Opinião

Criminalização e proteção de dados: análise do caso Roe vs Wade

Autor

  • Flora Sartorelli Venâncio de Souza

    é advogada nas áreas de compliance e proteção de dados mestre em Direito Penal pela Uerj ex-pesquisadora visitante do Instituto Max Planck de Direito Penal Internacional e Comparado (2017) e membro do Departamento de Novas Tecnologias e Direito Penal do IBCCrim CIPM e CDPO/BR.

26 de julho de 2022, 20h33

A Suprema Corte dos Estados Unidos decidiu pela anulação da emblemática decisão Roe vs. Wade, confirmando o entendimento contido em minuta de decisão vazada no início de maio. Roe vs. Wade assegurou o direito constitucional ao aborto no país, em 1973, o que chegou ao fim após 49 anos.

Com a nova decisão, será aberto espaço para que, em pouco tempo, diferentes estados norte americanos adotem leis criminalizando o aborto. O diagnóstico é de que cerca da metade dos estados baniria a prática ou a restringiria severamente. A tendência é de criminalização expansiva de mulheres que façam abortos, de clínicas ou profissionais da saúde que ofereçam o serviço ou mesmo de pessoas que financiam estruturas que facilitem o acesso ao procedimento.

O fato é que, junto com a revogação do direito constitucional ao aborto, a decisão também representa ameaça aos direitos de privacidade e proteção de dados: o que acontece quando uma ação legal, em pouco tempo, se torna ilegal? O que acontece quando dados pessoais sobre saúde reprodutiva, tratados por diversas empresas, se tornam potenciais evidências de um crime?

E mais: quais as consequências quando isso se dá em um país que não possui legislação geral e abrangente em matéria de proteção de dados, apta a regular o tratamento de dados sobre saúde reprodutiva? Ou que também não tenha legislação sistêmica sobre o direito à proteção de dados pessoais na segurança pública ou persecução penal, como é o caso dos EUA?

O caso estadunidense é peculiar pela possibilidade de criminalização de uma conduta do dia para a noite, o que acaba expondo número imensurável de pessoas. Contudo, os problemas decorrentes não são exclusivos dos EUA. A análise sobre privacidade e proteção de dados que tem sido feita também é aplicável  ainda que parcialmente  a outros contextos, como o brasileiro. Aqui, onde o aborto, excetuadas algumas circunstâncias, é crime, também não temos um direito sistêmico à proteção de dados no âmbito penal.

Hoje, informações sobre determinada mulher que resolveu interromper voluntariamente uma gravidez estão por toda parte e podem ser inferidas de maneiras distintas. Podem estar em aplicativos de monitoramento de saúde reprodutiva, em repositórios de busca on-line por medicamentos abortivos, em fichas médicas de empregadores, ferramentas de geolocalização, e, claro, em plataformas (físicas ou digitais) de atendimento médico. No caso de financiadores, essas informações também podem estar em plataformas de pagamento e transferência de crédito.

Obter acesso a dados como esses não é exatamente difícil. Logo após o vazamento da minuta da Suprema Corte dos EUA, um repórter comprou, por 160 dólares, dados agregados de pessoas que visitaram mais de 600 clínicas de aborto legal pelo país. Os dados mostram de onde as pessoas vieram, quanto tempo elas permaneceram nas clínicas e para onde foram posteriormente.

Em outro caso, de 2020, uma empresa popular de descontos em produtos farmacêuticos foi denunciada por vender informações a empresas de marketing, incluindo a Google e o Facebook, sobre quais medicamentos as pessoas estavam buscando. Dessa forma, não parece improvável que situação semelhante possa ocorrer com a busca de medicamentos relacionados ao aborto.

Ainda, vale citar o famoso caso da Target, em que a rede, por meio de algoritmos de padrão de consumo, descobriu que uma adolescente estava grávida antes mesmo de sua família. A jovem não precisou comprar fraldas ou teste de gravidez para que a corporação chegasse a essa conclusão.

Aliado à disponibilidade de informações sobre saúde reprodutiva e à praticamente inexistente regulação sistêmica de proteção de dados no país, está o fato de que as plataformas nas quais esses dados trafegam não terem sido pensadas para um ambiente de criminalização da prática do aborto. Em outras palavras, não havia uma preocupação geral sobre se determinada informação poderia levar à prisão de uma mulher quando essas plataformas foram pensadas e construídas.

Como consequência, a realidade mostra que boa parte das empresas que tratam dados potencialmente relacionáveis a práticas de aborto ainda não está preparada para as consequências da criminalização, pelo fato de não ter implementado medidas administrativas e técnicas aptas a proteger essas informações.

Há dois usos possíveis de dados relacionados à saúde reprodutiva por agentes de segurança pública e persecução penal no contexto da criminalização da prática. O primeiro, quando do uso pelo Estado como prova em investigação ou processo penal. Por exemplo, uma mulher dá entrada em pronto socorro alegando ter sofrido um aborto espontâneo e, ao suspeitar, a equipe de enfermagem a denuncia a autoridades, que poderão requisitar acesso ao histórico de buscas dela para verificar alguma procura por medicamentos abortivos.

O segundo quando há emprego de tecnologias para o monitoramento intensivo de condutas suspeitas, em contexto de dragnet surveillance (vigilância massiva), por autoridades policiais. Por exemplo, por meio do monitoramento de todas as buscas por medicamentos abortivos feitas em determinado dia.

Se durante a vigência do Roe vs. Wade, mulheres, clínicas e financiadores compartilhavam dados sobre a prática de aborto em um contexto confiança, agora esses dados podem se tornar uma ameaça contra eles mesmos. O potencial discriminatório dessas informações se torna ainda maior a partir da criminalização, uma vez que estaríamos diante do estigma próprio da "delinquência" e da possibilidade concreta de punição criminal (que pode ser a mesma de um crime de homicídio em algumas localidades).

O caso traz à tona o debate sobre a necessidade generalizada de balanceamento do poder estatal com garantias de direitos fundamentais, incluindo o da privacidade e da proteção de dados. É pensar em como aplicar os princípios da legalidade e da proporcionalidade aos atos das autoridades policiais e judiciais, de modo a evitar um contexto de autoritarismo e vigilância desmedida sob a desculpa de combate ao crime. Até onde eu posso ir contra a privacidade de alguém para investigar um crime?

A anulação do Roe vs. Wade faz com que a sociedade estadunidense repense como empresas e pessoas podem proteger dados pessoais, uma vez que criminaliza conduta presente no cotidiano do país. Mas, traz também consigo a urgência de debater novas formas de regulação. Nesse sentido, vale questionar os limites de obtenção de dados pessoais por autoridades, incluindo os limites ao compartilhamento entre agentes públicos e privados quando a finalidade for segurança pública e persecução penal.

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