Processo familiar

Do incumprimento das verbas alimentares em manifesta privação da família

Autor

  • Jones Figueiredo Alves

    desembargador do Tribunal de Justiça de Pernambuco. Decano da Corte presidiu o TJ-PE no biênio 2008-2010. Diretor nacional do Instituto Brasileiro de Direito de Família – IBDFAM nele coordena a Comissão de Magistratura de Família. É autor de obras de Direito Civil e de Processo Civil tendo assessorado a Comissão de Reforma do Código Civil da Câmara Federal (1999-2000).

24 de julho de 2022, 15h35

Algumas novas reflexões devem ser postas à análise da questão das obrigações alimentares insatisfeitas, que no direito de família habita uma das áreas de maior litigiosidade. O incumprimento se apresenta, por isso, como o principal problema jurídico, a partir das suas consequências causadas em privação da família, a desafiar uma logica formal de enfrentamento, por novos vieses ponderáveis.

De imediato, há de se ponderar que o incumprimento da cota alimentária pode ser tratado, mais das vezes, como uma forma de violência econômica familiar ao tempo que vulnerando um direito essencial dos filhos destinatários dos alimentos, sobrecarrega a mulher, mãe e guardiã, ao trabalho de superação, eis que submetida a despender maiores esforços e recursos a cobrir as obrigações então inadimplidas pelo devedor alimentante. Designadamente quando o incumprimento se mostra injustificado.

Em uma visão lúcida e proativa, a Ley n. 26.485, de 11 de março de 2009, a de “Protección integral para prevenir, sancionar y erradicar la Violenca contra las Mujeres em los âmbitos en que desarrollen sus relaciones interpersonales”, da Provincia de Buenos Aires, na Argentina (01) dispõe constituir um claro exemplo de violência doméstica quando o incumprimento alimentar implica penalizar a mulher, que por “asignanión tradicional y maternalista” assume as tarefas de cuidados dos filhos.

De efeito, ao tratar da violência econômica e patrimonial, que se dirige a ocasionar “un menoscabo en los recursos económicos o patrimoniales de la mujer” (art. 5º. 4.), a lei argentina traduz como uma das consequências, dentro da devida e adequada extensão do problema, a da “limitación de los recursos económicos destinados a satisfacer sus necesidades o privación de los medios indispensables para vivir una vida digna” (art. 5º, 4. letra c). 

A tanto vigilante da realidade dos fatos, a lei se apresenta indutora de importantes políticas públicas quando determina ao “Ministério de Desarrollo Social de la Nación” (art. 11. 5) aprovar projetos para a criação e colocação em marcha de programas para atenção de emergência destinados às mulheres e aos cuidados de seus filhos. Mais ainda: o de celebrar convênios com entidades bancárias, a fim de facilitar linhas de crédito a mulheres que padecem violência (letras “d” e “c” do art. 11.5).

Pois bem. Impõe-se pensar em novos paradigmas vitimológicos em atenção de emergência às crianças e adolescentes, nos moldes do novo direito de família argentino (02), a contemplar disposições que as protejam quando e por incumprimento voluntário das obrigações familiares.

Nesse conduto, por identidade de razões protetivas, a mesma Provincia de Buenos Aires, sancionou anteriormente a Ley n. 13.074, de 23 de junho de 2003 (03) que criou o “Registro de Deudores Alimentares Morosos” – RDAM, assim declarados pelas unidades judiciais da província, que expedirão ordem de inscrição no mencionado banco de dados, com as anotações ali disponíveis por qualquer interessado. Demais disso, as RDAs., certidões de inexistência de dívidas alimentares, serão sempre exigidas por organismos públicos ou privados para: (a) abertura de contas correntes, entrega de cartões de crédito ou de suas renovações; (b) de habilitação para abertura de comércios e/ou indústrias; e (c) concessões, permissões e licitações (art. 5º, Ley 13.074). A mesma certidão “libre de deuda registrada” se exigirá aos provedores de todos os organismos oficiais, provinciais, municipais e descentralizados (art. 6º), certo ainda que em todas as hipóteses dos artigos 5 e 6º, quando se tratar de pessoas jurídicas, se exigirá o certificado de R.D.A. a seus diretores e responsáveis (art. 6º).

