Crimes do futuro

Escalada de fraudes no sistema bancário preocupa Tribunal de Justiça de SP

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27 de julho de 2022, 20h51

Um significativo aumento de casos envolvendo fraudes bancárias levantou um alerta na Subseção de Direito Privado 2 (DP2) do Tribunal de Justiça de São Paulo. Tanto que, nesta terça-feira (26/7), os desembargadores Roberto Mac Cracken, Alberto Gosson e Spencer Almeida reuniram Ministério Público, Defensoria Pública, Ordem dos Advogados do Brasil, o próprio Judiciário e o Procon para debater academicamente a questão.

O evento foi promovido pela coordenadoria de Direito Bancário da Escola Paulista da Magistratura e realizado no Gade 9 Julho, prédio na capital onde trabalham os desembargadores do Direito Privado 1 e 2 do tribunal.

Klaus Silva TJ-SP
Desembargador Roberto Mac Cracken: "Tem alguma coisa muito errada"
Klaus Silva/TJ-SP

Mac Cracken se demonstrou aflito com a atual situação em que se encontra o país."A nosso sentir, está ocorrendo um volume muito grande de fraudes bancárias em contratos eletrônicos, sobretudo em empréstimos consignados", declarou ele.

Usando como referência uma reportagem do jornal Valor Econômico do último dia 22, ele citou que, em 2019, havia na base do TJ 2,2 mil processos em segunda instância referentes a fraudes em consignados. Em 2021, passaram para seis mil, volume quase três vezes maior. Mac Cracken disse acreditar que esse número já esteja superado em 2022. "Temos recebido por volta de um terço da distribuição em que a fraude é perpetrada só em consignados, em desfavor de aposentados e pensionistas. É uma situação muito grave".

De acordo com dados do Tribunal de Justiça enviados exclusivamente para o Anuário da Justiça São Paulo 2022, em preparação, as ações de consumidor contra os bancos foram o tema mais julgado na Seção de Direito Privado em 2021, com quase 70 mil julgados.

As ações de cobrança bancária, ou seja, quando o banco é que ajuíza a ação, foram o quinto tema mais julgado, com quase 25 mil casos. De janeiro a maio deste ano, as ações promovidas pelo consumidor contra bancos já estavam em 33 mil, e a dos bancos contra os consumidores, em 11,5 mil.

Richard Gantus Encinas é promotor de Justiça do Ministério Público de São Paulo e membro do CyberGaeco. Focado na atuação criminal, ele tenta perseguir o rastro de quadrilhas especializadas em fraudes pela internet. Encinas citou que o aumento das penas em recente alteração mostra a preocupação do legislador com os fatos.

"Hoje um estelionato em consignado praticado contra um vulnerável tem pena mínima de cinco anos e três meses. A consequência é que não cabem ANPP, sursis, substituição da pena, regime aberto e nem suspensão da pena", declarou. Ele disse ainda que, apesar disso, existe muita dificuldade de impedir as fraudes, que passaram a acontecer muito por conta dos contratos digitais. "Os bancos hoje praticamente não fazem mais atendimento físico, tudo é por telefone e por robôs. Hackers encontram brechas nesses sistemas para enganar sobretudo os vulneráveis".

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Richard Encinas destacou a dificuldade de bloqueio das contas
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Outro agravante, segundo o promotor, é que bancos terceirizam seus serviços de contratação, dando a pessoas desconhecidas acesso a informações privilegiadas. Além disso, ele cita o fato de que a dark web já negocia os dados de 220 milhões de brasileiros, inclusive previdenciários.

"Precisamos criar mecanismo legislativo que permita às autoridades policiais e administrativas realizarem com agilidade ao menos o bloqueio da conta. No mundo físico, manda na casa do sujeito e prende em flagrante. No mundo cibernético, não temos essa possibilidade. Por mais ágil que seja o Judiciário, a polícia demora três dias para instaurar investigação, montar pedido cautelar, abrir vista ao MP, sair uma ordem judicial expedindo o mandado de busca. Até que isso ocorra, o dinheiro já foi pulverizado em outras 50 contas", relatou Encinas.

O defensor público paulista Rodrigo Gruppi contou que existem basicamente três formas de fraude. A primeira é mais sofisticada, e ocorre quando um hacker invade o sistema bancário, ato que está fora da atuação da Defensoria. A segunda é quando a vítima é enganada e acaba colaborando culposamente para que haja a fraude. "E aí travamos no Judiciário a discussão: os bancos podem se negar a ressarcir nesses casos? Até onde essa responsabilidade deve ir?", disse. E o terceiro modelo é o furto de celular desbloqueado. O defensor afirmou também que, hoje, o bem mais precioso são os dados digitais das pessoas.

Ele também chamou atenção para a questão da validade dos contratos eletrônicos. "Esses contratos são feitos com muita facilidade. Essa manifestação de vontade não tem nenhum vício de consentimento, nenhum defeito, nenhuma lesão que o torna inválido? O banco não tem de demonstrar que esse contrato é válido? Sendo assim, não posso pedir a anulação e ser ressarcido por uma cobrança indevida?".

