Garantias do Consumo

Tolerância e diálogo no tratamento jurídico das famílias superendividadas

Autor

  • Fernando Costa de Azevedo

    é doutor em Direito pela UFRGS professor associado na Faculdade de Direito da Universidade Federal de Pelotas (UFPel) professor permanente no programa de pós-graduação (mestrado) em Direito da UFPel coordenador geral (líder) do Grupo de Estudos e Pesquisa em Direito do Consumidor (Gecon UFPel) e membro associado e diretor do Brasilcon.

27 de julho de 2022, 8h01

Em meados dos anos noventa Norberto Bobbio escreveu em um de seus textos que "não há democracia sem costume democrático" [1]. Em outros termos, pode-se dizer que a democracia, enquanto regime político e fundamento jurídico de um Estado (o Democrático de Direito), necessita, para sua plena efetividade, de uma vivência democrática construída a partir de determinados valores e traduzida em virtudes como as da tolerância e do diálogo respeitoso com pessoas e grupos dotados de ideias e identidades diferentes.

Pois esses valores, no mundo da vivência democrática, deveriam ser indisponíveis e inegociáveis, como expressa a famosa frase supostamente atribuída a Voltaire: "Posso não concordar com o que você diz, mas defenderei até a morte o seu direito de dizê-lo" [2]. E caberia ainda mencionar que são valores necessários à convivência das pessoas em espaços (e pelos interesses) públicos e privados, pois "[…] costume democrático significa ser honesto no exercício dos próprios negócios, leal nas trocas (e isto é válido também nas relações de mercado), respeitar a si e aos outros, estar consciente das obrigações, não somente jurídicas, mas também morais, que cada um de nós tem para com o próximo, da mesma forma como não se deve nunca cansar de repetir em um país, no qual é fraco o sentido da moral e ainda mais fraco o jurídico; enfim, saber distinguir e não confundir interesses privados e públicos".

Do plano das ideias para a atual realidade brasileira encontramos um cenário desafiador à realização do costume democrático de Bobbio. Passados mais de 30 anos do retorno à democracia, a sociedade brasileira reproduz, no campo político, a intolerância e a incapacidade do diálogo respeitoso entre grupos politicamente opostos, como demonstrou recente pesquisa realizada pelo Instituto Locomotiva, que constatou o seguinte dado: sete entre dez brasileiros com opiniões políticas divergentes não conseguem dialogar sobre suas escolhas e intenções de voto nas eleições de 2022 [3]. É o retrato de uma sociedade ideologicamente polarizada e esquizofrênica, incapaz de conviver pacificamente com o diferente e que enxerga no adversário político um inimigo. Assim, as redes sociais transformam-se em "arenas de batalha" onde proliferam os discursos de ódio e se mata (virtual e até fisicamente) uma pessoa por expressar posição política diversa. Por fim, as questões de interesse público são cada vez mais capturadas por interesses privados de grupos políticos, seja para a satisfação de suas pretensões políticas e econômicas ou ainda de terceiros, como demonstra a existência (por si só absurda!) de um "orçamento secreto" por meio de emendas parlamentares pagas com o dinheiro público e sem a devida transparência quanto ao destino dos recursos [4].

Mas em todo esse cenário desolador parece haver um fio de esperança ao costume democrático e ele passa pelo campo privado, pelas relações sociais de natureza privada. É que na percepção de um "realista esperançoso", como diria Ariano Suassuna, devemos lembrar que o costume democrático "é válido também nas relações de mercado" [5] e, neste sentido, a recente atualização do Código de Defesa do Consumidor em matéria de prevenção e tratamento dos consumidores (ou podemos dizer, das famílias!) superendividados abre uma possibilidade enorme à prática da tolerância e do diálogo no contexto das relações de consumo.

No campo jurídico sabemos que a proteção dos consumidores enquanto direito/garantia fundamental (CF, artigo 5º, XXXII) — e tendo o CDC como uma condição de plena eficácia deste direito/garantia fundamental — vincula-se de modo permanente ao princípio fundamental da dignidade da pessoa humana (CF, artigo 1º, III) [6], de modo que podemos compreendê-los, ao menos do ponto de vista axiológico, como enunciados de uma única norma jurídica. Assim, violar o CDC é violar o direito/garantia e, por conseguinte, o próprio princípio fundamental da dignidade humana. E neste mesmo campo jurídico é consenso que não há nada mais atentatório à democracia, além do desrespeito à harmonia dos Poderes, do que a violação dos direitos fundamentais e do princípio fundamental da dignidade humana.

