Opinião

Precatórios e ferramentas tecnológicas na gestão do passivo do Estado

Autor

  • Marcelo Alberto Gorski Borges

    é procurador federal especialista em Direito Socioambiental pela PUC-PR mestrando em Gestão Pública pela FGV-RJ ex-presidente da Comissão de Advocacia Pública da OAB-PR. Procurador federal atualmente atuando na UFPR (Universidade Federal do Paraná).

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19 de julho de 2022, 15h03

Quando o cidadão vence uma ação judicial proposta em face do Estado, ao final o montante que se encontra como sendo o devido ao autor daquela ação tem de ser então objeto de uma execução, seja em face do município, do Estado ou então no governo federal.

Ao final dessa execução, quando já se tem o valor em definitivo que o Estado terá de pagar para aquela pessoa, expede-se então um precatório. Este é uma requisição de pagamento (feita pelo Poder Judiciário) de determinada quantia a que a Fazenda Pública foi condenada em processo judicial. Isto para valores totais acima de 60 salários mínimos por beneficiário. A requisição de pagamento é encaminhada pelo juiz da execução para o presidente do seu respectivo tribunal. As requisições recebidas no tribunal até 1º de abril de cada ano, são autuadas (como precatórios), atualizadas nessa data e incluídas na proposta orçamentária do ano imediatamente seguinte.

Os precatórios autuados após essa data (1/4) serão atualizados em 1º de abril do ano seguinte e inscritos na proposta orçamentária do ano subsequente. O prazo para que a Fazenda Pública (o Estado) faça o depósito, junto ao tribunal, dos valores dos precatórios inscritos na proposta de determinado ano é dia 31 de dezembro do ano para o qual aquele montante foi orçado.

Quando ocorre a liberação do numerário, o tribunal procede ao pagamento, primeiramente dos precatórios de créditos alimentares [1] e depois os de créditos comuns, conforme a ordem cronológica de apresentação.

Feito o depósito, é então aberta uma conta de depósito judicial para cada precatório, na qual é creditado o valor correspondente a cada um, após o que é encaminhado ofício ao juízo que expediu o precatório, disponibilizando-se os valores (transferência à vara de origem). Disponibilizado o montante, o juiz da execução determinará a expedição do respectivo alvará de levantamento, permitindo o saque do valor pelos beneficiários. Após a transferência da verba, os autos do precatório são finalmente arquivados.

Essa é a via prevista para a tramitação normal dos pagamentos que a Fazenda Pública tem de fazer em juízo. Todavia, nem sempre os pagamentos são feitos no tempo e modo devidos. Em todos os estados da Federação têm sido constatados sérios problemas para que o cidadão consiga vir a receber os seus créditos em face da administração pública.

Apenas a título de exemplo, uma pesquisa feita em 25/6/2022 [2] demonstra que se excluirmos as preferências legais (idade avançada ou problema de saúde), o estado do Paraná está pagando as obrigações referentes a processos dos anos de 1997/1998, ou seja, de obrigações constituídas há aproximadamente 25 anos.

Essa situação abalizou a veiculação no texto da Constituição do juízo de conciliação de precatórios (Artigo 100, §20, CF), nos termos seguintes: "Caso haja precatório com valor superior a 15% (quinze por cento) do montante dos precatórios apresentados nos termos do § 5º deste artigo, 15% (quinze por cento) do valor deste precatório serão pagos até o final do exercício seguinte e o restante em parcelas iguais nos cinco exercícios subsequentes, acrescidas de juros de mora e correção monetária, ou mediante acordos diretos, perante Juízos Auxiliares de Conciliação de Precatórios, com redução máxima de 40% (quarenta por cento) do valor do crédito atualizado, desde que em relação ao crédito não penda recurso ou defesa judicial e que sejam observados os requisitos definidos na regulamentação editada pelo ente federado."

No ano de 2019 o Tribunal de Justiça do Estado do Paraná (TJ-PR) iniciou o primeiro Juízo de Conciliação de Precatórios, na modalidade de Acordo Direto, para o pagamento antecipado de dívidas judiciais do estado do Paraná. Nesse formato, eram aplicados descontos que foram escalonados nos valores seguintes:

• 10% de deságio para precatórios inscritos até o ano 2000;

• 15%, para os créditos de precatórios inscritos na ordem cronológica de pagamento dos anos de 2001 a 2003;

• 20%, para os créditos de precatórios inscritos na ordem cronológica de pagamento dos anos de 2004 a 2006;

• 25%, para os créditos de precatórios inscritos na ordem cronológica de pagamento dos anos de 2007 a 2009;

• 30%, para os créditos de precatórios inscritos na ordem cronológica de pagamento dos anos de 2010 a 2012;

• 35%, para os créditos de precatórios inscritos na ordem cronológica de pagamento dos anos de 2013 a 2015 e

• 40%, para os créditos de precatórios inscritos na ordem cronológica de pagamento dos anos de 2016 a 2020.

