Território Aduaneiro

Decadência de tributos e multas em matéria aduaneira

Autor

  • Liziane Angelotti Meira

    é presidente da 3ª Seção do Carf auditora fiscal da Receita Federal professora pesquisadora e coordenadora adjunta do Programa de Mestrado em Políticas Públicas e Governo da FGV-EPPG membro da Academia Internacional de Direito Aduaneiro doutora em Direito Tributário pela PUC-SP mestre em Direito e especialista em Tributação Internacional pela Universidade Harvard e agraciada com o Prêmio Landon H. Gammon Fellow por Harvard.

26 de julho de 2022, 8h47

Nossos leitores, que navegam nas águas do Direito Aduaneiro, vivenciam os problemas decorrentes da frequente confusão de institutos de Direito Tributário e de Direito Aduaneiro. Aliás, importante propósito desta coluna é difundir o Direito Aduaneiro e colaborar na construção de seu supedâneo teórico-jurídico.

Spacca
Nesse sentido, esta semana vamos abordar uma questão bastante controversa, a decadência em matéria aduaneira.

A decadência exsurge como a perda do direito pela inércia do seu titular em certo interregno temporal. A decadência aduaneira constitui aspecto muito importante, presente com frequência nos processos administrativos e judiciais, e que tem o condão de fulminar o crédito e desconstituir prontamente a lide. Nessa matéria, as  regras de Direito Tributário têm penetrado no Direito Aduaneiro de maneira assistemática.

Propõe-se, nesse contexto, uma reflexão sobre a estrutura normativa da decadência aduaneira e sobre alguns problemas decorrentes de uma evolução desordenada da legislação. A questão da decadência aduaneira é realmente relevante em termos jurídicos e econômicos, e enfrentamos problemas muito intrincados:

  1. Quando se trata de tributos aduaneiros, aplica-se o prazo decadencial previsto no Código Tributário Nacional ou na Lei Aduaneira?
  2. Caso se aplique o prazo decadencial da Lei Aduaneira para tributos, restaria observado o requisito do artigo 146, III, "b", da Constituição Federal?
  3. Em relação às multas aduaneiras, haveria diferença de prazo decadencial para multas tributárias e não tributárias?

O Decreto-lei nº 37, de 18 de novembro de 1966 (denominado Lei Aduaneira), dispõe sobre o imposto de importação e matéria aduaneira. Necessário verificar a ementa do Decreto-lei, pois será importante na determinação de seu âmbito de aplicação. A ementa é a seguinte:

Dispõe sobre o imposto de importação, reorganiza os serviços aduaneiros e dá outras providências. (grifou-se)

O artigo 138 do Decreto-Lei nº 37/1966 tratava originalmente da decadência tributária, apesar da referência, errônea, à prescrição, nos seguintes termos:

Art. 138. Prescreve em 5 (cinco) anos o direito de cobrar tributos a contar do fato, que tornar conhecido o sujeito da obrigação tributária.
Parágrafo único. Em se tratando de cobrança de diferença de tributos, conta-se, o prazo a partir do pagamento efetuado.

O Decreto-Lei é de 18 de novembro de 1966, e a Lei nº 5.172, que depois se tornou Código Tributário Nacional e dispõe sobre a decadência tributária, é de 25 de outubro de 1966. Logo, o artigo 138 do Decreto-Lei, era uma norma mais recente do que aquelas do CTN e tratava de modo específico do prazo decadencial do imposto de importação. Ademais, tanto o artigo 138 do Decreto-Lei quanto as regras decadenciais do Código Tributário Nacional estavam vigentes em 1967, quando a nova Constituição entrou em vigor.

