Opinião

Considerações sobre o Tema 1.199: (ir)retroatividade das alterações da 14.230

Autor

  • Marcelo Malheiros Cerqueira

    é mestre em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e em Direito Constitucional pela Universidade de Sevilha na Espanha procurador da República membro do Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado (Gaeco/MPF/MG) e orientador pedagógico e capacitador da Escola Superior do Ministério Público da União (MPU).

29 de julho de 2022, 19h16

A Lei nº 14.230/2021 modificou drasticamente o regime sancionatório da improbidade administrativa disciplinado na Lei nº 8.429/92 (LIA). Seu principal propósito foi o de assegurar previsibilidade a gestores públicos e empresários. Contudo, o texto final da lei tornou-se em muitos pontos incoerente e disfuncional, inviabilizando a própria tutela da probidade administrativa. Há, por isso, vários e pertinentes questionamentos sobre sua constitucionalidade, seja na via difusa ou concentrada (ADIs nºs 7.042 e 7.156).

Além da matéria afeta ao controle de constitucionalidade, a Lei nº 14.230/2021 imediatamente suscitou controvérsia a respeito da sua retroatividade. A repercussão geral já foi reconhecida pelo STF (Tema 1.199), com julgamento pautado para o início de agosto.

O texto legal poderia ter previsão expressa de retroatividade  desde que proporcional e não atentatória a direito adquirido, ato jurídico perfeito ou coisa julgada (artigo 5º, XXXVI, da CR/88). Um exemplo de determinação infraconstitucional nesse sentido é o do CTN, em seu artigo 106. A omissão, uma vez existente, não pode ser ignorada nem superada por raciocínios simplistas, como a invocação de valores humanitários ou do princípio da dignidade da pessoa humana. A aplicação retroativa da lei benéfica implica juízo de ponderação favorável à igualdade, porém prejudicial à segurança jurídica — um valor que a própria Lei nº 14.230/2021 buscou concretizar.

Há problemas práticos na retroação da nova LIA. Muitas das suas normas materiais e processuais são claramente favoráveis aos sujeitos ativos da improbidade, porém algumas são desfavoráveis. Há casos de disposições incongruentes entre si, que geram perplexidades hermenêuticas (exemplo: artigo 1º, §2º, e artigo 11, §§1º e 2º). Tudo isso sem mencionar as patentes inconstitucionalidades e inconvencionalidades [1]. Elas podem ou não ser reconhecidas judicialmente de modo difuso, gerando tratamentos distintos até que o STF se pronuncie definitivamente sobre a matéria.

O problema das normas prescricionais na nova LIA é particularmente sensível. Fixou-se prazo de prescrição intercorrente de quatro anos, em patamar significativamente inferior ao do prazo para exercício da pretensão em juízo (artigo 23, caput e §5º, da LIA). Além dessa assimetria interna da lei, o patamar fixo para a prescrição intercorrente não tem relação de proporcionalidade com os montantes das penas a serem aplicadas ou a gravidade das condutas ímprobas imputadas em cada caso.

As normas prescricionais, incluindo a nova modalidade intercorrente, incidiriam sobre investigações e processos que tramitaram de forma legítima sob a vigência do diploma anterior. Essa tramitação consumiu tempo e recursos públicos dos órgãos de investigação e do Judiciário. Admitir a retroação de prazos prescricionais benéficos nesses moldes feriria frontalmente a segurança jurídica da atuação estatal. Não é razoável fazê-lo em nome da isonomia, sobretudo no caso de condutas que tenham mantido sua continuidade típico-normativa (e, por consequência, seu desvalor ético-valorativo) na nova legislação. Ademais, a medida pode gerar situações teratológicas se for considerado que improbidades mais simples possivelmente já foram julgadas sob a vigência da lei anterior; logo, as mais graves e complexas seriam preponderantemente atingidas pela aplicação retroativa da lei.

Embora omissa sobre sua retroatividade, a Lei nº 14.230/2021 determinou a aplicação dos princípios constitucionais do Direito Administrativo Sancionador (artigo 1º, §4º, da LIA). Amparada nesse dispositivo, parcela da doutrina tem invocado a incidência, por simetria, de princípios de natureza penal  dentre eles o da retroatividade da lei mais benéfica. A extensão ocorreria ao texto da nova LIA de forma irrestrita, alcançando disposições materiais, processuais e híbridas.