O objetivo era o de se efetuar pagamento dos créditos originários, de maneira que não foram contemplados os precatórios que haviam sido dados em garantia, cedidos ou penhorados.

Posteriormente foram adotadas ainda outras providências por parte do estado do Paraná com o intuito de gerenciar esse passivo, tais como a instituição da Sexta Rodada de Conciliação de Precatórios, identificada pela sigla "6ª CCP" (instituída por meio do Decreto nº 9.876/2021), com o objetivo de fazer a indicação de débitos tributários relativos aos impostos estaduais ocorridos até o dia 30 de junho de 2021, constituídos ou não, inscritos ou não em dívida ativa, ainda que ajuizados, inclusive o saldo devedor de parcelamentos tributários ativos.

Nos termos da CCP, sobre o valor bruto do crédito de precatório indicado no pedido inicial de acordo direto seria aplicado um deságio de 5%. A adesão ao acordo direito ficava condicionada ao pagamento regular do parcelamento da dívida tributária e à formalização do pedido de acordo direto dirigido à 6ª CCP. Esta iniciativa ainda se encontra em curso (o prazo para a formalização do pedido de acordo teve início no dia 4 de abril de 2022 e se encerra no dia 3 de abril de 2023).

O arrolamento da situação atual, e também dos valores que podem ser aplicados a título de deságio para fins de pagamento de cada precatório é importante para demonstrar que gravitam no entorno do passivo de um Estado vários interesses tanto dos credores da administração pública quanto de outros devedores que eventualmente podem vir a adquirir estes direitos de crédito em face do Estado para então estarem quitando as suas próprias obrigações para com este mesmo Estado mediante a utilização destes precatórios. É todo esse contexto fático que também abaliza a edição das Emendas Constitucionais 113 e 114 (ambas de 2021).

Até o presente momento não se apresentam inovações extremamente relevantes na direção da solução deste problema, pois cada estado vai tentando acessar o modo e forma fazer o gerenciamento deste seu passivo junto à sociedade.

Esta é, portanto, a deixa para a introdução da possibilidade de utilização de ferramenta tecnológica que poderia vir a ser manejada para fins de gerenciamento desse passivo como um todo, com a agilidade que a sociedade atual demanda.

Blockchain e a gestão dos precatórios
Blockchain é uma tecnologia que faz uso de uma arquitetura distribuída e descentralizada para registrar transações de maneira que um registro não possa ser alterado retroativamente, tornando este registro imutável.

Uma vez que uma transação é escrita no "livro público" mantido pela cooperação e interação dos vários pontos (nós) em uma determinada rede, essa transação não pode mais ser alterada. A inserção de novas transações é permitida, entretanto, a alteração ou exclusão de qualquer transação existente é uma operação não suportada. Blockchain envolve, desta forma, necessariamente um armazenamento imutável de dados.

Oportuno registrar que a integridade dos dados em um sistema que opera com blockchain é de fundamental importância para a realização das transações. O histórico de registros é feito em cada nó da rede, de forma redundante, onde então é sempre armazenado o livro razão da rede blockchain, com o que se tem então transparência para as operações efetuadas e também qualquer espécie de controle que queira se fazer .

Uma blockchain privada pode ser acessada somente pelo grupo que a criou, sendo que nesse caso a participação de um nó é definida por esse grupo. Já uma blockchain pública tende a ter uma maior colaboração da comunidade de desenvolvedores e interessados nessa tecnologia. Finalmente, uma blockchain híbrida, também chamada de consórcio blockchain, pode ser acessada somente por um grupo de indivíduos ou organizações que tenham decidido compartilhar informações entre si. Nesse caso a participação de um nó é definida por um grupo ou uma organização. Esse último tipo de blockchain é a que nos parece que poderia vir a ser útil para gerenciar os precatórios de um determinado órgão público.

Imaginemos que a expedição de um precatório gerasse uma determinada chave. Esse precatório seria inserido na lista geral de pagamentos com os seus respectivos dados identificadores, bem como com o montante da dívida do Estado para com aquela pessoa física ou jurídica em específico.