Inexiste em nosso país um RDAM, conforme o modelo argentino (04/05) capaz de irradiar uma política preventiva às inadimplências desmotivadas, com austeridade inibitória aos devedores morosos, salvo as disposições do Código de Processo Civil de 2015 que em seu artigo 528 § 1º ordena que o juiz mande protestar o pronunciamento judicial do débito alimentar, aplicando-se, no que couber, o disposto no art. 517 do mesmo CPC. (06) Entretanto, os Ofícios de Protesto de Títulos não estabelecem bases próprias para os protestos das obrigações de alimentos.

Em Pernambuco, o Provimento nº 07/2016, de 27 de maio, editado pela Corregedoria Geral de Justiça, de nossa autoria, dispõe sobre o protesto de sentenças que condene ao pagamento de prestação alimentícia ou de decisão interlocutória que fixe alimentos, nos fins do reportado art. 528 § 1º do CPC (07).

Lado outro, em palestra proferida no XII Congresso do Mercosul de Direito de Família e Sucessões (24 e 25/06/22), sob a coordenação cientifica do jurista Conrado Paulino da Rosa, realizado em Gramado (RS), Rolf Madaleno tratando sobre violência econômica, aludiu, com pertinência ímpar, acerca da legislação argentina avançada que inadmite a discussão judicial de ações revisionais de alimentos por aqueles devedores morosos, enquanto pendentes as obrigações insatisfeitas.

De fato. Essa especial circunstância ganha maior relevo, em confronto com o trato da matéria em nosso país, diante da Súmula 621 do STJ. O verbete sumular aduz que "os efeitos da sentença que reduz, majora ou exonera o alimentante do pagamento retroagem à data da citação, vedadas a compensação e a repetibilidade".

Disso cuidei discutir em artigo específico sobre a economia dos alimentos, colocando em realce a seguinte advertência:

“Diante do efeito retroativo da sentença à data de citação, torna-se indispensável uma nova leitura sobre a retroatividade da súmula, porquanto sua literalidade conduziria ao entendimento incongruente de permitir-se ao devedor dos alimentos inadimplir a sua obrigação fixada em valor X, a saber que outro valor a menor (valor Y) poderá vir a ser atribuído pela sentença, constituindo-se, assim, esse efeito retroativo como um instrumento ao inadimplemento.” (08)

Realmente. Maria Berenice Dias, empreendeu severa crítica ao enunciado sumular, dado que a prática demonstra que deixar de pagar os alimentos, por quem ingressa com ação revisional ou exoneratória, redunda em benefício do promovente, quando exonerado da obrigação ou tenha esta revisada, livrando-se de pagá-las; em detrimento do interesse de quem necessita, a todo mês, os alimentos de subsistência

Alimentos são devidos, são prestados ou são fixados judicialmente mediante uma escala econômica cuja mensuração arrasta critérios jurídicos ou sociais nem sempre compatíveis com o caso concreto.

Em outra latitude, a questão dos alimentos antecipados, sejam provisórios ou provisionais, que não se confundem porquanto previstos em distintos estatutos legais, merece também ênfase quando sob o viés do incumprimento.

A esse propósito, novamente presente Maria Berenice Dias aponta que:

“Qualquer que seja a natureza dos alimentos, ao serem fixados initio litis, nasce o dever de pagar a partir do momento em que estipulados. Sequer se faz necessária a prova pré-constituída da obrigação, pois, em face da possibilidade de antecipação de tutela, assegurada pelo art. 273 do CPC/73 (atual art. 298/2015(, basta prova que convença da verossimilhança do direito. Como conseqüência da reforma, nasce também a possibilidade para aqueles que não dispõem de prova formada da obrigação, uma vez presentes os requisitos (da tutela) de postularem a título provisório alimentos também na ação de rito ordinário, vez que viável a antecipação dos efeitos condenatórios e executivos de eventual sentença de procedência”.

