Opinião

Tráfico de pessoas: a escravidão que persiste no século 21

Autor

  • Louise Vilela Leite Filgueiras

    é juíza federal criminal em São Paulo (SP) mestre e doutoranda pela PUC-SP representante do Tribunal Regional Federal da 3ª Região na Comissão Judiciária Interinstitucional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (Cittei) e no Comitê Estadual de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas (CEETP) bem como representante da Justiça Federal de São Paulo perante o Fórum Nacional do Poder Judiciário para Monitoramento e Efetividade das Demandas Relacionadas à Exploração do Trabalho em Condições Análogas à de Escravo e ao Tráfico de Pessoas (Fontet).

29 de julho de 2022, 6h33

Na semana que antecede ao dia 30 de julho, dia nacional e internacional do enfrentamento ao tráfico de pessoas, o mundo todo volta o seu olhar para a escravidão dos dias atuais, o tráfico de seres humanos, que, reduzidos a mercadorias, são utilizados para a exploração sexual, trabalho escravo, servidões de todos os tipos, adoção ilegal e até remoção de órgãos [1].

Parece uma realidade distante, mas infelizmente é mais comum do que se imagina. Em dados do Unodoc, Escritório das Nações Unidas para Drogas e Crime, o tráfico humano movimenta mais de US$ 30 bilhões por ano e fica atrás apenas dos crimes de tráfico de drogas ilícitas e daqueles relativos ao gigantesco comércio mundial de contrafações, em termos de lucros gerados para os criminosos [2].

O enfrentamento ao tráfico de pessoas se constitui em um programa de ação coordenada entre várias instituições, governamentais e não-governamentais, que se desenvolve em três eixos fundamentais: a prevenção, a repressão e o acolhimento das vítimas.

É essencial para o sucesso dessas ações que as instituições governamentais e da sociedade civil se congreguem em rede, como de fato o fazem, através da participação em comitês federais e estaduais organizados pelos poderes executivos, pelo Conselho Nacional de Justiça e por comissões temáticas, como a Cittei, Comissão Interinstitucional para o Enfrentamento do Tráfico de Pessoas, Trabalho Escravo e Exploração Infantil, instituída pelo Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo.

Essa participação em rede é fundamental pois propicia o debate interinstitucional, de forma a compartilhar experiências e superar dificuldades, coordenando as ações dentro do âmbito de autuação das instituições, para que se possa trabalhar nos três eixos com eficiência, isto é, praticando ações de prevenção, propiciando a adequada repressão das condutas criminosas e acolhendo as vítimas, de forma a que não sofram com a revitimização, seja social, seja institucional.

No eixo da prevenção, as ações da Campanha do Coração Azul, que simboliza a tristeza pelas vítimas de tráfico humano e que retrata a insensibilidade daqueles que comercializam pessoas como mercadorias, tem sido frequente. São medidas de divulgação da temática, formas de lembrar a sociedade de que o sonho legítimo de uma vida melhor pode virar um terrível pesadelo e que precisamos estar alertas e preparados para lutar contra isso.

Por essa razão, no ano de 2021, em meio a pandemia, a Justiça Federal, por sua Escola de Magistrados, juntamente com a Enfam, Escola Nacional de Formação de Magistrados, elaborou curso de capacitação para os juízes, de modo a promover discussões e a troca de experiências no combate a esse crime. Em 2019, o Tribunal Regional Federal organizou uma edição especial de sua revista, com artigos de especialistas no tema, em suas diversas vertentes, debatidos em roda de conversa [3]. No ano de 2020, a campanha se desenvolveu com a parceria do núcleo Cultura em Casa da em uma série monólogos teatrais comentados por especialistas [4].

Este ano, a Justiça Federal e o Tribunal Regional Federal da 3ª Região promovem também uma série de vídeos de divulgação, em parceria com o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo e outros atores da rede de enfrentamento, como MPE, OAB, OIM e DPU e como patrocínio da Ajufe, ilumina o prédio do Fórum Pedro Lessa, na avenida Paulista, de azul.

Na verdade, toda a colaboração para lançar luzes sobre essa realidade é muito bem-vinda, pois é preciso treinar o olhar para as situações de aparente normalidade que podem configurar situações de tráfico humano e conscientizar sobre as novas formas de aliciamento, como o hunting e o fishing na internet [5].

