Opinião

Seguro de vida e sinistro de suicídio: análise da evolução jurisprudencial

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22 de julho de 2022, 9h03

Com vastas discussões e debates na doutrina e jurisprudência, o seguro de vida é um dos mais importantes e interessantes ramos do seguro, com destacado papel na promoção da paz social e econômica.

Questão das mais sensíveis atinentes ao seguro de vida, sendo um dos temas que mais sofreram alterações de entendimento jurisprudencial ao longo do tempo, é a hipótese de cobertura ao suicídio cometido pelo segurado.

O revogado Código Civil (CC) de 1916 trazia em seu artigo 1.440 que,

"a vida e as faculdades humanas também se podem estimar como objeto segurável, e segurar, no valor ajustado, contra os riscos possíveis, como o de morte involuntária, inabilitação para trabalhar, ou outros semelhantes" (destaque nosso).

Tratando do citado artigo, o Supremo Tribunal Federal (STF) e o Superior Tribunal de Justiça (STJ) formaram entendimentos sumulados a respeito:

Súmula 105, STF: "Salvo se tiver havido premeditação, o suicídio do segurado no período contratual de carência não exime o segurador do pagamento do seguro". Sessão Plenária de 13/12/1963. (destaque nosso)

Súmula 61, STJ: "O seguro de vida cobre o suicídio não premeditado". Data do julgamento: 14/10/1992, DJ 20/10/1992 p. 18382. (destaque nosso)

Analisando o dispositivo de lei e súmulas dos tribunais superiores acima transcritos, extrai-se que o consolidado entendimento jurisprudencial da época, e que perdurou por muitos anos, era no sentido de que, para a companhia seguradora negar o pagamento da indenização securitária, essa deveria fazer a dificílima prova da premeditação do segurado em contratar o seguro. Em outras palavras, a negativa de cobertura apenas seria permitida pela legislação caso a seguradora comprovasse que o segurado já tinha em mente suicidar-se visando ao recebimento do capital segurado pelos beneficiários.

Acerca do primitivo entendimento, as palavras de Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho (2018, p. 847):

"Da simples leitura desses dois enunciados, forçoso concluir que o entendimento dos nossos Tribunais superiores era no sentido de não admitir a cobertura do seguro, caso o suicida haja premeditado o ato que ceifou a sua vida. Vale dizer: não haverá direito à indenização se se provar que o segurado celebrou o contrato como parte de um plano fatal, visando a amparar patrimonialmente os seus entes queridos. A contrário sensu, não havendo premeditação (obviamente não para o ato suicida, mas, sim, para a percepção do benefício), o suicídio seria considerado um acidente pessoal, gerando o dever de pagamento da prestação pactuada, conforme, inclusive, vinha decidindo o STJ: 'Civil e processual civil. Agravo. Ofensa ao art. 535 do CPC. Inexistência. Seguro. Morte. Suicídio não premeditado. Acidente pessoal. Súmula 83/STJ. Incidência. Precedentes. I. Os embargos declaratórios, ainda que opostos com a intenção de prequestionamento, devem ater-se às hipóteses de cabimento do art. 535 do CPC. II. Esta Corte Superior firmou seu entendimento no sentido de que o suicídio não premeditado se encontra abrangido pelo conceito de acidente pessoal, sendo nula, porque abusiva cláusula excludente da responsabilidade da seguradora, à qual cabe, ademais, o ônus de provar eventual premeditação. III. Agravo desprovido'" (STJ, AgRg no Ag. 647.568/SC, DJ, 26-6-2006, p. 150, rel. min. Aldir Passarinho Júnior, julgado em 23/5/2006, 4.ª Turma).

Nota-se que o já superado entendimento impunha às seguradoras o ônus de produzir verdadeira prova diabólica para embasar suas negativas de cobertura em casos suspeitos de suicídio premeditado, ante a excessiva dificuldade de se provar a premeditação e planejamento em contratar o seguro com a finalidade de cometer suicídio visando à obtenção da indenização, favorecendo os beneficiários.