E prossegue:

“No entanto, vem-se cristalizando uma corrente jurisprudencial que pretende emprestar abrangência total ao § 2º do art. 13 da Lei nº 5.478/68, como se a determinação de retroatividade à data da citação dissesse respeito a qualquer encargo alimentar estabelecido em juízo, quer inicialmente, a título de antecipação de tutela, quer na sentença. Essa espécie de confusão não pode persistir, sob pena de gerar situações aflitivas a quem necessita de alimentos para viver. Incontrovertido que, nas ações cautelares e em sede de antecipação de tutela, a decisão liminar possui eficácia imediata, nada justificando que, em se tratando de alimentos, o efeito não seja também imediato”.

Em ser assim, de efeito “o valor dos alimentos provisórios e provisionais permanece intacto no período que medeia entre a fixação inicial e a data da citação. Nesse ínterim – entre a fixação e a citação –, os alimentos deferidos em sede liminar, mesmo que eventualmente venham a sofrer alterações, são “imexíveis”. Sendo alterados os alimentos, incidentalmente, na sentença ou no acórdão, independentemente de retroagir ou não o novo valor, nada altera o montante dos provisórios ou provisionais”. (09)

Do exposto, a prioridade da subsistência alimentar dos destinatários das obrigações alimentares judicialmente reconhecidas, deve merecer da jurisprudência e da doutrina, um tratamento dissuasório aos incumprimentos indevidos.

Cumpre observar, demais disso. que incumprimentos não se reduzem, unicamente, à ocorrência da mora, diante da dignidade do instituto dos alimentos.  A doutrina sobre o dever alimentar dos pais e responsáveis tem alcançado avanços compreensivos sobre o instituto em sua natureza de direito indisponível, designadamente quando julgados informam o sentido moral da obrigação, inseparável da dimensão de uma paternidade responsável. Entenda-se, então, que alimentos prestados aquém da possibilidade do alimentante amesquinham o dever jurídico e implicam em uma deserção disfarçada do apoio paterno adequado e útil.

O ditado da lei é no sentido de que os alimentos devam ser fixados na proporção dos recursos da pessoa obrigada para atender as reais necessidades daquele que os reclame (§ 1º do art. 1.694 do Código Civil). Essa regra de proporção, assinala Yussef Said Cahali, maleável e circunstancial, se resolve em juízo de fato ou valorativo no efeito de fixação da pensão alimentícia. Diante de tal "standard" jurídico, faculta-se ao juiz "um extenso campo de ação, capaz de possibilitar-lhe o enquadramento dos mais variados casos individuais".

A saber que a deliberação do valor dos alimentos, deve observar a real capacidade financeira do alimentante, pondere-se no sentido de a adequação ser efetivamente garantida, sob pena de o valor aquém constituir lesão ao princípio da proporcionalidade, em detrimento dos alimentos suficientes. O alimentante pagaria menos do que pode, o alimentado receberia menos do que necessita. E quando se paga menos, abandona-se um pouco.

Neste sentido, o Enunciado 573 das Jornadas de Direito Civil do CJF: “Na apuração da possibilidade do alimentante, observar-se-ão os sinais exteriores de riqueza”.

A fixação dos alimentos, bem por isso, reclama a suficiência da pensão, correspondente ao trinômio possibilidade-necessidade-proporcionalidade, em contexto de os alimentos representarem não apenas uma verba de subsistência, mas o pensionamento da dignidade ampla do alimentado, em seu padrão de vida preexistente, conforme dispõe o art. 1.694 do Código Civil.

Assim, em garantia dos alimentos suficientes, tudo recomenda seja exigido que o alimentante declare, do próprio punho, as suas reais condições financeiras, vedado omitir-se de contribuir com a justiça (art. 378 do CPC).

A justiça não deve ser condescendente com as alterações obrigacionais para reduções não qualificadas da obrigação alimentar, diante do simples pleito reducionista, quando desprovidas do fomento fático provado. Prevalecem (e deverão prevalecer) as circunstâncias fáticas acerca da qualidade de vida do alimentando, consoante a condição social e econômica da família de forma global, e nesse contexto, as avaliações concretas devem tutelar, sempre, o melhor interesse da criança ou do adolescente quando do exame específico da condição financeira do genitor alimentante.