Apesar de reunir diversas modalidades, separadas na lei por finalidades específicas, o tráfico de pessoas tem a característica de se desenvolver em um contexto de deslocamento da vítima do local de origem e residência, o que acarreta ruptura em seus vínculos sociais e afetivos, aumentando a sua situação de vulnerabilidade, como na situação dos migrantes e refugiados, mas também nas hipóteses de tráfico interno.

Isso permite ao aliciador ou ao grupo organizado de traficantes manter a vítima sob seu jugo por diversas formas de coação, física ou psicológica. É bastante comum nesses casos a retenção de documentos, endividamento cumulativo, e ameaças à integridade física, tanto da vítima quanto de seus familiares e amigos.

A exploração sexual de mulheres e meninas segue sendo a principal forma de tráfico humano. A exploração de mulheres e meninas chega a 65% das vítimas no mundo, e na América do Sul a impressionantes 74% (somadas mulheres e meninas). A principal forma de exploração de mulheres e meninas (cis e trans) é sexual. Segundo dados coletados pelo relatório Nacional sobre Tráfico de Pessoas, 92% das vítimas femininas são traficadas para exploração sexual no mundo [6].

A exploração sexual de pessoas transgênero é uma questão que merece um olhar cuidadoso, dada a extrema vulnerabilidade dessas vítimas. O relatório nacional sobre tráfico de pessoas menciona a necessidade de aprofundamento na análise dessa situação e relembra as operações da polícia federal "Cinderela" e "Fada Madrinha", em que mulheres trans foram resgatadas de cativeiros de exploração sexual [7].

Em que pese a exploração sexual ser a principal finalidade do tráfico de pessoas no mundo, o tráfico para trabalhos forçados, inclusive o doméstico, e outras espécies de servidão, como a mendicância forçada e a prática de delitos vem crescendo e com isso o número de homens e meninos traficados também aumentou, segundo os dados coletados pelo UNODC em seu mais recente relatório. O relatório nacional, mencionado acima, nos dá conta que a Polícia Federal realizou mais resgates de homens em situação de trabalhos forçados que de mulheres, entre 2018 e 2020.

Portanto em que pese o Brasil figurar como "exportador" e "consumidor" de vítimas para a exploração sexual, internamente, o tráfico de seres humanos para trabalhos forçados apresenta números crescentes e que merecem atenção. Os trabalhos forçados em lavouras, por exemplo, são uma triste realidade, como no famoso caso da Fazenda Brasil Verde, que ensejou a condenação ao Brasil por tráfico humano junto a Corte Interamericana de Direitos Humanos [8], mas há também inúmeros casos de jornadas de trabalho extenuantes e condições de habitação desumanas, somadas à privação de liberdade, em oficinas de costura nos grandes centros e outros setores, como a construção civil, e outras espécies de servidão, como o trabalho doméstico, a mendicância forçada e até a coação para a prática de delitos, como furtos e tráfico de drogas.

No plano da repressão, o trabalho exige muito cuidado, pois muitas das vítimas, sem opção e procurando melhorar a sua situação de escravidão, se aliam ao aliciador para auxilia-lo a manter os demais em cativeiro, ou tem com eles relações afetivas, de amizade ou mesmo parentesco, o que dificulta muito a descoberta e amparo dessas situações. É comum que a vítima não sinta vítima e que queira até mesmo proteger o seu algoz; que se envergonhe de sua situação e tema, ela mesma, ser punida pela colaboração com o fato.

É bastante comum também a venda de crianças para a adoção ilegal, como foi inclusive noticiado recentemente na mídia [9], o que pode vir aliado à exploração sexual e/ou submissão dessa criança a trabalhos forçados de toda a espécie.

O final dessa cadeia de exploração pode ser a morte e a remoção de órgãos, ou simplesmente o aliciamento para a venda destes, como no conhecido caso da operação bisturi, deflagrada em 2003 em Pernambuco, em que pessoas em situação de vulnerabilidade econômica eram aliciadas para a venda de órgãos a serem transplantados na África do Sul [10].

Como se nota dessas breves linhas o fato é complexo, como são complexas as relações humanas em sociedade. Mas todos eles congregam dois fatores importantes: o desejo por uma vida melhor e a vulnerabilidade da vítima, seja social, econômica, física ou psicológica.