A tese não foi criada especificamente para o sistema brasileiro da improbidade administrativa. Sua mais completa formulação remete ao direito espanhol, cuja Constituição de 1978 incorporou no seu artigo 25.1 a concepção unitária do poder punitivo estatal exercido por meio do Direito Penal e do Direito Administrativo Sancionador (DAS) [2]. Nessa visão, como as instâncias repressivas possuem a mesma origem, elas são ontologicamente idênticas; consequentemente, os princípios do Direito Penal devem se projetar para o DAS.

A doutrina da unidade ontológica do Direito Penal e do DAS teve aceitação em outros ordenamentos jurídicos, especialmente na América Latina. Desde a década de 90, porém, suas premissas e consequências vêm sendo questionadas. A crítica, desenvolvida a partir do trabalho pioneiro de Alejandro Nieto, funda-se no argumento de que os ilícitos (penais ou administrativos) são normativos. Assim, do suposto vínculo ontológico de ambas as manifestações do poder estatal (Direito Penal e DAS) não decorre, necessariamente, a identidade de regime jurídico [3]. Mais que isso, o DAS requer que suas nuances sejam consideradas e valoradas em apartado, sob pena de prejuízo ao funcionamento eficiente da máquina administrativa. É necessário conciliar vetores garantistas com a finalidade ínsita ao DAS de realização de interesses públicos, cujo dinamismo não pode ser obstaculizado por um regime excessivamente rígido, típico do Direito Penal.

Prenuncia-se que uma das posições a serem sustentadas no julgamento do Tema 1.199, a favor da retroatividade, é a de que os princípios penais devem ser projetados para o DAS. Esse argumento foi aventado pelo ministro Teori Zavascki, quando vencido no julgamento da Pet nº 3.240 AgR [4], bem como pelo ministro Gilmar Mendes, no voto que proferiu como relator na Rcl 41.557/SP [5].

Porém, a importação acrítica da teoria da unidade ontológica à realidade brasileira é problemática.

Primeiro, porque é uma teoria defensiva, que nasce atrelada a questões históricas: na Espanha, para combater o arbítrio estatal na imposição de sanções, no contexto das monarquias do século XIX e da ditadura franquista (1939-1975) [6]; no Tribunal Europeu dos Direitos Humanos, para viabilizar a aplicação de dispositivos da Convenção Europeia de Direitos do Homem a sanções que foram definidas em ordenamentos internos como administrativas [7].

O combate ao arbítrio estatal é louvável. Entretanto, as premissas teóricas derivadas da unidade ontológica do poder estatal, como apontado, são frágeis e potencialmente danosas ao funcionamento regular da Administração Pública [8]. Em um Estado Democrático de Direito, a configuração institucional deve ser suficiente, por si só, para conter arbitrariedades do Executivo  principalmente pela garantia de independência do Poder Judiciário.

Em segundo lugar, nenhuma teoria pode ignorar o fato de que a base normativa do poder punitivo estatal, no Brasil, é a Constituição de 1988. Diferentemente do caso espanhol, não há qualquer disposição que proponha tratamento simétrico entre sanções penais e administrativas; pelo contrário, há garantias que são previstas especificamente para o Direito Penal. Essa singularidade deriva da perspectiva de que o sistema penal representa a ultima ratio no sancionamento de condutas com elevado desvalor ético-valorativo. Em alinhamento com tal característica, somente ele comporta a possibilidade da mais grave sanção prevista no ordenamento jurídico: a privação da liberdade.

Some-se a isso que o regime sancionatório da improbidade, diferentemente dos demais casos sujeitos à disciplina do DAS, comporta uma garantia expressiva contra eventuais abusos na sua aplicação: a natureza jurisdicional. Essa é a principal contrapartida constitucional para o rigor das sanções previstas no artigo 37, §4º, da CR/88. Na doutrina típica do DAS, de matriz espanhola, o que se tem em mira é a contenção do arbítrio na aplicação de sanções por órgãos da Administração Pública, e não pelo Judiciário.