Retenha-se, outrossim, a hipótese do abandono material recorrente, por conduta procrastinatória do devedor de alimentos, com atenção ao art. 532 do CPC. A doutrina começa a dizer que: “na realidade, melhor seria apenas relembrar o juiz de seu poder de provocar o Ministério Público a respeito do crime de abandono material, até porque a simples postura do devedor em deixar de pagar os alimentos já é o suficiente, ao menos indiciariamente, para a tipificação do crime. Nesse sentido, o caput do art. 244 do CP”. (Daniel Amorim Assumpção Neves, “Novo CPC. Inovações, Alterações e Supressões Comentadas, Ed. Método, 2015, pp. 353-354).

Em síntese apertada, quem abandona, sem causa legitima, o dever iniludível de cumprir a obrigação dos alimentos, abandona materialmente quem deles necessita e reclama em juízo o provimento da subsistência.

Embora se afirme que a previsão legal do art. 532 do CPC seja de difícil compreensão, podendo tornar-se “de aplicação rara na praxe forense”, a partir da cláusula “se for o caso”, admita-se que a conduta procrastinatória será sempre aquela que resista, sem justa causa, à pretensão satisfativa dos alimentos, a tanto que “somente a comprovação de fato que gere a impossibilidade absoluta de pagar justificará o inadimplemento” (art. 528, parágrafo 2º, CPC/2015).

Evidencia-se que essa disposição processual, cogitando de a impossibilidade fática provisória, somente quando devidamente provada tornar-se apta a afastar a obrigação alimentar, é uma cláusula de vida. Posto o processo civil servir, afinal, a confirmar, em sentido adverso, que o incumprimento desmotivado das verbas alimentares acarreta a privação da família aos recursos necessários de sua subsistência. Opera, sim, no seu resultado útil em favor do direito material do credor dos alimentos.

Potencial e poético esse diálogo do processo civil com o direito da parte, acontece justamente em celebração da vida das pessoas, diante de suas necessidades materiais de existência.

Referências:

(1) Web: http://servicios.infoleg.gob.ar/infolegInternet/anexos/150000-
154999/152155/norma.htm

(2) Web: http://servicios.infoleg.gob.ar/infolegInternet/anexos/235000-
239999/235975/norma.htm#18

(3) https://drive.mjus.gba.gob.ar/docs/rdam/ley_13074.pdf

(4) https://www.gba.gob.ar/justicia_y_ddhh/deudores_alimentarios

(5) https://drive.mjus.gba.gob.ar/docs/rdam/Decreto_340-04.pdf

(6) O art. 528, § 1°, do Código de Processo Civil, determina o protesto
de sentença que condene ao pagamento de prestação alimentícia
ou de decisão interlocutória que fixe alimentos, após o decurso do
prazo sem efetuar ou comprovar o pagamento, ou apresentar
justificativa da impossibilidade de fazê-lo.

(7) http://www.tjpe.jus.br/documents/29010/1246652/PROVIMENTO+N
_+07_2016+_+CGJ+-+original.pdf/b5f5358d-b628-5138-8563-
0c1519299184

(8) A Economia dos Alimentos de família para uma nova hermenêutica
(parte 1) In: Consultor Jurídico. Web: https://www.conjur.com.br/2021-ago-01/processo-familiar-economia-alimentos-familia-hermeneutica

(9) https://ibdfam.org.br/artigos/143/Alimentos+provis%C3%B3rios+e+
provisionais,+desde+e+at%C3%A9+quando%3F

Autores

  • desembargador do Tribunal de Justiça de Pernambuco. Decano da Corte, presidiu o TJ-PE no biênio 2008-2010. Diretor nacional do Instituto Brasileiro de Direito de Família – IBDFAM, nele coordena a Comissão de Magistratura de Família. É autor de obras de Direito Civil e de Processo Civil, tendo assessorado a Comissão de Reforma do Código Civil da Câmara Federal (1999-2000).

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