Opinião

Sobre a (i)legitimidade da qualificadora do homicídio por motivação política

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  • é graduado em Direito pela UFRN orador campeão da 3ª Competição Brasileira de Direito e Processo Penal (Instituto de Ciências Penais) cofundador do Grupo Potiguar de Ciências Criminais (PotiCrim) e membro da Abracrim-RN e do Clube MetaJurídico.

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24 de julho de 2022, 13h03

Um dos assuntos mais debatidos no cenário nacional nos últimos dias foi o assassinato, no último dia 9 de julho, do guarda municipal e tesoureiro do Partido dos Trabalhadores em Foz do Iguaçu (PR), Marcelo Arruda. Após os fatos, iniciou-se um grande debate sobre o enquadramento ou não do homicídio perpetrado pelo apoiador do atual presidente da República como um "crime político". Nesse cenário, muitos afirmaram que o crime, apesar de ter tido "motivação política", não seria crime político [1].

De todo modo, a autoridade policial indiciou o autor do fato por homicídio qualificado por motivo torpe e por causar perigo comum (artigo 121, § 2°, II e III, do Código Penal), não entendendo ter havido a caracterização de motivação política. Já o Ministério Público, divergindo das conclusões policiais, denunciou o autor do fato por homicídio qualificado por motivo fútil e por situação de perigo comum. Segundo os promotores Tiago Lisboa Mendonça e Luís Marcelo Mafra Bernardes da Silva, o crime teve "motivação fútil por preferências político-partidárias antagônicas" [2].

Ocorre que, nesse cenário de caloroso debate político e jurídico, as instâncias legislativas aproveitaram o momento para propor uma mudança na lei. Visando a aumentar o recrudescimento em relação aos homicídios cometidos com motivação política, conforme consta do avulso do PL 1.621/2022 [3], de autoria do senador Alexandre Silveira (PSD-MG), busca-se acrescentar um inciso X ao § 2° do artigo 121 do Código Penal, de modo a inserir mais uma qualificadora. Trata-se do homicídio cometido "por questões de intolerância política ou partidárias, ou outro motivo relacionado a divergência de opinião".

Nesse sentido, o que se buscará no presente texto é, sem entrar no mérito do oportunismo legislativo que serve de base para tal projeto, avaliar a legitimidade ou não de tal dispositivo, o que levará em conta uma discussão sobre a legitimidade do agravamento da punição em decorrência da motivação do agente, bem como a utilidade ou não de tal mudança na legislação.

Sobre o primeiro ponto, que diz respeito à legitimidade do agravamento da punição pelo crime de homicídio em decorrência da motivação do agente, uma premissa precisa ser posta: em um direito penal liberal, somente ações (ou pensamentos) com reflexos externos podem ser negativamente valoradas. Diferentemente do que se poderia pensar numa visão caricaturada da posição liberal, o direito penal pode cuidar de aspectos internos, desde que estes estejam relacionados a aspectos externos. É o que vemos de forma clara na distinção entre dolo e culpa, em que o primeiro torna o desvalor da ação muito maior do que o segundo, de modo a fundamentar o agravamento da punição. O que não se pode é utilizar-se do aparato penal para punir meros pensamentos [4].

Para evitar uma moralização do direito com tal posição, deve-se priorizar "argumentos com o menor comprometimento a algo que possa ser tido como uma concepção particular de bem" [5].

Ademais, a justificação de uma qualificadora de ordem subjetiva demanda passar por critérios, dentre os quais se destaca o de subsistir à prova da ausência de justificação, isto é, seu conteúdo de ilícito não pode ser traduzido exclusivamente em termos de ausência de justificação, devendo haver um plus justificativo, sem o qual não se legitima a qualificação do homicídio [6]. No mesmo sentido, Luís Greco, no contexto alemão, discutindo sobre os assassinatos de honra, afirma que há um conteúdo autônomo do ilícito a se adicionar ao desvalor já existente pela violação do bem jurídico, na medida em que nesses casos há uma "negação do direito de viver sua própria vida, ou seja, o direito à autonomia. O perpetrador não só presume determinar quando a vida da vítima termina, mas também quer determinar o conteúdo dessa vida durante o tempo que ele permitir" [7].

