Seguros contemporâneos

Agravamento do risco no seguro de vida em virtude da direção alcoolizada

Autores

  • Ilan Goldberg

    é advogado parecerista doutor em Direito Civil pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) professor da FGV Direito Rio e sócio de Chalfin Goldberg & Vainboim Advogados.

  • Thiago Junqueira

    é doutor em Direito Civil pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro mestre em Ciências Jurídico-Civilísticas pela Universidade de Coimbra professor convidado da FGV Direito Rio da FGV Conhecimento e da Escola de Negócios e Seguros diretor de Relações Internacionais da Academia Brasileira de Direito Civil advogado e sócio de Chalfin Goldberg & Vainboim Advogados Associados.

25 de julho de 2022, 18h09

Dúvida que vem despertando debate acalorado há décadas no âmbito do seguro de vida é a seguinte: caso o segurado, após a ingestão de bebida alcoólica, conduza o seu automóvel e dê ensejo a um sinistro, em acidente no qual ele venha a falecer, o segurador estará vinculado a pagar o capital segurado ao beneficiário?  

Spacca
Diante da publicação da Circular Susep nº 667, de 04/07/2022, que tem um histórico de tramitação rico e enfrenta marginalmente a questão em sua versão final, e da promessa de revisitação do tema pelo STJ em julgamento previsto para o dia 10 de agosto, convém trazer à ribalta alguns aspectos essenciais para o alcance da resposta à indagação.

Antes de mais, é preciso recordar um ponto básico, mas que por vezes passa despercebido: a diferença entre as cláusulas de exclusão de risco e as cláusulas de perda de direitos nos seguros. Conforme destaque da doutrina, "[…] embora as cláusulas de exclusão e perda de direitos se assemelhem, constituindo hipóteses de delimitação negativa do risco, elas operam de modo distinto, não podendo ser confundidas. Na primeira, a cobertura é afastada de plano, desde o início da relação contratual. Na segunda, há cobertura para o evento, porém, no curso da relação contratual o segurado vem a perder o direito em razão de determinado ato ou comportamento".[2]

Spacca
Essa precisão conceitual é fundamental, pois, no PARECER PF – SUSEP – N° 26.522/2007 (que deu origem à Carta Circular Susep nº 8/2007), após diferenciar a exclusão de risco e o agravamento do risco, apenas defendendo a impossibilidade de exclusão de risco de direção alcoolizada nos seguros de pessoas, o Procurador Paulo Penido, que subscreve o parecer, concluiu: "13. Tendo em vista a distinção entre agravamento de risco e exclusão de risco, sendo certo que se pretende regular hipótese de agravamento de risco pela via imprópria de exclusão contratual, o parecer é desfavorável. 14. Portanto, deve ficar para a Jurisprudência a pertinência ou não da embriaguez como agravamento do risco no campo do seguro de pessoas."[3]

Uma leitura equivocada da referida Carta Circular Susep nº 8/2007,[4] que, repita-se, trata apenas da impossibilidade de exclusão, de plano, de cobertura na hipótese de sinistros decorrentes de atos praticados pelo segurado em estado de alcoolismo, acabou fazendo com que parte da jurisprudência entendesse que não seria permitida também a perda de direitos em virtude do agravamento do risco pela direção embriagada no âmbito do seguro de vida, mesmo quando presente o nexo causal entre o consumo do álcool e a concretização do sinistro. Esse posicionamento, porém, tem sido amplamente criticado pela doutrina e vem sendo ignorado em diversas decisões judiciais em primeira e segunda instâncias no País.[5]

Bem-vistas as coisas, a súmula 620 do STJ certamente não auxilia na resolução da controvérsia apontada. Isso porque, embora os julgados que deram origem a ela utilizem como principal argumento o disposto na Carta Circular Susep nº 8/2007, a sua literalidade vai muito além, não diferenciando a exclusão do risco da perda de direitos. Eis os seus termos: "A embriaguez do segurado não exime a seguradora do pagamento da indenização prevista em contrato de seguro de vida".

Nessa sede, examinar-se-á a discussão apenas sob a óptica da perda de direitos, inclusive levando-se em conta o art. 26 da Circular Susep nº 667/2022 (que, junto com a Resolução CNSP nº 439/2022, estabeleceu, neste mês, um novo marco regulatório para os seguros de pessoas no Brasil).  