Portanto, a percepção é a de que se abre, pelo Direito do Consumidor, uma possibilidade de colocar a pessoa humana superendividada diante de seus credores para que assumam uma primeira postura de diálogo e tolerância visando a conciliação e o acordo a partir de um compromisso (plano) de pagamento apresentado pelo consumidor superendividado (CDC, artigo 104-A). Em síntese: uma harmonização de interesses (CDC, artigo 4º, III) que são legítimos e aparentemente antagônicos, pois o fornecedor credor, especialmente o pequeno e o médio, não receberá o crédito a que tem direito, mas poderá receber aquilo que o consumidor se comprometer, em seu plano de pagamento, a adimplir. Neste sentido, o diálogo e a tolerância permitirão a conciliação e o fornecedor perceberá que a decisão de conciliar será vantajosa também para ele, na medida em que trará de volta ao mercado o consumidor e sua família agora em processo de recuperação da ruína econômica.

Contudo, sejamos realistas, ainda que esperançosos: será muito difícil empregar o mesmo raciocínio nas relações com os grandes fornecedores, sobretudo certos fornecedores do sistema financeiro, cuja lógica econômica, já apontada em estudos realizados no Brasil, é a de conceder crédito a quem não pode pagar, buscando manter cativo o consumidor devedor, em verdadeira escravidão econômica [7]. A esses fornecedores, em princípio, não será fecunda a tentativa de repactuação de dívidas por conciliação, cabendo ao consumidor, para satisfação do seu direito ao tratamento jurídico enquanto superendividado e preservação do seu mínimo existencial (CDC, artigo 6º, XI e XII), o ajuizamento da ação compulsória para renegociação (CDC, artigo 104-B), fundada na boa-fé e no dever de renegociar em correlação com os novos direitos básicos para os consumidores superendividados [8].

Como irá funcionar esse novo regime jurídico de prevenção e tratamento dos consumidores (e das famílias) superenvididados só o tempo irá dizer, inclusive pelas ameaças a sua plena efetividade no campo legislativo [9]. Contudo, é certo que ele possibilitará realizar, no campo jurídico, algo que as pessoas não têm conseguido realizar em grande parte de suas relações sociais, marcadas pela polarização política e pelo extremo individualismo. Enfim, trata-se de uma aposta no Direito do Consumidor como elemento propulsor do costume democrático tão ausente em nossa atual sociedade brasileira, marcada pela falta de tolerância e de diálogo. Nas relações de consumo envolvendo famílias superendividadas, o novo regime jurídico trazido pela Lei 14.181/2021 permitirá o resgate econômico dessas famílias, situação que trará benefícios ao mercado de consumo como um todo, inclusive para os grandes fornecedores [10].

 


[1] BOBBIO, Norberto. Da democracia. Para uma certa idéia da Itália. Trad. Anna Bracchiolla Cabreira. In: OLIVEIRA JÚNIOR, José Alcebíades de. O novo em Direito e Política. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora. 1997, p. 116.

[2] A frase pode ser atribuída à biógrafa de Voltaire, Evelyn Beatrice Hall, como uma tentativa de resumir as ideias do filósofo iluminista, sobretudo sua defesa pela liberdade de expressão. Em 1906 a escritora britânica finalizou a obra The Friends of Voltaire, na qual se encontra a célebre frase atribuída erroneamente ao pensador francês.

[3] CASADO, José. Intolerância política dificulta a conversa entre os eleitores sobre o país. Revista Veja. Disponível em: https://veja.abril.com.br/coluna/jose-casado/intolerancia-politica-dificulta-a-conversa-entre-os-eleitores-sobre-o-pais/. Acesso em 12/7/2022.

[4] CONTI, José Maurício. As emendas parlamentares, o 'orçamento secreto', a cooptação e corrupção na política (coluna Opinião). Revista de Faculdade de Direito da USP. Disponível em: https://direito.usp.br/noticia/fa5e70e83422-as-emendas-parlamentares-o-orcamento-secreto-a-cooptacao-e-corrupcao-na-politica-. Acesso em 10/7/2022.

[5] BOBBIO, Norberto, Op. cit. p. 116.

[6] MARQUES, Claudia Lima. Contratos no Código de Defesa do Consumidor. 8ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais. 2016, p. 683-687.