Com o advento do CC de 2002, inovando em relação à codificação anterior, o legislador buscou dirimir a quase impossível aferição ou não da premeditação a respeito do suicídio. Trazendo maior segurança jurídica, o artigo 798 dispõe que

"o beneficiário não tem direito ao capital estipulado quando o segurado se suicida nos primeiros dois anos de vigência inicial do contrato, ou da sua recondução depois de suspenso, observado o disposto no parágrafo único do artigo antecedente".

Em continuação, o seu parágrafo único traz a informação de que ressalvada a hipótese prevista neste artigo, é nula a cláusula contratual que exclui o pagamento do capital por suicídio do segurado.

Quanto ao novo posicionamento legislativo, a 3ª Turma do STJ expôs sua interpretação ao realizar o julgamento do REsp 1.077.342/MG, em 22/6/2010, aplicando as súmulas 105 do STF e 51 do STJ ao "novo" Código Civil, bem como o Código de Defesa do Consumidor (CDC). O ministro relator Massami Uyeda aduziu que

"admitir que aquele que comete suicídio dentro do prazo previsto no Código Civil vigente age de forma fraudulenta, contratando o seguro com a intenção de provocar o sinistro, seria injusto, razão pela qual entendia que o fato de o suicídio ter ocorrido no período de carência previsto pelo Código Civil por si só não acarreta a exclusão do dever de indenizar já que o disposto no artigo 798, caput, do Código Civil de 2002 não afastou a necessidade da comprovação inequívoca da premeditação do suicídio".

Posteriormente, em sede de Agravo Regimental no Agravo 1.244.022, a discussão acerca do tema chegou à 2ª Seção do STJ, e também se filiou ao entendimento acima exposto. Todavia, em 2015, novamente provocada por um agravo regimental, a 2ª Seção analisou novamente tema e, com a renovada composição dos ministros, alterou drasticamente o entendimento até então sedimentado. O referido acórdão, relatado pela ministra Maria Isabel Gallotti, contrariando as decisões emanadas pelos tribunais superiores até então, considerou sem qualquer ressalva a literalidade do artigo 798 do CC, entendendo que o texto da lei trouxe um critério objetivo, eliminando de forma cabal a questão da prova da premeditação.

Buscando afastar a problemática da produção da prova eminentemente diabólica em relação à premeditação ou não do suicídio, legislador e tribunais se apoiaram em critério estritamente temporal, de avaliação objetiva.

Mais uma vez, os ensinamentos de Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho (2018, p. 849):

"Trata-se de uma espécie peculiar de 'prazo de carência' que busca dissuadir o segurado da ideia de pactuar o seguro como um dos elementos justificadores do seu suicídio. Claro está, no entanto, que se o agente aguardar por mais de dois anos, mesmo havendo premeditado, o seguro deverá ser pago…
Estabelecer um prazo fixo, determinado, pode significar, em alguns casos, injustiça manifesta, em virtude daqueles que, não premeditando nada, ceifam a sua própria vida em momento de descontrole, dentro ainda do prazo de dois anos, o que, eventualmente, pode ser objeto de discussão judicial.
Mas devemos reconhecer a tentativa louvável do legislador no sentido de imprimir maior segurança jurídica a esta delicada situação."

Com a adoção do critério objetivo, injustiças fatalmente ocorrerão em razão de segurados que dão cabo da própria vida sem o menor planejamento ou premeditação, dentro do prazo de carência de dois anos, não estando as companhias seguradoras obrigadas a indenizar o beneficiário, havendo tão-somente a garantia à restituição da reserva técnica já formada, nos termos do parágrafo único do artigo 797 do CC.

O entendimento do critério objetivo temporal, expresso na atual codificação civil e acompanhada pelos tribunais superiores, deu origem à Súmula 610 do Superior Tribunal de Justiça, editada em 2018 pela Segunda Seção, nos seguintes termos: "O suicídio não é coberto nos dois primeiros anos de vigência do contrato de seguro de vida, ressalvado o direito do beneficiário à devolução do montante da reserva técnica formada". Na mesma sessão, realizada em 25 de abril daquele ano, a 2ª Seção cancelou a Súmula 61, cujo enunciado trazia que "o seguro de vida cobre o suicídio não premeditado".