A pergunta que se deve fazer quanto à nova LIA é a seguinte: no caso da Constituição brasileira, há sustentação normativa para a transposição de princípios e garantias concebidos exclusivamente para o Direito Penal, como é o caso da retroatividade da lei mais benéfica?

A partir do disposto no artigo 20 da LINDB [9], o STF poderá chegar a uma solução restritiva ad hoc: inquéritos e ações de improbidade em curso deverão ser preservados frente a uma lei recheada de inconstitucionalidades e incongruências, especialmente quanto às suas normas prescricionais. Mas esse recurso sequer é necessário. A interpretação do texto constitucional, por diferentes métodos (histórico, literal e sistemático), aponta para a resposta negativa à referida indagação.

Do ponto de vista histórico, deve-se lembrar que houve tentativa de se atribuir natureza penal ao regime sancionatório da improbidade na Assembleia Nacional Constituinte. Dentre as emendas nesse sentido, a mais emblemática foi a proposta pelo constituinte Hélio Costa. Seu objetivo, sob o olhar garantista atualmente predominante na LIA, pode soar um tanto anacrônico: tratar os atos de improbidade como "crimes inafiançáveis" [10]. A proposição não alcançou maioria absoluta, porém teve número expressivo de votos a seu favor (154 votos, de um total de 440). Ao final, prevaleceu a proposta original de distinção entre os dois sistemas sancionatórios, assim defendida pelo relator, Bernardo Cabral: "[…] nem todo ato de improbidade poderia importar num crime para se tornar inafiançável. Por esta razão é que se diz no texto do Centrão: ‘sem prejuízo da ação penal cabível'" [11].

Como decorrência da argumentação acima, a literalidade do texto constitucional não pode ser desprezada. O preceito do artigo 37, §4º, da CR/88 não contém palavras inúteis. Ele expressamente determina a independência entre o regime sancionatório da improbidade e o das ações penais. Qualquer tentativa de relativizar essa independência a ponto de justificar suposta unidade ontológica deve ser considerada inconstitucional  além de, na forma como feita na atividade legislativa que culminou na reforma da LIA, apontar para possíveis voluntarismos ad hoc.

A referida independência foi sistematicamente respeitada pela CR/88. A suspensão de direitos políticos restou prevista como sanção do sistema da improbidade tanto no artigo 37, §4º, quanto no artigo 15, V. O que chama atenção, neste último caso, é que a mesma sanção foi estabelecida em apartado para a esfera penal (artigo 15, III). Guardando coerência com essa separação, a Constituição disciplinou garantias e institutos de forma específica para o Direito Penal, como no artigo 5º, XII, XL e LVII, além dos numerosos casos de foros especiais criminais por prerrogativa de função. Não há base normativa para estender tais previsões a outros ramos do Direito.

Finalmente, a natureza cível do sistema da improbidade administrativa encontra-se consolidada na jurisprudência do STF [12] e do STJ [13]. Depois de quase duas décadas de discussão, foi definitivamente superada a tese do "forte conteúdo penal" das ações de improbidade [14]. Por meio dela, buscava-se estender àquele sistema os foros criminais por prerrogativa de função previstos na Constituição ou blindar agentes políticos da sujeição ao duplo regime sancionatório (improbidade e infrações político-administrativas). Todas essas pretensões foram rechaçadas, conforme irretocável síntese do ministro Edson Fachin: "A gravidade das sanções previstas pelo próprio texto constitucional aos atos de improbidade é corolário do locus primordial que o texto consagra à moralidade administrativa, mas sua natureza ainda é cível" [15].

De todos os argumentos acima expostos, conclui-se que não deve ser extraída, da determinação do artigo 1º, §4º, da LIA, uma larga e automática projeção de princípios penais sobre o sistema da improbidade. Essa assertiva torna-se mais enfática para o caso daqueles princípios que o texto constitucional teve o cuidado de reservar apenas ao âmbito penal, do que é exemplo a retroatividade da lei mais benéfica.