[7] A propósito, v. o excelente documentário "Juros sobre Juros", produzido pela Faculdade de Direito da USP — Ribeirão Preto em parceria com o Idec. Disponível no canal do YouTube: https://youtu.be/Ke0tvxc5TRw. Acesso em 5/7/2022.

[8] Neste sentido, os Enunciados n. 1 e 3, da II Jornada de Pesquisa UFRGS PUC-RS, de autoria dos profs. drs. Claudia Lima Marques, Fernando Rodrigues Martins e Ricardo Sayeg (Enunciado 1) e Fernando Rodrigues Martins (Enunciado 2): "Enunciado 1. A Lei 14.181/21 é de ordem pública e de interesse social, e reconhece que o fenômeno do superendividamento do consumidor pessoa natural é estrutural da sociedade de crédito e consumo, constituindo grave risco sistêmico e de exclusão social, que deve ser prevenido e tratado através do princípio da boa-fé e práticas de crédito responsável"; "Enunciado 3. Os novos direitos básicos inseridos no art. 6º pela Lei 14.181/21 no Código de Defesa do Consumidor são direitos prevalentes fixando deveres correspondentes aos fornecedores" (MARQUES, Claudia Lima; RANGEL, Andréia Fernandes de Almeida – Org.). Superendividamento e Proteção do Consumidor: estudos da I e II Jornadas de Pesquisa CDEA. (E-book). Porto Alegre: Editora Fundação Fênix. 2022, p. 389. Disponível em: https://www.fundarfenix.com.br/ebook/171superendividamento. Acesso em 12/7/2022.

[9] A exemplo da recente Medida Provisória nº 1.106/2022 que autoriza aumento de margem de empréstimos consignados a aposentados e pensionistas do INSS, dos já previstos 35% para 40%, comprometendo o critério geral relativo ao mínimo existencial (30%), que estava expressamente previsto no art. 54-E da Lei 14.181/2021, cujo texto recebeu veto presidencial. Sobre o tema v. LIMA, Clarissa Costa de; CAVALLAZZI, Rosângela Lunardelli. O retrocesso desmedido da Medida Provisória 1.106, de 17 de março de 2022 e a precarização da proteção do consumidor idoso. Revista de Direito do Consumidor. São Paulo, nº 141, p. 437-442, maio-junho 2022.

Outro exemplo de ameaça à efetividade do regime estabelecido pela Lei 14.181 é o PL 4188/2021, denominado "PL das Garantias Imobiliárias", que, se aprovado, permitirá ao consumidor dar em garantia imóvel de sua propriedade na qualidade de "bem de família" a fim de conseguir crédito em condições mais "favoráveis". O problema mais grave neste caso é que o consumidor superendividado em razão de uma dívida contraída nessas condições (com garantia real ofertada com o bem de família) em tese não poderia solicitar a repactuação/revisão de sua dívida em razão das dívidas com garantia real estarem no rol daquelas em que o consumidor não pode se valer da renegociação, nos termos do §1º do art. 104-A do CDC. Em sentido contrário, v. Enunciado n. 1 da I Jornada de Pesquisa CDEA UFRGS PUC-RS, de autoria dos profs. Fernando Rodrigues Martins e Keila Pacheco Ferreira: "Os dispostos nos Artigos 54-A usque 54-D da Lei 14.181/21 sobre a prevenção do superendividamento do consumidor se aplicam ao crédito imobiliário e dívidas com garantias reais" (MARQUES, Claudia Lima; RANGEL, Andréia Fernandes de Almeida (Org.). Superendividamento e Proteção do Consumidor: estudos da I e II Jornadas de Pesquisa CDEA. (E-book). Porto Alegre: Editora Fundação Fênix. 2022, p. 385. Disponível em: https://www.fundarfenix.com.br/ebook/171superendividamento. Acesso em 12/7/2022.

[10] Tese sustentada no já citado documentário "Juros sobre Juros", produzido pela Faculdade de Direito da USP — Ribeirão Preto em parceria com o IDEC. Disponível no canal do YouTube: https://youtu.be/Ke0tvxc5TRw. Acesso em 5/7/2022.

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    é doutor em Direito pela UFRGS, professor associado na Faculdade de Direito da Universidade Federal de Pelotas (UFPel), professor permanente no programa de pós-graduação (mestrado) em Direito da UFPel, coordenador geral (líder) do Grupo de Estudos e Pesquisa em Direito do Consumidor (Gecon UFPel) e diretor adjunto do Instituto Brasileiro de Política e Direito do Consumidor (Brasilcon).

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