Opinião

Tráfico de pessoas: um lobo à espreita de nossa sociedade

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30 de julho de 2022, 6h06

O lobo-cinzento é um predador oportunista que, sozinho ou em bando, sempre busca a presa mais vulnerável para atacar. Persegue os integrantes mais fracos de um grupo para transformá-lo em sua próxima refeição.

Não por acaso, Thomas Hobbes escreveu, em sua obra "Do Cidadão", a célebre frase "o homem é lobo do homem". Ele aludia à capacidade humana de predação do semelhante.

Essa triste metáfora se encaixa perfeitamente no tráfico de pessoas, formalmente definido como:

"(…) o recrutamento, o transporte, a transferência, o alojamento ou o acolhimento de pessoas, recorrendo à ameaça ou uso da força ou a outras formas de coação, ao rapto, à fraude, ao engano, ao abuso de autoridade ou à situação de vulnerabilidade ou à entrega ou aceitação de pagamentos ou benefícios para obter o consentimento de uma pessoa que tenha autoridade sobre outra para fins de exploração."

Os traficantes, como seus correspondentes lupinos, atacam os estratos mais vulneráveis da sociedade. Segundo o Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (Unodoc), em seu Relatório Global sobre Tráfico Humano de 2020, mais da metade das vítimas se encontravam em situação de privação econômica, enquanto outros 20% eram de crianças oriundas de lares disfuncionais.

O tráfico reduz suas vítimas à condição de mercadoria, um ativo que pode ser utilizado ao bel prazer de quem o manuseia. O tráfico desumaniza as pessoas, transformando-as em objetos desprovidos de quaisquer direitos. Suas finalidades variam da adoção ilegal ao trabalho escravo, passando pela exploração sexual, servidão e até mesmo a remoção de órgãos.

Segundo um relatório da Organização Internacional do Trabalho (OIT), em 2016 havia 16 milhões de pessoas em trabalhos forçados no setor privado e cerca de cinco milhões exploradas sexualmente ao redor do mundo. Somados, esses grupos equivalem à população do Estado de Minas Gerais. Em 2005, a OIT estimava que esse "mercado" movimentava 32 bilhões de dólares.

Só em 2018, conforme o relatório da Unodoc, 50 mil pessoas foram traficadas ao redor do mundo, sendo 65% delas do gênero feminino. Do total de vítimas, 19% eram meninas e 15% meninos. Apenas 20% eram homens adultos.

O destino de metade das vítimas foi a exploração sexual, enquanto 38% foram submetidas a trabalhos forçados. Em geral, as mulheres são maioria no primeiro caso, enquanto os homens o são no segundo.

O Brasil não se encontra imune a esse mal. O Relatório Nacional sobre Tráfico de Pessoas 2017-2020, produzido pelo Ministério da Justiça e Segurança Pública, indicou que, entre 2018 e 2020, mais de duzentas vítimas foram resgatadas pela Polícia Federal. A ampla maioria delas pertencia ao gênero masculino, numa inversão da preponderância feminina verificada em nível mundial. Tal situação se explica pelo fato de haver, no Brasil, a prevalência do tráfico para exploração laboral.

Ressalte-se que a exploração sexual é a segunda finalidade do tráfico humano no país, embora esse crime tenha sido realizado por aqui com todos os fins possíveis, destacando-se o de remoção de órgãos, com mais de 100 ocorrências entre 2017 e 2020.

Os prejuízos sociais causados pelo tráfico são enormes, mas sua atuação é discreta. Os criminosos agem de forma relativamente sutil, enganando em alguma medida as vítimas, que cedem a promessas de uma vida melhor.

A estratégia aliciadora estende-se à Internet. Os traficantes aproximam-se de suas vítimas nas redes sociais ou por intermédio de anúncios de emprego. Os criminosos podem, assim, agir remotamente, estando até em país distinto do das vítimas.

De modo similar ao restante do mundo, alvos muito comuns são a população mais pobre e os migrantes estrangeiros, ambos os grupos carentes de políticas assistenciais mais efetivas no Brasil.

O Estado brasileiro tem avançado no que se refere a normativos que visam ao combate dessa prática. Não só ratificou em 2004 o Protocolo de Palermo, que trata do enfrentamento do Tráfico de Pessoas, como estabeleceu uma política nacional com essa finalidade em 2006. Dela derivaram três planos nacionais para combate a essa atividade, o último deles vigente entre 2018 e 2022. Também foi aprovada a Lei nº 13.344/2016 que tipifica o crime de tráfico humano.

A esses marcos normativos aliam-se estruturas dirigidas à defesa das vítimas, como os Núcleos de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas (NETP) e colegiados interministeriais como o Conselho Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas (Conatrap).

A ideia principal por trás desse apanhado de iniciativas é estabelecer ações articuladas de todas as esferas de governo, em conjunto com a sociedade civil e autoridades estrangeiras, com a finalidade de aumentar a eficiência no combate ao tráfico humano. Os conceitos de prevenção ao crime, proteção das vítimas e persecução dos delinquentes atuam como balizas desse esforço cooperativo.