 


[1] A propósito da incoerência sistêmica e das inconstitucionalidades / inconvencionalidades da Lei nº 14.230/2021, cf. CERQUEIRA, Marcelo Malheiros. Comentários à Lei de Improbidade Administrativa: interpretação constitucional em consonância com a eficácia jurídica e social / Organizadores: PAULINO, G. C.; SCHOUCAIR, J. P. S.; CERQUEIRA, M. M.; BALLAN JUNIOR, O. São Paulo: Juspodivm, 2022, p. 19-48.

[2] (Constituição espanhola) Artigo 25.1. Ninguém poderá ser condenado ou sancionado por ações ou omissões, caso não se configurem como delito, falta ou infração administrativa no momento de sua produção, de acordo com a legislação vigente naquele momento.

[3] Nieto, Alejandro. Derecho administrativo sancionador. 4. ed. Madrid: Tecnos, 2005, p. 154-155.

[4] STF, Pleno, Pet 3240 AgR, relator ministro Teori Zavascki, Rel. p/ Acórdão ministro Roberto Barroso, j. em 10/05/2018. Íntegra do acórdão, p. 18-20.

[5] STF, 2ª Turma, Rcl 41.557/SP, relator ministro Gilmar Mendes, j. em 15/12/2020. Íntegra do acórdão, p. 8-9.

[6] VORONOFF, Alice. Direito Administrativo Sancionador no Brasil: justificação, interpretação e aplicação. Belo Horizonte: Fórum, 2018, p. 204.

[7] VORONOFF, Alice. Direito Administrativo Sancionador no Brasil: justificação, interpretação e aplicação. Belo Horizonte: Fórum, 2018, p. 206.

[8] Para uma visão crítica dos resultados do garantismo exacerbado no direito espanhol, cf. Nieto, Alejandro. Derecho administrativo sancionador. 4. ed. Madrid: Tecnos, 2005, p. 567-569.

[9] (LINDB) "Artigo20. Nas esferas administrativa, controladora e judicial, não se decidirá com base em valores jurídicos abstratos sem que sejam consideradas as consequências práticas da decisão. Parágrafo único. A motivação demonstrará a necessidade e a adequação da medida imposta ou da invalidação de ato, contrato, ajuste, processo ou norma administrativa, inclusive em face das possíveis alternativas".

[10] ASSEMBLEIA NACIONAL CONSTITUINTE. Projeto de Constituição (A): Emendas Oferecidas em Plenário. Volume I – Emendas nº 2P00001-1 a 2P00948-4, jan. 1988. Disponível em: https://www.camara.gov.br/internet/constituicao20anos/DocumentosAvulsos/vol-254.pdf. Acesso em: 22 jun. 2022.

[11] DIÁRIO DA ASSEMBLEIA NACIONAL CONSTITUINTE. Ano II – Nº 203. Ata da 222ª Sessão da Assembleia Nacional Constituinte, em 10 de março de 1988. Brasília-DF, 11 mar. 1988, p. 8288.

[12] STF, Pleno, ADI 2797, relator (a): ministra Sepúlveda Pertence, j. em 15/09/2005; STF, Pleno, Pet 3240 AgR, relator ministro Teori Zavascki, Rel. p/ Acórdão ministro Roberto Barroso, j. em 10/05/2018.

[13] STJ, Corte Especial, AgRg na Rcl n. 12.514/MT, relator ministro Ari Pargendler, j. em 16/9/2013; STJ, Corte Especial, AgRg na AIA 32/AM, relator ministro João Otávio de Noronha, j. em 04/05/2016.

[14] MENDES, Gilmar Ferreira; WALD, Arnoldo. Competência para julgar ação de improbidade administrativa. Revista de Informação Legislativa, Brasília a. 35, nº 138, abr./jun. 1998, p. 213-216.

[15] STF, Pleno, Pet 3240 AgR, relator ministro Teori Zavascki, Rel. p/ Acórdão Min. Roberto Barroso, j. em 10/05/2018. Íntegra do acórdão, p. 93.

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    é mestre em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e em Direito Constitucional pela Universidade de Sevilha na Espanha, procurador da República, membro do Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado (Gaeco/MPF/MG) e orientador pedagógico e capacitador da Escola Superior do Ministério Público da União (MPU).

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