O Supremo Tribunal Federal (STF) entendeu que as normas relativas à prescrição e à decadência tributárias têm natureza de normas gerais de direito tributário, cuja disciplina é reservada à lei complementar, tanto nas constituições de 1967/1969 quanto na Constituição atual. Essa interpretação preservou a força normativa da Constituição, previu disciplina homogênea, em âmbito nacional, da prescrição, decadência, obrigação e crédito tributários. Assim, a conclusão do STF foi de que o Código Tributário Nacional, promulgado como lei ordinária e recebido como lei complementar pelas Constituições de 1967, 1969 e 1988, é que disciplina a prescrição e a decadência tributárias. Logo, tal matéria não pode ser regulada de modo diverso por lei ordinária da União, dos Estados, dos Municípios ou do Distrito Federal.[1]

Dessa forma, as normas relativas à prescrição e à decadência tributárias, incluindo aquelas pertinentes ao imposto sobre a importação, têm natureza de normas gerais de direito tributário, cuja disciplina é reservada à lei complementar, tanto nas constituições de 1967/1969 quanto na Constituição atual.

Consequentemente, temos a primeira conclusão em relação à decadência da legislação aduaneira, especificamente daquela prevista no artigo 138 do Decreto-Lei nº 37/1966: esse artigo, por tratar de decadência tributária, estava vigente quando a Constituição de 1967 entrou em vigor e, em razão das disposições constantes do seu artigo 19, § 1º, da Constituição, foi elevado ao status de lei complementar.

No entanto, há um problema: o artigo 138 foi posteriormente alterado por um Decreto-Lei, o Decreto-Lei nº 2.472, de 1º de setembro de 1988.

Portanto, seguindo na trilha do entendimento do STF que adotamos e segundo nossas conclusões sobre o 138 do Decreto-Lei nº 37/1966, infere-se que a alteração desse artigo pelo Decreto-Lei nº 2.472, de 1º de setembro de 1988, apresenta conflito com a Constituição, pois o artigo tinha status de lei complementar.  

O artigo 139 do Decreto-Lei nº 37/1966, por sua vez, disciplina o prazo decadencial para lançar penalidade:

Art.139 – No mesmo prazo do artigo anterior se extingue o direito de impor penalidade, a contar da data da infração.

Essas penalidades abrangem penalidades relativas ao imposto de importação e outras penalidades aduaneiras. A multa pela falta de pagamento do imposto sobre a importação, nos termos do artigo 113, § 1º, combinado com o artigo 139, ambos do Código Tributário Nacional, constitui crédito tributário. Assim, o artigo 139 do Decreto-Lei nº 37/1966 trata não somente, mas também de decadência tributária, especificamente decadência de multa relacionada ao imposto sobre a importação, logo este artigo disciplina decadência tributária. 

Contudo, o artigo 139 do Decreto-Lei nº 37/1966 não sofreu alteração, de forma que, relação a ele, não enfrentamos, neste aspecto, problema de incompatibilidade com a Constituição.

Os artigos 140 e 141 do Decreto-Lei nº 37/1966, por sua vez, foram alterados pelo mesmo Decreto-Lei nº 2.472, de 1º de setembro de 1988. Esses artigos tratavam originalmente de decadência aduaneira e, com as alterações, passaram a dispor sobre prazo prescricional de crédito tributário. 

Tendo em conta o entendimento adotado neste estudo, com base no posicionamento do STF,[2] sobre a necessidade de lei complementar, mister afirmar que as alterações dos artigos 140 e 141 do Decreto-Lei nº 37/1966 também apresentam incompatibilidade com a Constituição porque revogam matéria de decadência tributária e também porque veiculam nova matéria de prescrição tributária; tudo por meio de Decreto-Lei, ato normativo com hierarquia de lei ordinária.

Assim, é de se concluir que as regras sobre prescrição que deveriam ser aplicadas aos tributos aduaneiros são aquelas constantes do Código Tributário Nacional. O mesmo entendimento deveria ser aplicado em relação à prescrição das multas tributário-aduaneiras.

O artigo 137 do Decreto-Lei nº 37/1966, na redação original, estabelecia prazo bastante exíguo, um ano, para o contribuinte reclamar por erro, classificação indevida e outras. Esse artigo, apesar de veicular lapso temporal estreito, trata de decadência do direito de solicitar repetição do indébito de tributo na importação, e foi alterado pelo Decreto-Lei nº 2.472, de 1º de setembro de 1988 e depois revogado pela Lei nº 10.833, de 29 de dezembro de 2003.