Nesse sentido, a Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão (PFDC), órgão do Ministério Público Federal (MPF), estabeleceu conexões institucionais, visando contribuir com transformações sociais positivas para o país. Resguardar e defender os direitos humanos significa também agregar pessoas, entidades, em torno de objetivos comuns que garantam a dignidade do ser humano.

Em 2020, a PFDC priorizou a prevenção ao tráfico de pessoas em seu planejamento, destinando uma Relatoria Temática (RT) para acompanhar o assunto.

Além disso, em virtude da assinatura de uma declaração conjunta, elaborada no âmbito da Associação Ibero-americana de Ministérios Públicos (AIAMP), a PFDC resolveu unir esforços com as 2ª e 5ª Câmaras de Coordenação e Revisão (CCRs) e a Secretaria de Cooperação Internacional (SCI), participando de GT Intercameral criado com o fim de discutir o vínculo entre o tráfico humano e a corrupção. Ao coordenador da RT coube a representação da Procuradoria nesse grupo.

É importante ressaltar o especial foco do grupo nos delitos de corrupção vinculados ao tráfico humano. A experiência internacional mostra forte correlação entre os dois delitos, a ponto de o tráfico depender da corrupção de agentes públicos para existir. No Brasil, não tem havido procedimentos judiciais ou extrajudiciais que ataquem o conjunto dessas práticas.

Em parceria com o Unodoc, um estudo foi elaborado visando à criação, na estrutura do MPF, de unidades especializadas no enfrentamento ao tráfico de pessoas. Além de apresentar unidades adotadas em outros países, a pesquisa trouxe recomendações concretas de possíveis modelos organizacionais a serem adaptados e implementados no Brasil.

O estudo sugere que tais unidades disponham de profissionais especializados na temática, com dedicação exclusiva das áreas de serviço social, psicologia e antropologia, para o acompanhamento, a escuta qualificada e o suporte emocional das vítimas.

Essa equipe seria capaz de identificar as situações de tráfico, atuando junto às vítimas de modo mais eficiente e protetivo, evitando a revitimização dessas pessoas, ao mesmo tempo em que obtém delas as informações necessárias ao indiciamento dos criminosos.

Enfrentar o tráfico de pessoas é tarefa bastante complexa. A discrição no processo de aliciamento e a grande dependência do testemunho das vítimas dificultam a persecução penal dos malfeitores. Por vezes, as pessoas traficadas receiam falar sobre os abusos sofridos, devido ao medo de retaliação dos criminosos, à ignorância sobre sua condição de vítima ou ao temor das autoridades públicas.

Destaque-se a necessidade de uma melhor proteção das vítimas, cuidando de sua reinserção social. Especialmente no caso de migrantes internacionais, que têm a dificuldade adicional das barreiras culturais e linguísticas a superar.

É importante buscar, no âmbito da articulação esperada a partir da Política Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas, um maior compartilhamento e unificação de dados relativos a essa prática, em âmbito nacional e internacional. Conhecer adequadamente a ação dos criminosos é essencial ao seu impedimento.

Também é relevante identificar e combater a corrupção de agentes públicos, uma vez que ela é um requisito sem o qual o tráfico de pessoas não prospera. Interrompendo-se a ação dos corruptores, asfixia-se a atividade dos traficantes.

Faz-se igualmente indispensável um maior esforço social para diminuir a situação de vulnerabilidade de nossa população. Uma vez que a pobreza cria ambiente favorável ao aliciamento, reduzi-la terá impacto substantivo na ação dos delinquentes.

Da mesma forma, campanhas educacionais a respeito desse delito são fundamentais para a conscientização de novos alvos potenciais e da sociedade como um todo.

Por último, seria de enorme valia a efetiva criação, no âmbito do MPF, de unidades multidisciplinares especializadas no enfrentamento ao tráfico de pessoas e crimes a ele vinculados, cabendo destacar suas três atividades principais: 1) investigação responsável pelo acompanhamento dos processos de tráfico transnacional recebidos pela unidade; 2) articulação interinstitucional para cooperação internacional, a participação em instâncias de debate da política pública e contato com a sociedade civil; 3) e geração de conhecimento referente à organização da coleta de informações sobre o crime, a padronização dos protocolos utilizados por membros do MPF e produção de relatórios periódicos sobre a atuação da unidade.

Isso ampliaria a capacidade de atuação do Estado, aumentando a qualidade dos dados coletados e aprimorando a articulação com atores nacionais e internacionais, bem como com a sociedade civil. Tudo isso resultaria em uma resposta estatal mais contundente a esse crime.

O tráfico de pessoas é um crime eminentemente predatório. Os traficantes, esses lobos predadores, refestelam-se na miséria humana, caçam as pessoas mais desprotegidas, mais ignorantes, mais vulneráveis. É hora de nos organizarmos para inverter o sentido dessa caçada, proteger quem precisa e levar essa alcateia (des)humana para longe de nossa sociedade.

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