Nesse contexto, Lucas Montenegro fundamenta uma qualificadora de ordem subjetiva a partir do dever liberal de reconhecimento, segundo o qual todos devem enxergar a todos como sujeitos de direitos, sem negar-lhes igual status jurídico ou simplesmente a própria qualidade de pessoa [8]. Diferentemente dos homicídios por motivo torpe ou fútil, em que se trata de situações em que apenas não há justificação do ato, na medida em que o homicídio doloso já abrange o maior conteúdo de ilícito possível, a qualificadora derivada do dever liberal de reconhecimento visa a conter a discriminação, que possui um conteúdo autônomo de ilícito, tratando-se de uma violação de segundo nível. Um exemplo é o caso do feminicídio, no próprio entendimento de Lucas Montenegro, pois, nesse caso, nega-se à mulher, por razões da condição de sexo feminino, sua qualidade de pessoa, de sujeito de direitos [9].

Agora que vimos o principal critério para se legitimar uma qualificadora de ordem subjetiva, podemos analisar o texto do projeto de lei acima referido. Podemos dividir tal exame do dispositivo em duas partes, uma sobre "por questões de intolerância política ou partidárias", e a outra sobre "ou outro motivo relacionado a divergência de opinião".

No caso do homicídio por questões de intolerância política ou partidária, a priori [10] não nos parece haver ilegitimidade na sua qualificação. Se o agente pratica o crime tendo como razão (mesmo que não racionalizada) uma intolerância — que representa um desacordo de maior grau com o modo de ser, pensar ou agir do outro —, de natureza política ou partidária, tem-se um caso em que esse sujeito pratica o ato negando à pessoa a qualidade de livre e igual. O agente que pratica homicídio por motivos de intolerância pelo tão só fato de a vítima apresentar divergência política ou partidária está violando o dever liberal de reconhecimento da esfera de liberdade de terceiros, desrespeitando um direito tão fundamental ao Estado democrático de direito, que é o da liberdade de opinião.

Já quanto à segunda parte do dispositivo, que trata de "ou outro motivo relacionado a divergência de opinião", tem-se um pouco mais de dificuldade em sua legitimação. Com efeito, ele não é taxativo em quais motivos seriam aptos a qualificar o homicídio. Uma simples divergência que acalore os ânimos, redundando no homicídio, ou uma opinião da vítima que seja atentatória aos valores democráticos e constitucionais também se enquadrariam nesse dispositivo, mesmo quando não seja o caso de violação do dever liberal de reconhecimento ou, na verdade, esse motivo relacionado a divergência de opinião sempre caracterizaria a violação a esse dever? Fato é que, nessa hipótese da segunda parte do dispositivo, parece-nos haver maior dificuldade de legitimação.

Por fim, mesmo que se entenda ser de todo legítimo o dispositivo, não há razões pragmáticas para a sua aprovação, por ora. Seguindo o entendimento majoritário, tais situações já seriam abarcadas pelo motivo fútil, de modo que, de lege lata e seguindo a posição dominante, tal Projeto de Lei não parece trazer muita utilidade prática.


[4] É nesse sentido que Lucas Montenegro defende uma reformulação da tese da exterioridade. MONTENEGRO, Lucas. Por que se qualifica o homicídio?: Um estudo sobre a relevância da motivação em Direito Penal, por ocasião da Lei do Feminicídio (Lei 13.104, de 2015) São Paulo: Marcial Pons, 2017, p. 126.

[5] MONTENEGRO, 2017, p. 126.

[6] MONTENEGRO, 2017, p. 145.

[7] GRECO, Luís. Ehrenmorde im deutschen Strafrecht. Zeitschrift für Internationale Strafrechtsdogmatik (ZIS), 7-8/2014, 9, Jahrgang, p. 318-319.

[8] MONTENEGRO, 2017, p. 134.

[9] MONTENEGRO, 2017, p. 151.

[10] Não se desconhece que ainda há muito a se investigar sobre quais características individuais possuem importância para ser tomadas como motivação para cometer um homicídio, de modo a qualificá-lo, conforme afirma MONTENEGRO, 2017, p. 152.

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