Valendo-se uma vez mais do entendimento do STF que adotamos neste trabalho, lembramos que ato normativo com hierarquia de lei ordinária não poderia alterar ou revogar ato normativo com status de lei complementar que regula decadência tributária. Logo, apresenta-se problema de constitucionalidade tanto na alteração quanto na revogação do artigo 137 do Decreto-Lei nº 37/1966.

É de se inferir, portanto, que o regime jurídico-legal da decadência aduaneira deveria ser composto pelos artigos 137 a 141 do Decreto-Lei nº 37/1966, todos na redação original.

Por sua vez, com a redação introduzida pelo Decreto-Lei de 1988, o artigo 54 passou a estabelecer o prazo para a revisão aduaneira dos tributos e demais gravames incidentes na importação. Esse artigo estabelece um prazo de cinco anos contado do fato gerador. O problema é que o prazo para revisão do lançamento é o prazo decadencial para lançamento de ofício. Trata-se de mais um caso de norma com hierarquia de lei ordinária que alterou disposição legal concernente à decadência. Logo, o artigo 54 do Decreto-Lei nº 37/1966 não deveria regular matéria que envolva decadência tributária porque o ato que estabeleceu sua redação não tem hierarquia de lei complementar.

Dessa forma, nossas conclusões são de que o regime jurídico-legal da decadência aduaneira deveria ser composto pelos artigos 137 a 141 do Decreto-Lei nº 37/1966, todos na redação original.

No Carf, há decisões diversas na interpretação da legislação sobre decadência aduaneira. Cumpre lembrar que esse Conselho não pode reconhecer inconstitucionalidade, conforme a Súmula Carf nº 2. Assim, por mais técnica, bem estrutura e fundamentada que seja uma decisão do Carf, ela não pode atingir a mesma profundidade que se alcançou nesta reflexão, pois majoritariamente nossas conclusões encontram fulcro em aspectos de inconstitucionalidade.[3]

Analisando-se a jurisprudência, especialmente decisões do STJ[4], observa-se que o Poder Judiciário aplica de forma majoritária as regras decadenciais e prescricionais do Código Tributário Nacional a todos os tributos, inclusive o imposto de importação, afastando as normas específicas sem analisar os aspectos de inconstitucionalidade.

Portanto, trata-se de tema relevante, com grande impacto processual e econômico, que pede aprofundamento na análise normativa, especialmente no aspecto constitucionalidade, e reclama um tratamento mais minucioso pelo Poder Judiciário.[5]


[1]  Colacionamos trecho do RE nº 556.664-RS: 

“As normas relativas à prescrição e à decadência tributárias têm natureza de normas gerais de direito tributário, cuja disciplina é reservada a lei complementar, tanto sob a Constituição pretérita (art. 18, § 1º, da CF/1967/1969) quanto sob a Constituição atual (art. 146, “b”, III, da CF/1988).”

[2] RE nº 556.664-RS, consolidado na Súmula Vinculante nº 8.

[3] Cabe ainda salientar que não pode o julgador administrativo contrariar súmulas do CARF, como a de n. 184: “O prazo decadencial para aplicação de penalidade por infração aduaneira é de 5 (cinco) anos contados da data da infração, nos termos dos artigos 138 e 139, ambos do Decreto-Lei n.º 37/66 e do artigo 753 do Decreto n.º 6.759/2009” (vinculante, conforme Portaria ME 12.975/2021).

[4] Nesse sentido, o REsp nº 1.201.845

[5] Para aprofundar os estudos sobre o tema, sugere-se leitura de: MEIRA, Liziane Angelotti. Decadência no Direito Aduaneiro Brasileiro. In: Rosaldo Trevisan. (Org.). Temas Atuais de Direito Aduaneiro III. 1. ed. São Paulo: Aduaneiras, 2022, p. 501-537.

Autores

  • Brave

    é conselheira e presidente de Turma no Carf, auditora fiscal da Receita Federal, professora, pesquisadora e coordenadora adjunta do Programa de Mestrado em Políticas Públicas e Governo da FGV-EPPG, membro da Academia Internacional de Direito Aduaneiro, doutora em Direito Tributário pela PUC-SP, mestre em Direito e especialista em Tributação Internacional pela Universidade Harvard e agraciada com o Prêmio Landon H. Gammon Fellow por Harvard.

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