O caput do indigitado artigo 26 estatui: “É vedado constar no rol de riscos excluídos do seguro eventos decorrentes de atos praticados pelo segurado em estado de insanidade mental, de embriaguez ou sob efeito de substâncias tóxicas”. De toda relevância é o fato de que o parágrafo único da Consulta Pública nº 42, que deu origem à Circular Susep nº 667, foi retirado na versão final do normativo. O dispositivo era assim redigido: "O estado de insanidade mental, a embriaguez e o uso de substâncias tóxicas pelo segurado não poderão ser considerados como causa de agravamento de risco suscetível de levar à perda da cobertura." [6]

Resta claro, portanto, que, independentemente do ângulo que se veja a questão, seja sob o da Carta Circular Susep nº 8/2007, que será revogada no dia 01 de agosto, seja sob o da Circular Susep nº 667/2022, que entrará em vigor na mesma data, o agravamento do risco nos seguros de pessoa em virtude da direção alcoolizada não enfrenta resistência alguma no ordenamento jurídico nacional. Pelo contrário; existem vários argumentos que o legitimam, conforme será demonstrado a seguir.

De maneira geral, o instituto do agravamento do risco tem como funções a manutenção da equivalência das prestações entre segurado e segurador, bem como a sanção de ato intencional do segurado que acarrete a perda de tal equilíbrio. Há várias considerações de ordem pública e moralidade; boa-fé e bons costumes, bem como de grau de censurabilidade da conduta do indivíduo que dirige um automóvel após o consumo de álcool ou outras substâncias tóxicas, colocando em risco não apenas a sua própria vida, mas as vidas de outras pessoas inocentes.

Nesse sentido, cabe relembrar o óbvio: a direção embriagada enseja o comprometimento dos reflexos do condutor/segurado e, na maioria dos casos, a alteração relevante do risco, resultando em um aumento considerável da probabilidade e da severidade do sinistro. Para tanto, basta ler os seguintes trechos de notícias recentes que consideram dados oficiais do governo de São Paulo: "embriaguez é principal motivo de mortes ao volante em SP".[7] "(…) dirigir sob efeito de álcool aumenta em mais de três vezes a chance de morte".[8]

 O acréscimo da sensação de impunidade em relação ao crime disposto no Código de Trânsito Brasileiro (CTB) também não pode ser menosprezado. Isso porque, diante da sensação de que o crime não deve gerar consequências contratuais, em prejuízo da mutualidade, a tendência é de que esse crime venha a ser mais cometido (risco moral).

A evolução social acerca do tema pode ser facilmente notada ao se examinar o CTB. Ao longo do tempo este diploma legal veio progressivamente conferindo tratamento mais gravoso à conduta de dirigir embriagado como reflexo da reprovabilidade da referida conduta pela sociedade,[9] máxime em uma realidade que oferta aos consumidores vários meios de transportes alternativos.

Com efeito, impõe-se recordar lição da doutrina: “A manutenção da situação de risco é do interesse dos contratantes do seguro, porquanto a agravação aumenta a possibilidade do sinistro, com geral prejuízo, inclusive social”.[10]

Além da perspectiva social, a questão pode ser vista sob outra perspectiva: nos moldes do artigo 757 do CC, o segurador garante riscos predeterminados inerentes a garantia de interesses legítimos do segurado.

É tudo, menos legítimo, o interesse de cobertura de um ato que envolva a direção embriagada de um veículo, aumentando o risco do segurado e da própria coletividade. Significa isso dizer que a súmula 620 do STJ vai de encontro ao regramento do agravamento do risco (que está disposto na Parte Geral dos artigos que tratam dos seguros no CC, tendo plena aplicabilidade nos seguros de dano e nos seguros de pessoas), bem como é contrária à própria noção de seguros disposta no artigo 757 do diploma legal — que pressupõe a existência de interesse legítimo na garantia do risco.

Indo além, a súmula 620 do STJ está em desarmonia também com o artigo 799 do CC, que atesta: "O segurador não pode eximir-se ao pagamento do seguro, ainda que da apólice conste a restrição, se a morte ou a incapacidade do segurado provier da utilização de meio de transporte mais arriscado, da prestação de serviço militar, da prática de esporte, ou de atos de humanidade em auxílio de outrem".

Ora, ao se examinar funcionalmente o artigo 799 do CC, fica claro que, em uma ponderação abstrata, o legislador concluiu, por serem socialmente positivas, que as hipóteses envolvendo serviço militar, prática de esportes, entre outras, deveriam ser cobertas pelas seguradoras. A direção embriagada ou com o uso de outras substâncias tóxicas, porém, é a antítese do que o legislador quis proteger.

