadores de degradação ambiental tivessem o licenciamento dispensado. Nota-se que a decisão não se aprofundou sobre a diferença entre dispensa ou inexigibilidade, entendendo ambos os parágrafos impugnados como inconstitucionais. Houve também a "Interpretação conforme para resguardar a competência dos municípios para o licenciamento de atividades e empreendimentos de impacto local", pois o artigo 1º da norma questionada abrangia também os procedimentos efetuados pelos municípios. É patente a inconstitucionalidade da imposição de critérios, parâmetros e custos operacionais dos estados aos municípios, posto que isso fere a autonomia dos entes locais, os quais foram alçados à condição de membros da federação pela CF/88. A decisão serviu também para consagrar a autonomia municipal em relação às atividades de impacto ambiental local.

Considerações gerais e perspectivas futuras
O que se depreende da análise dessas ADIs é que o STF tem consolidado entendimento no sentido de impossibilitar a dispensa do licenciamento ambiental, isto é, desobrigar do procedimento atividades potencialmente causadoras de degradação ambiental. O entendimento é que isso afronta o artigo 225, §1º, V da Constituição, segundo o qual para assegurar a efetividade do direito ao meio ambiente cabe ao poder público "controlar a produção, a comercialização e o emprego de técnicas, métodos e substâncias que comportem risco para a vida, a qualidade de vida e o meio ambiente". Assim, a tendência é de que leis e demais normas que afastem a obrigatoriedade de realização do licenciamento ambiental sejam consideradas inconstitucionais pelo STF.

Por outro lado, a corte não tem trazido aos autos a discussão quanto à diferenciação entre inexigibilidade e dispensa, gerando por vezes um tratamento semelhante para ambas as terminologias. No entanto, se é verdade que a dispensa prévia via ato normativo abrangendo situações gerais é inconstitucional e não pode ser admitida, não se pode esquecer a inexigibilidade do licenciamento é possível no caso concreto e por decisão do órgão ambiental, que comprove que aquela atividade específica não é potencial nem efetivamente poluidora. Obviamente, terá de haver uma justificativa embasada em critérios científicos e parâmetros técnicos objetivos, não podendo jamais ser um ato de mera liberalidade.

Cabe o destaque ainda que até agora foram analisados apenas casos que versam sobre normas estaduais regulamentando a desobrigação, não existindo precedentes quanto a normas de âmbito federal. É importante essa diferenciação considerando que o Projeto de Lei Geral de Licenciamento Ambiental [9] e a PEC 65/2012 [10] propõem mudanças nesse sentido, isso para não falar da Lei 13.874 (Lei da Liberdade Econômica — LLE) e da Resolução CGSIM 51/2019. Desse modo, a discussão deverá voltar ao plenário do STF em breve, desta feita possivelmente com a análise de uma norma federal e, assim se espera, estabelecendo a distinção conceitual entre dispensa e inexigibilidade.


[1] Para a análise do comportamento do Tribunal, realizou-se uma pesquisa de jurisprudência, no portal do próprio STF, pesquisando pelo termo "licenciamento ambiental" e filtrando por acórdãos exarados em ADIs ou ADPFs. Dessa forma, não foram consideradas decisões monocráticas, sendo selecionados apenas acórdãos para análise. Ao todo, após o refino, foram separadas 19 decisões, sendo 3 acórdãos relacionados à dispensa de licenciamento, 6 relacionados à simplificação do procedimento de licenciamento (desses, 2 também tratavam de dispensa) e outros 12 que abordaram temas distintos.

[2] Os seguintes trabalhos, dentre outros, defendem que esse rol é exemplificativo: BIM, Eduardo Fortunato. Licenciamento ambiental. 5. ed. Belo Horizonte: Fórum, 2020; DESTEFENNI, Marcos. Direito penal e licenciamento ambiental. São Paulo: Memória Jurídica, 2004; FARIAS, Talden. Licenciamento ambiental: aspectos teóricos e práticos. 8. ed. Belo Horizonte: Fórum, 2022; FINK, Daniel Roberto; MACEDO, André Camargo Horta de. Roteiro para licenciamento ambiental e outras considerações. In: FINK, Daniel Roberto; ALONSO JÚNIOR, Hamilton; DAWALIBI, Marcelo (Org.). Aspectos jurídicos do licenciamento ambiental. 2ª ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2002; MACHADO, Auro de Quadros. Licenciamento ambiental. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2012.

[3] FARIAS, Talden. Licenciamento ambiental: aspectos teóricos e práticos. 8ª ed. Belo Horizonte: Fórum, 2022, p. 130.

[4] A desobrigação do licenciamento para os casos de preparo e emprego das Forças Armadas foi analisada no Parecer 066/2016/COJUD/PFE-IBAMA-SEDE/PGF/AG, aprovado pela Coordenadoria de Estudos e Pareceres e pela Chefia da Procuradoria Nacional do IBAMA, que entendeu que a isenção nesses casos é constitucional. De toda forma, há divergência sobre a matéria https://www.conjur.com.br/2020-ago-29/ambiente-juridico-licenciamento-ambientale-atividades-carater-militar.

[5] É o caso da Lei 13.874, conhecida como Lei da Liberdade Econômica – LLE (art. 3º, I, § 1º, I), da Lei 11.598/2007 (art. 4º, §5º), da Resolução CGSIM 51/2019, da Portaria 289/2013/MMA (art. 19, III) e de várias leis e decretos estaduais.

[6] A conceitualização de dispensa e inexigibilidade foi trabalhada mais profundamente em: SAES, Marcos André Bruxel; COSTA, Mateus Stallivieri da. Dispensa e Inexigibilidade de Estudo de Impacto Ambiental: A inconstitucionalidade da cobrança de EIA/Rima para atividades não causadoras de significativo impacto ambiental. In: SAES, Marcos André Bruxel; COSTA, Mateus Stallivieri da (Org). Questões Atuais do Direito Ambiental. São Paulo: Editora Ibradim, 2022. P. 221 – 228.

[7] Tendo em vista que a pesquisa filtrou acórdãos de ADIs e ADPF, não serão analisados casos em que houve a desobrigação administrativa, questão que deverá ser fruto de pesquisa posterior.

[8] A ADI 5.016/BA versa sobre a impossibilidade de dispensa da outorga de recursos hídricos prevista em lei estadual, tendo escopo e fundamentação parecida com a das três ADIs analisadas neste trabalho.

[9] Vide os arts. 8º e 9º do projeto de lei.

[10] A PEC propõe acrescentar o § 7º ao art. 225 da Constituição Federal a fim de assegurar a continuidade de obras públicas após a concessão da licença ambiental, dispondo que a apresentação do EIA/Rima importa autorização para a execução da obra, não podendo haver suspensão ou cancelamento a não ser em função de fato superveniente.

Autores

  • é advogado e professor da UFPB e da UFPE, doutor e pós-doutorando em Direito da Cidade pela Uerj, doutor em Recursos Naturais pela UFCG e mestre em Ciências Jurídicas pela Uerj.

  • é advogado e sócio do Saes Advogados, doutorando em Direito dos Negócios e Desenvolvimento Econômico e Social pela FGV-SP, mestre em Direito Ecológico e Direitos Humanos pela UFSC e especialista em Direito Ambiental e em Direito e Negócios Imobiliários pelo Ibmec-SP.

  • é estagiária no escritório Saes Advogados e graduanda em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina.

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