Opinião

Regras, princípios e a derrotabilidade das regras

Autor

  • Hélio Roberto Silva de Sousa

    é advogado especialista em Direito Administrativo e servidor de carreira da ANTT (Agência Nacional de Transportes Terrestres) e membro da Comissão de Assuntos Regulatórios da Comissão de Direito Administrativo na OAB-DF.

29 de julho de 2022, 20h32

Não se pode deixar de assentar a importante dialógica (por vezes, dialética) que envolve a natureza jurídico-interpretativa atinente às regras e aos princípios, tema muito falado e pouco entendido.

O cerne dessa questão — que impacta diretamente na forma de interpretação e aplicação de determinada norma  está nos critérios de diferenciação entre regras e princípios, inclusive se esses critérios podem ser abstratamente aplicados ou se tal diferenciação somente seria possível diante do caso concreto.

Conforme colaciona Ronald Dworkin, as regras são dotadas de caráter disjuntivo [1], ou seja, aplica-se o modo do "tudo ou nada". Ademais, em se verificando antinomias entre regras, a solução se dá por meio das clássicas ferramentas de solução desse tipo de conflito, quais sejam o critério hierárquico (norma superior sobrepõe norma inferior), critério da especialidade (norma especial afasta norma geral) e critério cronológico (norma mais recente suplanta norma mais antiga). Vejamos:

"A diferença entre princípios jurídicos e regras jurídicas é de natureza lógica. Os dois conjuntos de padrões apontam para decisões particulares acerca da obrigação jurídica em circunstâncias específicas, mas distinguem-se quanto à natureza da orientação que oferecem. As regras são aplicáveis à maneira do tudo ou nada. Dados os fatos que uma regra estipula, então a regra é válida. E neste caso a resposta que ela fornece deve ser aceita, ou não é válida, e neste caso em nada contribui para a decisão" [2].

Por outro lado, Dworkin defende que a dinâmica atinente às regras não se aplica aos princípios [3]. É que para este tipo normativo há que se ponderar o peso de cada princípio envolvido na relação jurídica analisada, de modo a se identificar qual deles tem maior aderência à situação jurídica posta.

Além disso, diferentemente das regras (para as quais se aplica o tudo ou nada dworkiniano), os princípios não são completamente afastados, havendo, portanto, certa plasticidade do princípio menos relevante àquela determinada situação jurídica, em que este cede espaço de incidência ao princípio então tido como mais relevante.

Desta forma, a distinção entre regras e princípios preconizada por Dworkin se pauta pelo prisma lógico-argumentativo [4], o que lhe diferencia de Robert Alexy, conforme veremos em seguida.

Para Alexy, os princípios assumem natureza de "mandados de otimização", ou seja, devem ser aplicados o mais plenamente quanto possível. Qual seria, então, o grau de aplicabilidade de determinado princípio? A resposta dependerá das situações fático-jurídicas envoltas ao caso concreto. Nas palavras de Alexy:

O ponto decisivo na distinção entre regras e princípios é que princípios são normas que ordenam que algo seja realizado na maior medida possível dentro das possibilidades jurídicas e fáticas existentes. Princípios são, por conseguinte, mandamentos de otimização, que são caracterizados por poderem ser satisfeitos em graus variados e pelo fato de que a medida devida de sua satisfação não depende somente das possibilidades fáticas, mas também das possibilidades jurídicas [5].

Ademais, para Alexy, as regras são caracterizadas por determinarem que algo aconteça. Assim, se determinada regra é válida e sobre ela não incide nenhuma regra de exceção, não há alternativa outra senão sua completa e plena aplicação ao caso respectivo.

Assim, diferente da perspectiva apresentada por Dworkin, a distinção entre regras e princípios apresentadas por Alexy se pauta por critérios estruturais [6].

No bojo da odisseia que buscava fincar critérios que pudessem diferenciar as regras dos princípios, autores como Bobbio e Del Vecchio [7] passaram a defender que o critério da generalidade seria suficiente para diferenciar regras e princípios. Consoante tal critério, quanto maior o grau de generalidade de uma norma, mais esta se aproxima de um princípio; a contrário sensu, quanto menor o grau de generalidade de uma norma, mais ela se apresentaria como regra.

Por certo que tal critério não consegue atender a todas as situações jurídicas que envolvem regras e princípios. Explico: há normas que, inobstante apresentem alto grau de generalidade, são caracterizadas como regras, e não como princípios. A título de exemplo, a norma que diz que não há crime sem lei anterior que o defina, tida como princípio, ao se considerar a generalidade é, na verdade, uma regra [8].

Não por outro motivo, Alexy afirma que este critério meramente quantitativo (grau de generalidade na norma) de separação entre regras e princípios está fadado ao fracasso[9].

