Opinião

Conversão em lei da MP 1.103: novo marco das securitizadoras

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29 de julho de 2022, 21h25

O mercado aguarda com grande expectativa a conversão em lei da Medida Provisória (MP) nº 1.103, de 16 de março de 2022, também conhecida como marco legal das securitizadoras, já que busca consolidar em diploma legal único todo o regramento das operações de securitização, atualmente positivado de modo esparso em leis específicas. Já nos últimos dias do período de vigência da MP, o Projeto de Lei de Conversão (PLV) nº 15/2022 conta com a aprovação pelas casas do Congresso e aguarda a sanção ou veto do presidente da República, que deverá ocorrer até o dia 3 de agosto.

Como é consabido, além de disciplinar as companhias securitizadoras e o agora ampliado mercado de certificado de recebíveis (CR), a MP também regula, dentre outros temas, a captação de recursos por companhias seguradoras e resseguradoras no mercado de capitais, por meio da emissão das novas Letras de Risco de Seguro (LRS) — títulos de renda fixa inspirados nos insurance linked securities (ILS), que apresentam um histórico de anos de negociação em mercados internacionais em estágio mais avançado de desenvolvimento.

No que se refere às operações em securitização, as expectativas que cercam a conversão da MP em lei guardam relação com os potenciais impactos positivos do novo marco legal para os agentes atuantes no mercado de recebíveis, dentre os quais podemos destacar (1) maior segurança jurídica; (2) diversificação das fontes de financiamento; (3) redução do custo de captação, sobretudo se comparado com as taxas disponíveis no mercado bancário; e (4) redução do endividamento das empresas tomadoras, que terão novas alternativas para captar recursos mediante a cessão definitiva dos recebíveis originados em suas atividades (true sale).

O PLV enviado para a sanção presidencial trouxe notórios aprimoramentos ao texto original da MP 1.103/2022. A título de exemplo, identificamos dois pleitos relevantes do mercado que foram levados ao conhecimento do Congresso Nacional e refletidos no texto do PLV, diga-se de passagem, por mérito de valiosa contribuição da Associação Brasileira das Entidades dos Mercados Financeiro e de Capitais (Anbima):

Dedutibilidade de despesas da base de cálculo do PIS/Cofins
As companhias securitizadoras de créditos imobiliários, do agronegócio e financeiras apresentam relevante vantagem fiscal, quando comparadas às chamadas securitizadoras atípicas (ou de créditos empresariais), na medida em que somente as primeiras têm a prerrogativa legal de deduzir as suas despesas de captação de recursos da base de cálculo das contribuições para o PIS/Pasep e da Cofins.

Sobre o tema, o PLV propõe uma harmonização do tratamento tributário dado a todas as companhias securitizadoras, independentemente do tipo de direito creditório que securitizem, em particular no que se refere (1) à dedutibilidade de despesas no cômputo do PIS e Cofins, na medida em que altera o artigo 3º, § 8º, da Lei nº 9.718, de 27 de novembro de 1998; e (2) à apuração obrigatória do lucro real, conforme a alteração introduzida no artigo 14, § 7º, da Lei nº 9.718/98.

Trata-se de modificação fundamental para o desenvolvimento do mercado de certificado de recebíveis lastreados em créditos que não sejam imobiliários, do agronegócio ou financeiros, sem a qual as securitizadoras que voltadas para operações envolvendo créditos dessa natureza perderiam competitividade frente a outros veículos, sobretudo os fundos de investimento em direitos creditórios.

Aquisição pari passu dos créditos que lastreiam a emissão dos CRI
As regras atuais (inclusive o texto da MP nº 1.103) preveem que a securitizadora deverá concluir a aquisição dos créditos e vinculá-los à emissão dos certificados de recebíveis até a data da sua emissão. Ocorre que, na prática, tal regra obstaculiza determinadas estruturas, sobretudo em operações lastreadas em carteira de créditos pulverizados, na medida em que se impõe que o processo de aquisição da carteira de créditos subjacente seja concluído antes da liquidação financeira da distribuição dos certificados de recebíveis.

O PLV trouxe importante inovação sobre o ponto, pois passou a contemplar a possibilidade de aquisição dos créditos lastro até a data de integralização dos certificados de recebíveis (e não na data de emissão, necessariamente), desde que em observância aos critérios de elegibilidade definidos no termo de securitização (artigo 20, § 2º) . Tal alteração aproxima as emissões de certificados recebíveis às captações de fundos de investimento, mais bem vocacionados para aquisição carteiras com revolvência, além de viabilizar a aquisição de carteiras pulverizadas, quando circunstâncias fáticas relativas aos cedentes/devedores não permitem a aquisição simultânea de todo o volume de recebíveis lastro.