A Constituição já prevê (artigo 100, § 11) que é facultada ao credor, conforme estabelecido em lei do ente federativo devedor, com auto aplicabilidade para a União, a oferta de créditos líquidos e certos que originalmente lhe são próprios ou adquiridos de terceiros reconhecidos pelo ente federativo ou por decisão judicial transitada em julgado para várias finalidades. O § 13 do mesmo artigo (100) ainda prevê que "o credor poderá ceder, total ou parcialmente, seus créditos em precatórios a terceiros, independentemente da concordância do devedor". Logo, este token gerado pela inscrição do precatório poderia ser utilizado pelo próprio credor ou então ser negociado no mercado para as finalidades previstas no texto constitucional, bem como na legislação que se seguirá para os Estados. Para a União a disposição é, como já foi dito, autoaplicável.

Se o autor da ação judicial, e agora credor do Estado, estiver em boas condições financeiras, e puder aguardar o andamento da fila dos pagamentos, então ele assim procede, e espera até que chegue a sua vez, oportunidade em que receberá a integralidade do valor que lhe é devido. Todavia, se por qualquer motivo de sua vida particular ele tiver alguma emergência e não puder ou não quiser esperar o regular andamento da fila dos pagamentos então ele pode recorrer ao mercado para que este faça a aquisição dos seus direitos de crédito em face do Estado.

Esse mercado já opera mais ou menos da forma anteriormente delineada. A grande inovação que a introdução da utilização de blockchain poderia vir a trazer seria a possibilidade de dar abertura, sustentação para a criação de todo um mercado que estaria gravitando no entorno do passivo de cada Órgão. Podemos imaginar, por exemplo, a criação de fundos de investimento que se dedicassem única e exclusivamente à aquisição de precatórios de municípios, dos governos dos estados e do governo federal.

A vantagem para os cidadãos seria a possibilidade de estarem vendendo seus direitos de crédito e, em existindo vários interessados nesta aquisição, que o deságio a ser aplicado não fosse extremamente impactante.

Há de se pensar se a gestão desta blockchain seria de responsabilidade do órgão devedor ou do Poder Judiciário. Uma resposta rápida indicaria que a resposta imputaria a responsabilidade ao órgão devedor. Um segundo olhar, todavia, talvez indique que a responsabilidade deva ser mesmo do Poder Judiciário. Isto porque a requisição de pagamento já é de sua responsabilidade. Ao órgão compete tão somente disponibilizar os recursos financeiros que farão o pagamento daquela requisição. Esta, bem como toda e qualquer decisão relacionada ao precatório é de responsabilidade do Poder Judiciário. Analisar uma pretensão de cessão dos direitos de crédito expressos pelo precatório compete também ao poder judiciário. Em relação a esta cessão, é indiferente a anuência (ou não) por parte do órgão devedor. Logo, à luz de todos estes argumentos, a conclusão a que chegamos é a de que a introdução de um eventual mecanismo de blockchain seria então de responsabilidade do Poder Judiciário.

Uma iniciativa tal qual a ora proposta dialoga muito com o programa do Conselho Nacional de Justiça denominado de "Justiça 4.0", pois tem como intuito: (a) tornar o sistema judiciário brasileiro mais próximo da sociedade ao disponibilizar novas tecnologias e inteligência artificial; e (b) impulsionar a transformação digital do Judiciário para garantir serviços mais rápidos, eficazes e acessíveis. O programa atua em quatro eixos, sendo que um deles é exatamente o da inovação e da tecnologia, onde se pretende a apresentação de soluções disruptivas para transformar o Judiciário e melhorar a prestação de serviços para a sociedade.

Recentemente (11/7/2022) a ideia foi defendida, com alguns outros vieses, por Arthur Barreto e Luis Fernando Zenid em artigo publicado no jornal Valor Econômico (acessível aqui).

A utilização desta tecnologia, já disponível, certamente traria muitos avanços para o trato dos precatórios e do passivo do Estado brasileiro para com os seus cidadãos e/ou empresas.

 


[1] Créditos alimentícios:
Constituição Federal: Art. 100, § 1º "Os débitos de natureza alimentícia compreendem aqueles decorrentes de salários, vencimentos, proventos, pensões e suas complementações, benefícios previdenciários e indenizações por morte ou por invalidez, fundadas em responsabilidade civil, em virtude de sentença judicial transitada em julgado, e serão pagos com preferência sobre todos os demais débitos, exceto sobre aqueles referidos no § 2º deste artigo".

Autores

  • é procurador federal, especialista em Direito Socioambiental pela PUC-PR, mestrando em Gestão Pública pela FGV-RJ, ex-presidente da Comissão de Advocacia Pública da OAB-PR e procurador-chefe da Procuradoria Federal no Estado do Paraná.

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