É preciso falar nisso não só por ocasião do dia 30 de julho, mas sempre, para que as pessoas se lembrem de desconfiar de promessas de ganhos fáceis no exterior, ou mesmo em outras regiões do país, de propostas de viagens em virtude de relacionamentos românticos perfeitos, oportunidades de emprego como modelo, jogador de futebol, e outras que tragam "fama e fortuna", pois os aliciadores são especialistas em capturar as vítimas oferecendo-lhes a oportunidade de realizar seus mais dourados sonhos, ou mesmo se aproveitar de suas necessidades mais urgentes.

A pandemia de Covid-19, que aumentou a vulnerabilidade econômica da população e a virtualização crescente das relações sociais e comerciais, que facilitam a investida dos aliciadores, são fatores de atenção, pois agravam o perigo de cair nessas armadilhas.

E nesse contexto de necessidades e ilusão, muitas das vítimas inicialmente consentem com o deslocamento e com algum tipo de exploração. Consentem com a exploração sexual, que não é crime, ou com jornadas de trabalho extenuantes, por necessidade de prover o próprio sustento ou da família, ou por não terem outra saída imediata para seus problemas. Porém, ao chegar ao destino, se tornam prisioneiras. Encontram situações imprevistas e não acordadas a que são obrigadas a se submeter, tem documentos recolhidos, podem ficar literalmente trancadas, em cárcere privado e perdem a liberdade de interromper o ciclo de exploração.

Vale lembrar que, nesse caso, não há que se falar em consentimento da vítima, pois a vítima não conhecia previamente a situação real a que seria submetida. Além disso, a ninguém é dado transigir com o direito fundamental de liberdade nesse grau, nem é admissível que um ser humano aniquile a dignidade de outro por razão alguma, quanto mais por ganhos financeiros.

Aliás, quem nunca se propôs a algum objetivo na vida, que se mostrou irreal e desvantajoso e não mudou de ideia, vistas as verdadeiras condições em que a proposta se desenvolvia? As vítimas de tráfico de pessoas são aquelas que perdem a liberdade escolher seus rumos, por coação direta de outras pessoas, dentro de um contexto de perda de sua dignidade pela exploração desumana.

Precisamos lembrar que essa exploração do ser humano, mediante coação, fraude, ou abuso, que leva à perda da liberdade e dignidade, é crime gravíssimo, que o Brasil se comprometeu a combater por lei e pela ratificação ao Protocolo de Palermo.

Porque liberdade não se compra e dignidade não se vende. Estejamos, para além do dia 30 de julho, alertas contra o tráfico de pessoas.


[1] O crime de tráfico de pessoas está previsto no artigo 149-A do Código Penal, com a modificação feita pela lei 13.344/2016 que instituiu a política nacional do enfrentamento ao tráfico de pessoas, na esteira do Protocolo de Palermo, de que o Brasil é signatário.

[2] Para mais informações e dados, vide aqui. Dados sobre movimentação financeira do crime organizado aqui e aqui.

[4] O programa Cultura em Casa é gerido e produzido pela Sociedade Amigos da Arte e tem a colaboração de todas as demais Organizações Sociais que fazem a gestão dos programas culturais de São Paulo. Evento disponível em https://culturaemcasa.com.br/video/todes-contra-o-trafico-de-pessoas/

 

[5] Sobre as formas de aliciamento virtual no tráfico de pessoas e o reflexo da Pandemia de Covid-19 nesse contexto, vide Barreto, Julia de Albuquerque e Soares, Inês Virgínia Prado, "Tráfico de Pessoas sob a ótica de gênero: o pandemônio das mulheres em tempos ordinários e pandêmicos" in Tráfico de pessoas : uma visão plural do tema / organização: Augusto

Grieco Sant’Anna Meirinho … [et al.] – Brasília : Ministério Público do

Trabalho, Conaete, 2021., pg 169- 201. Disponível em https://www.nepo.unicamp.br/publicacoes/livros/trafico_pessoas.pdf

[10] O fato inspirou a obra jornalística Rim por Rim, de Júlio Ludemir, ed. Record, 2018.

Autores

  • é juíza federal criminal em São Paulo (SP), mestre e doutoranda pela PUC-SP, representante do Tribunal Regional Federal da 3ª Região na Comissão Judiciária Interinstitucional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (Cittei) e no Comitê Estadual de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas (CEETP), bem como representante da Justiça Federal de São Paulo perante o Fórum Nacional do Poder Judiciário para Monitoramento e Efetividade das Demandas Relacionadas à Exploração do Trabalho em Condições Análogas à de Escravo e ao Tráfico de Pessoas (Fontet).

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!