Ato contínuo, Alexy apresenta que o critério qualitativo é o mais correto a ser aplicado[10]. Segundo este critério, o que realmente diferenciará as regras dos princípios é o modo de aplicação destas normas. Segundo Bernardo Gonçalves Fernandes:

"(…) pode-se perceber, que a generalidade não é um critério adequado para tal distinção, pois é, quando muito, uma consequência da natureza dos princípios, sendo incapaz de proporcionar uma diferenciação essencial. A questão, então, está em assentar a distinção por meio dos modos de aplicação de cada espécie normativa, bem como na forma de proceder em caso de um conflito normativo" [11].

Desta forma, as regras carregam a característica do "tudo ou nada", não cabendo sua não aplicação quando configurada subsunção desta ao fato analisado, desde que não haja regra de exceção. Assim, para que determinada regra deixe de ser aplicada, ou ela deve ser considerada inválida ou há incidência de regra de exceção aplicável ao caso.

Por outro lado, os princípios trazem conteúdo normativo prima facie, ou seja, sua total aplicabilidade em face de outro princípio vai depender das nuances intrínsecas ao caso analisado, havendo, portanto, maior maleabilidade dos princípios contidos em eventual conflito principiológico, não se afastando completamente determinado princípio, ainda que de menor peso relativo para o caso concreto em análise.

Bem verdade é que a existência de regras e princípios no mesmo sistema jurídico é, além de salutar, indispensável. Vejamos os preciosos ensinamentos de Paulo Gustavo Gonet Branco:

"As constituições, hoje, são compostas de regras e de princípios. Um modelo feito apenas de regras prestigiaria o valor da segurança jurídica, mas seria de limitada praticidade, por exigir uma disciplina minuciosa e plena de todas as situações relevantes, sem deixar espaço para o desenvolvimento da ordem social. O sistema constitucional não seria aberto. Entretanto, um sistema que congregasse apenas princípios seria inaceitavelmente ameaçador à segurança das relações" [12].

Nesse cenário, podemos afirmar que as regras têm melhor aplicabilidade aos intitulados easy cases, sendo a subsunção o meio eficaz à produção da solução jurídica esperada. Ao se considerar que as regras proveem, aprioristicamente, soluções jurídicas mais amoldáveis às situações cotidianas da vida, menor é a carga argumentativa em sua aplicação (o que não significa que possa ser inexistente).

Seguindo a mesma linha cognitiva, podemos asseverar que os princípios, dado seu maior grau de abstração, têm melhor aplicabilidade aos intitulados hard cases, sendo a técnica de ponderação ou balanceamento o meio eficaz para a produção da solução jurídica almejada. Por isso mesmo é que a aplicação de princípios requer maior esforço argumentativo em sua adequação ao caso concreto.

Há, ainda, casos com tal complexidade que a sistemática acima exposta, inerente à aplicação de regras e princípios, não seria capaz de prover a solução jurídica necessária. Estes casos são chamados por Manuel Atienza de casos trágicos. Vejamos:

"(…) na teoria padrão da argumentação jurídica, parte-se da distinção entre casos claros ou fáceis e casos difíceis; com relação aos primeiros, o ordenamento jurídico fornece uma resposta correta que não é discutida; os segundos, pelo contrário, caracterizam-se porque, pelo menos em princípio, é possível propor mais de uma resposta correta que se situe dentro das margens permitidas pelo Direito positivo. Mas o que parece ficar excluído, com essa proposição, é a possibilidade de uma terceira categoria, a dos casos trágicos. Um caso pode ser considerado trágico quando, com relação a ele, não se pode encontrar uma solução que não sacrifique algum elemento essencial de um valor considerado fundamental do ponto de vista jurídico e/ou moral. A adoção de uma decisão em tais hipóteses não significa enfrentar uma simples alternativa, mas sim um dilema" [13].

As situações inerentes a estes casos trágicos, ou extreme cases, deixam o decisor diante de verdadeiro dilema. Visando à solução de tais situações, desenvolveu-se o instituto de interpretação/aplicação jurídica intitulado derrotabilidade das regras ou superabilidade, também chamado defeasibility.

Importante destacar que as regras também carecem de ponderação, podendo ser superadas, em situações excepcionais [14]. Contudo, o fato de serem regras torna sua superabilidade mais difícil, ponto que merece alguns considerandos.

O defeasibility consiste na não aplicação de uma regra (o que, a priori, não é possível se não houver regra contrária ou regra de exceção) quando a sua aplicação contraria a finalidade da própria regra. Em outras palavras, a subsunção de determinada regra, em milimétrico atendimento ao disposto no ordenamento vigente, contrariaria a essência primeira da própria regra. Desta forma, necessário é que se deixe de aplicar aquela regra, com o fim de preservar o que a própria regra deseja proteger.