A respeito do novo posicionamento que aparentemente já restava consolidado, sobreveio a publicação do julgamento do REsp 1.721.716/PR, em 17/12/2019, de relatoria da festejada ministra Nancy Andrighi, tendo a 3ª Turma do Tribunal da Cidadania aplicado a modulação de efeitos da jurisprudência e reconhecido direito à indenização securitária em caso de suicídio ocorrido antes do contrato completar dois anos, aplicando o entendimento vigente à época dos fatos, qual seja, o previsto nas súmulas 105 do STF e 61 do STJ.

Conforme notícia veiculada no website oficial do STJ, o recurso teve origem em ação ajuizada por viúva, em 2012, para pleitear a indenização após a negativa de pagamento pela seguradora, a qual invocou o artigo 798 do CC. Em 2014, o juízo de primeiro grau julgou o pedido procedente, com base no entendimento então vigente no STJ (Súmula 61), que refletia a posição do STF sobre a matéria (Súmula 105). A jurisprudência era no sentido de que o fato de o suicídio ter ocorrido nos dois primeiros anos do contrato de seguro, por si só, não eximia a seguradora do dever de indenizar, sendo necessária a comprovação inequívoca de que o segurado suicida contratou o seguro de forma premeditada.

Em prosseguimento, foi rememorado o até então atual entendimento, quando o STJ alterou seu posicionamento e passou a entender que o suicídio não é coberto pelo seguro se ocorre nos dois anos iniciais do contrato, como estabelece literalmente o artigo 798. Com isso, o Tribunal de Justiça do Paraná deu provimento ao recurso de apelação manejado pela seguradora no referido caso, que foi objeto do recurso especial em comento, sobrevindo a surpreendente decisão.

O julgamento foi fundamentado na doutrina da superação prospectiva da jurisprudência, também chamada de modulação dos efeitos. No caso concreto, a viúva pugnou pela aplicação do entendimento anterior, uma vez que os fatos e a sentença antecederam a mudança jurisprudencial aqui exposta.

Segundo a matéria jornalística, a ministra relatora Nancy Andrighi detalhou que essa teoria é invocada nas hipóteses em que há alteração da jurisprudência consolidada dos tribunais. Para ela, "quando essa superação é motivada pela mudança social, é recomendável que os efeitos sejam para o futuro apenas, isto é, prospectivos, a fim de resguardar expectativas legítimas daqueles que confiaram no direito então reconhecido como obsoleto".

A postura adotada pela ilustre ministra tem embasamento na norma insculpida no artigo 927, § 3º, do Código de Processo Civil (CPC), que prevê a modulação dos efeitos da alteração no interesse social e no da segurança jurídica. No caso concreto, relatora aduziu que "é inegável a ocorrência de traumática alteração de entendimento desta Corte Superior, o que não pode ocasionar prejuízos para a recorrente, cuja demanda já havia sido julgada procedente em primeiro grau de jurisdição de acordo com a jurisprudência anterior do STJ".

Visando à proteção da segurança jurídica e do interesse social contido no caso em comento, entendeu-se pela necessidade de se aplicar ao caso o entendimento anterior do STJ, que está refletido na Súmula 105 do STF. Dessa maneira, resguardam-se direitos de beneficiários que, por muitas vezes, são familiares e dependentes econômicos do segurado, que já possuem a devastadora tarefa de enfrentar a tragédia de perder um ente querido em razão de suicídio, evidenciando ainda mais a função social desta espécie de contrato.

 

REFERÊNCIAS
GAGLIANO, Pablo Stolze. Novo curso de direito civil, volume 4: contratos / Pablo Stolze Gagliano, Rodolfo Pamplona Filho. – 2ª ed. unificada. – São Paulo: Saraiva Educação, 2019.

3ª Turma aplica modulação de efeitos e reconhece direito à indenização securitária em caso de suicídio. Superior Tribunal de Justiça, Brasília, 15 de abr. de 2020. Disponível em: https://www.stj.jus.br/sites/portalp/Paginas/Comunicacao/Noticias/Terceira-Turma-aplica-modulacao-de-efeitos-e-reconhece-direito-a-indenizacao-securitaria-em-caso-de-suicidio.aspx. Acesso em: 5 de abr. de 2022.

BRASIL. Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Diário Oficial da União: seção 1, Brasília, DF, ano 139, n. 8, p. 1-74, 11 jan. 2002.

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