Por outro lado, salientamos que o texto do PLV aprovado pela comissão mista também deixou de incorporar alterações sugeridas em emendas, que seriam de suma importância para a consecução dos objetivos da norma, descritos acima. Nessa seara, se perdeu oportunidade para implementar determinadas melhorias, tais como:

Revogação do artigo 76 da MP 2.158
Nos últimos anos, o mercado se acostumou a ler fatores de risco em termos de securitização, alertando sobre a possibilidade de perda de ativos integrantes dos patrimônios separados vinculados a emissões de CRI e CRA, em virtude da existência de passivos de natureza fiscal, previdenciária e trabalhista das securitizadoras. Tal risco decorre do desditoso artigo 76 da MP nº 2.158/01 [1].

Em que pese a MP nº 1.103 ter afastado o risco descrito acima, o que foi corroborado nos termos do artigo 27, § 4º, do PLV, se verifica um inquestionável conflito entre este dispositivo do PLV e o artigo 76 da MP nº 2.158/01, que só poderá ser solucionado mediante a aplicação das regras descritas na Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro. Acreditamos que há elementos suficientes para defender a tese de que o artigo 76 da MP nº 2.158/01 está expressamente afastado nas operações de securitização. Não obstante, considerando a jurisprudência ainda vacilante nos tribunais brasileiros, nos parece que seria mais acertada a revogação expressa do artigo 76 da MP nº 2.158/01 ou, ao menos, a alteração de sua redação para afastar expressamente a aplicabilidade no âmbito das operações de securitização.

Certificados de recebíveis "verdes"
É uma tendência a emissão de títulos "verdes", seja no mercado doméstico ou mercados globais, usualmente assim caracterizados com base em pareceres de segunda opinião, emitidos por organizações certificadoras, que atestam a aderência dos ativos a padrões de sustentabilidade reconhecidos internacionalmente, sobretudo os Green Bond Principles (GBP) adotados pela International Finance Corporation (IFC).

Seguindo essa tendência, houve proposta de emenda na comissão mista, no sentido de positivar a possibilidade de emissão de certificados de recebíveis com denominação socioambiental, quando estes promoverem impactos positivos em objetivos sociais ou ambientais, a serem descritos no termo de securitização e, ao mesmo tempo, não promoverem danos de natureza socioambiental. Acreditamos que a inclusão de redação sobre o assunto seria benéfica para o desenvolvimento do mercado de certificados de recebíveis "verdes" e considerados sustainability linked bonds (SLB), em franca expansão, ainda que a emissão desses títulos já seja juridicamente possível, independentemente de previsão legal expressa.

Responsabilidade pela origem dos créditos lastro
Com o advento da MP nº 1.103, o mercado suscitou dúvidas em relação à interpretação do disposto no seu artigo 20, § 4º, que prevê a responsabilização das securitizadoras "pela origem e pela autenticidade dos direitos creditórios vinculados ao certificado de recebíveis por ela emitido". Notadamente, surgiram preocupações em relação às diligências e controles que as securitizadoras deverão implementar para realizar a verificação da origem dos créditos, bem como sobre o escopo dessa análise e a supervisão a ser realizada pela CVM.

A abrangência do texto da MP nº 1.103 poderá dar azo a uma série de obrigações regulatórias imputadas às securitizadoras — recém incorporadas ao grupo das entidades supervisionadas pela CVM, com registro próprio e Superintendência especificamente dedicada à sua supervisão (SSE). Por exemplo, poderá se cogitar do dever de verificação do cumprimento de normas anticorrupção, de prevenção à lavagem de dinheiro e financiamento ao terrorismo, por parte das securitizadoras, nos fluxos de originação dos recebíveis. Assim, houve proposta de emenda sugerindo a reformulação do texto, de forma que as securitizadoras respondam somente pela existência dos créditos vinculados às emissões de certificados de recebíveis, o que nos parece alinhado ao regime da cessão de créditos previsto no Código Civil, mas não foi acolhida no texto do PLV.

Não obstante o exposto, são inegáveis os avanços produzidos pela nova lei cuja sanção é aguardada nos próximos dias. No que se refere à evolução do arcabouço normativo das operações de securitização, nos parece que o próximo passo lógico será uma adequação das normas expedidas pela CVM ao texto definitivo do marco legal das securitizadoras, sobretudo da Resolução 60, publicada em 23 de dezembro de 2021, mas que entrou em vigor somente em 2 de maio de 2022.

 


[1] Art. 76. As normas que estabeleçam a afetação ou a separação, a qualquer título, de patrimônio de pessoa física ou jurídica não produzem efeitos em relação aos débitos de natureza fiscal, previdenciária ou trabalhista, em especial quanto às garantias e aos privilégios que lhes são atribuídos.

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