Tampouco se pode afirmar que tal linha de raciocínio irá prejudicar o consumidor, uma vez que, para a configuração do agravamento do risco, além de ter de demonstrar que o segurado se encontrava embriagado no momento do sinistro, a jurisprudência costuma exigir a demonstração de um nexo de causalidade entre o ato (direção alcoolizada) e o fator determinante para a ocorrência do sinistro. A flexibilização do rigor da súmula 620 do STJ, ou até mesmo o seu cancelamento, a princípio em nada mudaria essa solução.

Outro argumento digno de nota é que o contrato de seguro de vida qualifica-se como uma estipulação em favor de terceiro. Nos termos dos artigos 436 e seguintes do CC, o direito do beneficiário ("terceiro", segundo o referido instituto do direito civil) não pode ser mais amplo do que o direito do próprio "estipulante" (o segurado) — direito esse prejudicado, no caso concreto, por sua conduta qualificante do agravamento do risco, em dissonância com o artigo 768 do CC e, segundo o STJ, com os princípios do absenteísmo, da função social do contrato e da boa-fé objetiva.[11]

Impõe-se sublinhar ainda que o debate acerca do agravamento do risco em razão de direção alcoolizada está em aberto, inclusive no STJ, e existem vários julgados de tribunais locais relativizando acertadamente a aplicação da súmula 620 do STJ.[12]

Tudo isso a demonstrar que a revisão (ou o cancelamento) da súmula 620 do STJ afigura-se medida impositiva.

Em síntese conclusiva, os novos rumos do tema sob análise fazem com que a resposta mais adequada à pergunta que inaugura este artigo seja no sentido de que o segurador restará vinculado a pagar o capital segurado ao beneficiário apenas se, no caso concreto, não for constatado o efetivo agravamento do risco entre o consumo da bebida alcoólica pelo segurado e a ocorrência do sinistro.


[2] PETERSEN, Luiza. O risco no contrato de seguro. São Paulo: Roncarati, 2018. p. 106.

[3] PARECER PRGER ASSUNTOS SOCIETÁRIOS E REG. ESPECIAIS N° 26.522/ 2007 (p. 6).

[4] Carta Circular SUSEP/ DETEC/ GAB/ Nº 8/2007: “Comunicamos que, conforme recomendação jurídica contida no PARECER PF – SUSEP/ COORDENADORIA DE CONSULTAS, ASSUNTOS SOCIETÁRIOS E REGIMES ESPECIAIS – N° 26.522/ 2007, da Procuradoria Federal junto à SUSEP, a sociedade seguradora que prevê a exclusão de cobertura na hipótese de ‘sinistros ou acidentes decorrentes de atos praticados pelos segurados em estado de insanidade mental, de alcoolismo ou sob o efeito de substâncias tóxicas’, deverá promover, de imediato, alterações nas condições gerais de seus produtos, com base nas disposições abaixo: 1) Nos Seguros de Pessoas e Seguros de Danos, é VEDADA A EXCLUSÃO DE COBERTURA na hipótese de ‘sinistros ou acidentes decorrentes de atos praticados pelo segurado em estado de insanidade mental, de alcoolismo ou sob efeito de substâncias tóxicas’. (…)”. (Destacou-se).

 

[5] Em sede doutrinária, consulte-se, por todos: CAMPOY, Adilson José. Contrato de seguro de vida. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014. p. 46; e SANTOS, Ricardo Bechara. Comentários a voto do Ministro Ricardo Cueva, no Resp. n° 1.665.701, sobre excludente do risco da embriaguez e agravamento de risco no seguro de vida. In: Revista Jurídica de Seguros, n.º 8. Rio de Janeiro: CNseg, maio de 2018. p. 218 e ss., com amplos elementos. Na sequência deste artigo serão mencionados os exemplos no âmbito jurisprudencial.

 

[6] Conforme “Quadro Comparativo”, disponível no site da Susep: http://susep.gov.br/setores-susep/seger/2quadro-comparativo-circular-seg-pessoas-261021.pdf.