Questionado se não teria chegado a hora de os entes competentes proporem uma ação civil pública, tendo em vista o dano social que contratos em massa fraudulentos têm provocado, Gruppi esclareceu que a Defensoria não vê com tanto acerto esse modo de litigância. Isso porque a indenização coletiva é revertida de forma indireta ao consumidor que sofreu o prejuízo, o que faz com que ela vá para o fundo dos direitos difusos, que acaba destinando a quantia para entidades de benefício social, como hospitais públicos.

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Rodrigo Gruppi: ação coletiva poderia gerar manipulação dos debates pelos bancos
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Outro fator que gera temor, argumentou, é o de que a ação centraliza os debates e poderia servir de mecanismo para que os bancos protelassem cada vez mais a discussão, podendo ter efeito semelhante ao que houve com as ações sobre os expurgos inflacionários dos planos econômicos da década de 1990, que até hoje tramitam no Judiciário. "É preciso ter muita responsabilidade, pois um julgado negativo acaba gerando muito mais dificuldades do que atomizar em ações individuais".

Guilherme Farid, diretor-executivo do Procon, trouxe números sobre problemas com crédito consignado. "Só este ano já ultrapassamos 2,5 mil reclamações, o que dá 13 por dia". Ele fez também a seguinte provocação: "Alguém autorizou esse contrato e alguém autorizou esse depósito. No cenário de consignados, temos que nos perguntar se o contrato é verdadeiro, é o primeiro passo. O que é o consentimento? Se o consumidor não solicitou, mas tem a rubrica e a assinatura, onde está o consentimento? E os contratos sem assinaturas? O consumidor tem de ter a plena consciência do que ele está contratando e a instituição tem de ser muito clara sobre essa contratação. Quem está fazendo essa checagem nas instituições?"

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Guilherme Farid disse que bancos
não estão fazendo a lição de casa Klaus Silva TJ-SP

Farid relatou ainda que a atuação da Febraban tem sido incipiente no diálogo sobre o assunto, e que a punição a correspondentes financeiros inescrupulosos demora muito a acontecer. "Esse profissional deveria ser expurgado logo na primeira falha".

Jesualdo Eduardo de Almeida Júnior, presidente da Comissão de Direito do Consumidor da OAB-SP, comentou que o cenário jurídico e legal não é nada alvissareiro para o momento. "Recentemente, medida provisória do atual governo estabeleceu aumento da margem consignável agora também para o benefício de prestação continuada, para renda mensal vitalícia e para o auxilio emergencial. Parece que a prática legislativa é incentivar que eles continuem a ocorrer não obstante a gente esteja falando de abusos".

Também criticou recente decisão do STJ em sede de repetitivo. "Nessa decisão alarmante, o STJ disse que o desconto de empréstimo comum em conta não segue o limite do crédito consignado. Tratam a mesma coisa como sendo diferentes e permitem a onerosidade do idoso".

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Jesualdo de Almeida Júnior: situação
dos hipervulneráveis tende a piorar 
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Por fim, chamou atenção para o fato de que advogados que possuem muitas causas com essa mesma questão estão sofrendo retaliações de sentenças. "São taxados de advogados predadores. Alguns juízes que recebem ações semelhantes as julgam muitas vezes improcedentes por falta de interesse de agir e condenam o advogado em litigância de má-fé".

Após esse ponto, o desembargador Roberto Mac Cracken interveio para dizer que não é esse o pensamento do Tribunal de Justiça de São Paulo. "A ação que traz um pedido justo jamais pode ser considerada como predatória".

O desembargador Alberto Gosson também foi provocado a se manifestar. "Na prática, existe o que se chama de advocacia predatória. Mas existe também os casos que são devidamente postulados. Hoje em dia se diz muito sobre demandas de massa. Então percebemos isso também, às vezes a própria advocacia postulando em nome do consumidor como dos bancos, padronizando tipos de defesa que não contribuem em nada para o litígio. O que se observa é que não se busca muito investigar os fatos. Cada caso tem peculiaridades, e há dificuldade até do próprio judiciário em dar solução artesanal para os casos. Falha um pouco de ambos os lados. Procuramos analisar as coisas na devida medida, com prudência".

Mac Cracken quis registrar ainda uma última constatação: "A minha 22ª Câmara é a câmara que mais oficia o Procon, os diretores de bancos, Defensoria, MP sobre práticas abusivas. De todas as vezes que oficiamos, também fazemos à agência reguladora, o Banco Central. Nunca recebi uma só resposta. Então para quê serve?".

Apenas dois representantes de bancos, da plateia, quiseram se manifestar, já que associações que representam as instituições financeiras não expressaram interesse em participar da mesa de debate. O advogado Bruno Duque, diretor jurídico do banco BTG Pactual, contou ser comum que, em casos de consignados, o consumidor não vá à audiência ou que, quando vai, não sabe do que se trata, indicando litigância predatória.

Sobre o certificado digital, comentou que há casos de parentes que pedem crédito pelo idoso, não se podendo generalizar todos os casos e imputando tudo aos bancos. "O bot é um problema, mas é uma solução. A engenharia social também decorre do excesso de exposição das pessoas em redes sociais, que facilita a vida de muitos criminosos. Se alguém pega seu celular e paga descuidadosamente uma conta, eu, instituição financeira, vou ter que arcar com a leniência dessa pessoa? A pessoa deve responder pelos seus atos. O sistema financeiro é estável. Voltar à era do pré-pix é o que queremos?".

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