Humberto Ávila apresenta critérios materiais e formais para que se proceda à derrotabilidade das regras. Com relação aos critérios materiais, deve-se considerar que a superabilidade de determinada regra será tanto mais flexível quando menor for a imprevisibilidade, ineficiência e desigualdade geral gerada por ela [15]. Vejamos:

"A aceitação do caso individual não prejudica a implementação dos dois valores inerentes à regra: o valor formal da segurança não é restringido, porque a circunstância particular não seria facilmente reproduzível. (…) A tentativa de fazer justiça para um caso mediante superação de uma regra não afetaria a promoção da justiça para a maior parte dos casos. E o entendimento contrário, no sentido de não superar a regra, provocaria mais prejuízo valorativo que benefício (more harm than good)" [16].

Já com relação aos requisitos de forma, para que haja superação de determinada regra há que se proceder maior e mais profunda fundamentação. É que as regras trazem em seu cerne os critérios de aplicação já previstos na lei e afastar estes critérios faz recair sobre o decisor maior ônus argumentativo a validar tal superação. Isso porque as regras têm eficácia de trincheira, visto que, conquanto superáveis, só o são por razões extraordinárias, requerendo maior ônus de fundamentação, o que, por conseguinte, leva a uma maior resistência das regras para sua superação. Esta resistência maior conduz à necessidade de fundamentação mais restritiva para permitir a superação das regras [17].

A título de exemplo [18], podemos citar o exemplo contido na Bíblia Sagrada, onde Jesus, ao se deparar com uma mulher acusada de adultério, estava diante de uma situação, como dito por Manuel Atienza, verdadeiramente trágica.

A lei mosaica preconizava, no livro de Levítico 20:10, o seguinte: "Se um homem adulterar com a mulher do seu próximo, será morto o adúltero e a adúltera".

Pois bem. Os fariseus, conhecedores da literalidade da lei (das regras), questionaram Jesus sobre o que deveria ser feito com a mulher surpreendida em flagrante adultério. Jesus estava, portanto, diante de verdadeiro caso trágico. Explico: a finalidade da lei mosaica era, dentre outras, desincentivar a prática do adultério, que contrariava o sétimo mandamento da lei de Deus (não adulterarás). Todavia, havia situação peculiar neste caso, já que somente a mulher foi apresentada para ser julgada. Onde estava o homem adúltero?

Jesus, vendo que se tratava de verdadeira armadilha decorrente de falso silogismo, se encontrou no seguinte dilema: cumprir a lei, ainda que somente com relação a mulher (que, em tese, era culpada), ou entender a finalidade daquela lei, perdoando a mulher, mas sem institucionalizar o adultério.

Jesus, com a sabedoria de Filho de Deus, então responde: "Aquele que dentre vós estiver sem pecado seja o primeiro que lhe atire pedra" [19]. Desta forma, Jesus entendeu as peculiaridades daquele caso concreto. Por conhecer profundamente a essência da lei, constatou que esta essência não estava presente no caso em julgamento; sabia que a aplicação da regra resultaria na própria subversão do âmago da lei de Deus e então decidiu pela superabilidade daquela regra, em cirúrgico exemplo de defeasibility, mormente pela advertência dita àquela que estava sendo julgada: "vai e não peques mais" [20].

Assim, o julgamento de Jesus respeitou o cerne da lei, superando a regra em questão, sem significar que a lei fosse revogada. Esta é a essência da derrotabilidade das regras.


[1] MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 2016. p. 73.

[2] DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. São Paulo: Martins Fontes, 2002. p. 39.

[3] Ibid., p. 40.

[4] FERNANDES, Bernardo Gonçalves. Curso de Direito Constitucional. Salvador: Juspodivm, 2020. p. 266.

[5] ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. São Paulo: Malheiros, 2008. p. 90.

[6] FERNANDES. Op cit., p. 266.

[7] GALUPPO Marcelo. Igualdade e diferença. p. 170-172 apud FERNANDES. Op cit., p. 266.

[8] MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Op cit., p. 75.

[9] ALEXY. Op cit., p. 89.

[10] Ibid., p. 90.

[11] FERNANDES. Op cit., p. 267.

[12] MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Op cit., p. 75.

[13] ATIENZA, Manuel. As razões do direito. Teorias da argumentação jurídica. São Paulo: Landy, 2003. p. 226.

[14] ÁVILA, Humberto Bergmann. Teoria dos Princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. São Paulo: Malheiros, 2018. p. 141.

[15] Ibid., p. 141-142.

[16] Ibid., p. 142-143.

[17] Ibid., p. 146.

[18] Exemplo citado por Cristiano Chaves de Faria e Nelson Rosenvald, com acréscimos próprios.

[19] João 8:7

[20] João 8:11

Autores

  • é advogado, especialista em Direito Administrativo e Servidor de carreira da Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT) e membro da Comissão de Assuntos Regulatórios, da Comissão de Direito Administrativo e todas na OAB/DF.

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