[9] Confira-se, nesse particular, o art. 165 do CTB (Redação dada pela Lei nº 12.760, de 2012); o artigo 302, § 3° do CTB (Incluído pela Lei nº 13.546, de 2017); o art. 306 do CTB (Redação dada pela Lei nº 12.760, de 2012); e o art. 310 do CTB. Note-se que os crimes dispostos nos arts. 306 e 310 do CTB são de perigo abstrato, não sendo requisito para a sua respectiva configuração uma direção negligente ou imprudente por parte do condutor embriagado.

[10] AGUIAR JÚNIOR, Ruy Rosado de. Agravamento de risco – conceitos e limites. In: VII Fórum de Direito do Seguro José Sollero Filho. São Paulo: Roncarati, 2018. p. 126. (Destacou-se).

[11] Conforme, no âmbito do seguro de automóvel, STJ, REsp n. 1.485.717/SP, Min. Rel. Ricardo Villas Bôas Cueva, 3ª Turma, j. 22 nov. 2016.

[12] Confira-se, por exemplo, julgados do TJSP, TJMG e TJSC, proferidos recentemente e que, em virtude das particularidades fáticas, afastaram a cobertura do capital segurado no seguro de vida: “No caso em tela, o exame toxicológico transcrito em contestação concluiu que o segurado, por ocasião do acidente que lhe ceifou a vida, estava sob efeito de álcool, concentrado em 3,3 gramas por litro de sangue (fls. 70). Por isso, a seguradora negou o pagamento da indenização, tendo em vista a configuração de hipótese de exclusão por agravamento intencional do risco. É certo que a embriaguez representa fator preponderante de agravamento do risco de acidente, pois os reflexos do motorista ficam comprometidos, tanto assim que a conduta foi tipificada como infração de natureza gravíssima pelo artigo 165 do Código de Trânsito Brasileiro e como crime pelo artigo 306 do mesmo texto normativo. (…) Por outro lado, nem há que se cogitar na inexistência de nexo causal entre a ingestão de bebida alcoólica e a culpa da vítima pelo advento do acidente, pois, conforme consignado no histórico do boletim policial, a motocicleta conduzida pelo pai do autor trafegava em alta velocidade e invadiu a contramão, chocando-se contra o veículo Gol que trafegava regulamente em sua mão de direção”. TJSP, 26ª Câmara de Direito Privado, Apelação Cível nº 1000397-35.2020.8.26.0586, Des. Rel. Vianna Cotrim, j. 06 dez. 2021. “Dessa forma, para que a seguradora se desobrigue do pagamento da indenização, necessária prova do nexo causal entre a conduta do segurado (ingestão de álcool) e o resultado (acidente que resultou em seu passamento). In casu, quando lavrado o Boletim de Ocorrência, restou atestado que o motorista perdeu o controle direcional da motocicleta quando trafegava, às 13h40min, em pista larga, reta, seca e devidamente sinalizada (ordem 2), não sendo registrada interferência de outro veículo, falha da motocicleta, imperfeições na pista ou animal na estrada que pudesse justificar a perda do controle direcional. Por outro lado, não foi comprovado pela beneficiária (autora) que o acidente ocorreria independentemente do estado de embriaguez seja por fato de terceiro, força maior ou outra causa exterior. Diante dessa situação, considero demonstrado o nexo de causalidade entre o acidente e a embriaguez do segurado, sendo esta determinante para a ocorrência do sinistro”. TJMG, 12ª Câmara Cível, Apelação Cível nº 1.0000.19.092382-1/002, Des. Rel. Saldanha da Fonseca, j. 18 nov. 2021. Veja-se, ainda, TJSC, 2ª Turma, RI n. 0301332-22.2016.8.24.0034, Rel. Marco Aurélio Ghisi Machado, j. 15 set. 2020.

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    é advogado e parecerista, doutor em Direito Civil pela Uerj, mestre em Regulação e Concorrência pela Ucam, professor convidado da FGV Direito Rio, da FGV Conhecimento, da Emerj e da Escola de Negócios e Seguros e sócio de Chalfin, Goldberg & Vainboim Advogados Associados.

  • Brave

    é doutor em Direito Civil pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), mestre em Ciências Jurídico-Civilísticas pela Universidade de Coimbra, pesquisador visitante do Instituto Max-Planck de Direito Comparado e Internacional Privado (Alemanha), diretor de Relações Internacionais da Academia Brasileira de Direito Civil, professor da FGV Direito Rio, da FGV Conhecimento e da Escola de Negócios e Seguros, advogado e sócio de Chalfin, Goldberg & Vainboim Advogados.

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